30 junho, 2014

Sobre Copa e Manifestações: Um ode à inconstância d´alma, um “não” ao retrocesso político e social.

Imagem de Estádiovip
Durante a colonização do Brasil, os indígenas deixavam perplexos os padres que vinham catequizá-los. Num dia, compreendiam perfeitamente o monoteísmo, se deixavam batizar e rezavam ao Deus cristão. Noutro, pareciam ter esquecido absolutamente tudo: desnudavam-se e novamente voltavam para os seus rituais “selvagens” e pagãos.  O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro diz que esta “inconstância da alma selvagem” demonstra que, diferentemente do pensamento ocidental dualista, que exige “ou uma coisa ou outra”  -sim ou não, bem ou mal, Deus versus divindades da natureza- o pensamento indígena aceita uma coexistência radical entre duas versões de mundo. Sem ser fingimento, nem refutavam o cristianismo nem se despiam da sua tradição.

As manifestações contra a Copa do Mundo denunciam a remoção de comunidades da periferia, os gastos exorbitantes, a morte de trabalhadores, a corrupção da FIFA, a violenta repressão. Elas são legítimas e necessárias.

Ser consciente disso impede levantar a bandeira e comemorar o gol da seleção?

Gol comemorado por Alagoas Web

Creio que não. Quer queira, quer não, a Copa é um momento importante de celebração mundial, coletiva, e de rua. Mas além disso, é parte das nossas memórias e subjetividades.

(Aliás, para muitos, abdicar da Copa significaria um outro tipo de violência. Um amigo, marxista ortodoxo e corintiano roxo, decidiu não torcer como forma de apoiar os movimentos. Anda tomando remédio pra depressão. Um tio tucaníssimo, que na Copa passada viajou para a África do Sul vestido de canarinho, este ano virou antiCopa por ser antiDilma. E no último jantar de família decretou que futebol era tema tabu. Minha tia deu-lhe uma vuvuzelada... E o abandonou.) 

É importante o incômodo vivido pelos brasileiros nesta Copa. O “torcer ou não torcer, eis a questão!” revelou um novo olhar político, legado das manifestações de junho de 2013, que vem demonstrando que a política do pão e circo talvez já não seja mais suficiente no país da feijoada e do futebol.

Imagem da torcida na Copa 2014 - fonte Paulo Moreira Leite
Agora... Criticar o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo brasileiro – do qual a Copa faz parte e que inclui a construção de megaprojetos que impactam negativamente as populações da periferia, os povos tradicionais e o meio ambiente; assim como a omissão diante do genocídio indígena e do retrocesso no que diz respeito aos seus direitos – não tem absolutamente nada a ver com a cena protagonizada pela área VIP do Itaquerão, durante a cerimônia de abertura do Mundial. Que bebericando Chandons e petiscando foie gras sugeria elegantemente à presidenta do seu país ir “tomar no cu”.

Na área VIP também estava a nobreza do Plin-plin, para quem o conceito de “público” – alheia que está ao seu significado em forma de transporte, saúde e educação – restringe-se à plateia que alimenta seus egos e índices de audiência, entre a leitura de Caras e a audiência ao Domingão do Faustão. Este, aliás, alertou claramente em seu último programa: “Você, minha senhora, que está aí no sofá. Fica experta porque a corrupção corre solta! Mas só depois da Copa, hein?”

Ou seja: depois da Copa e antes das eleições. Período em que a Globo vai mostrar todas cenas de violência que estão ocorrendo durante as manifestações, invisibilizadas hoje. E vai fazer isso com um objetivo claro: não o de apoiar a demanda dos movimentos sociais, mas o de derrubar o atual governo e fazer brilhar o dono do baile real. Ah é? Ah é sim! Ah é sim!

Mas os brasileiros que lutam diariamente pela ampliação dos seus direitos e por uma vida mais digna sabem que possuem uma margem de ganho significativa pressionando um governo que, apesar dos problemas, aposta no setor público e na redução das desigualdades sociais. E que essa luta vai ser bem diferente se for realizada, a partir do ano que vem, em um contexto de desmantelamento do Estado e de redução das políticas públicas, contra um novo governo que prima pela concentração de riqueza e de poder.

E se a mídia golpista sair vitoriosa desse outro jogo que o Brasil está vivenciando, sorrateiro, sofrerão todos, incluindo grande parte da elite. De fato, a área Vip não. Mas o resto do Brasil lamentará, muito e mais do que a tristeza coletiva que abateu o país naquela França de 1998, quando o Brasil perdeu o penta. E centenas de cabeçadas de Zidane se abaterão sobre nós...

Mas ainda há tempo! De evitar um tremendo retrocesso no plano político, econômico e cultural.
(E de quebra, por que não, de conquistar o hexa!)

Bruna Muriel


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Observação editorial:
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião deste Blog, mas abrem espaços para a reflexão crítica dos leitores. Desse modo, como o texto acima explicita um posicionamento político, recomenda-se a busca pelo pensamento contraditório para uma análise mais complexa. Sugere-se a leitura de Chico Alencar: Já somos Hexa
Gladis Franck da Cunha

2 comentários:

  1. Mais uma primorosa contribuição da Bruna Muriel ao Teliga! Uma crítica inteligente utilizando uma linguagem caracteristicamente poética!

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  2. Parabéns pelo texto bruna Muriel! Indicarei-o para meus colegas lerem.

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