27 maio, 2014

A Virada e o seu Avesso.

Por Bruna Muriel
Viradão 2013 por Felipe Camargo.
Multidão, aglomerado, asfixia, arrastão.  A cracolândia em ebulição. A Virada cultural vira vira virou. E revirou. O lixo, a cidade e os estômagos.

Eu?Eu derreti.  E subi... e desci.... Vai e vem de suspiro e leveza em um balanço gigantesco, pendurado no viaduto. Jéssica, travesti e prostituta, me empurrava.  Contou-me que aproveitava a virada para fazer um freela.  E ríamos, Jéssica e eu, ela empurrando, eu balançando.

E de novo subi, muito e mais, em transe, de mãos dadas com Iansã, entre o afoxé e o maracatu no cortejo do Anhangabaú. Adentramos Orum - o espaço sagrado dos Orixás - e ainda eram quatro horas da tarde, de um sábado prenhe de possibilidades infinitas.

E agora? Ibrahim Ferrer Hijo? Fagner? Língua de Trapo, Marina de La Riva, Luis Caldaaaas? Gal????? Sidnei Magal???!!!!!
Por fim, o acaso nos deu Billy Cox. Abre-se a sessão rock and roll da virada com nada mais nada menos que o ex-baixista do Hendrix. E como o grupo era eclético – e herético - partimos de Chuck Berry para o Forró.
Tiziu do Araripe com Fubá de Taperoá.
“Tudo em volta é só beleza”...
Foi quando derreter na virada “literou-se” em suor. E o seguiria fazendo, dias depois, em secreções outras. Gástricas, lácrimais... Mas isto, eu ainda não sabia. Eram apenas dez horas, de uma noite assanhada, que escancarava seu caráter belo, lúdico, louco. E um tanto quanto perigoso.
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

Segui – seguimos – dissolvendo. Escorrendo.  Pelo buraco do esgoto urbano, diariamente tapado, mas sempre sentido e teorizado. Estação da Luz. Na rua dos protestantes, que ninguém-passa-ninguém-vê,  era o purgatório cristão que se explicitava. Na Helvétia, éramos só nós. Nós, e os “nóia”.

Alheios, estrangeiros, adentramos o território do vício e do acerto de contas. Eu ainda não sabia que meu primo-irmão, querido, em sua recém vigésima terceira recaída, já estava por ali. Era uma hora da manhã, de uma madrugada... Entranha.

“Irmão, tenho medo”. E numa inversão da relação não cronológica inventada,  ele me deu a mão. Abre alas de um grupo que emanava força e humildade, caminhamos protegidos.
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

 “Ei, ei!!” “Que cê qué?”  “3 por 10!” “Vai da branca?”  “Olha a Brahma!” “Dá licença, por favor” “E aí, maluco!”  “To perdido” “Empurra não, mano” “Gostosa” “Julio prestes...?”  “Fodeu” “Partiu” “Psiu!” “Foi mal” “Olha o milho!” “Hahaha” “Kkkk” “Foi mal aê, irmão” “Impreixta o ixqueiro?” “É nóis”  “Tá na mão!” “ “Maravilha!” “Vai se fudê!” “ Viu a lua?”

Oásis.No coreto da Praça da Bolsa de Valores, onde  tudo o que não é mercado financeiro se fez, Ione Papas de branco, em cantoria encantou. “O samba é sinal de paz, a minha fé, o meu pecado. Com o samba do lado eu estou com os meus, mas junto a Deus. O samba é o meu axé, o meu som sagrado...” Leveza, suspensão, recompensa... A vida evidenciando-se cíclica...
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

Tempos depois (ou seriam tempos antes? Que horas são? Que horas foram?), George Clinton - “Ow, we want the funk Ow, we need the funk ” - incita a uma série de palmas, gritos e assobios histéricos que vão se intensificando num crescendum contínuo até que às seis da manhã clareia o relógio da estação Júlio Prestes.

É quando uma senhora adentra o palco, ajudada pelos seguranças.  
A idosa, frágil e pequena mulher move os grossos lábios e, sem fazer esforço, o que se ouve é:
ELZA SOARES.
Jovem, Lúcida, Forte. E-nor-me.

“A caaaaarne mais barata do mercaaaaaado, é a carne:  negrrrrraaaaaaaaaaaa!!!!”

Ao fim do show, o selinho na companheira de palco Gaby Amarantos. “É pra você Feliciano!” E a Luz inteira grita durante um tempo infinito de indignação, em coro e com os braços em riste: “Fora! Fora Feliciano, fora!”
A virada indignada, que a Globo não mostrou.

Gaby faz tremer a virada. E a esta que, outrora, tanto a criticou.
A rainha do Brega.O fenômeno do Pará! A quem, depois da virada, concedo o troféu de embaixatriz da bioenergética. Porque é necessário reafirmar, sempre - e da maneira que for - Galeano:

“O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência.
Nem uma culpa como nos fez crer a religião. 
O corpo é uma festa.”

E Gaby o reafirmou, com seus gritos de “Sensualiza Brasil!” e “Acredita no corpo!”.

Viradão 2013 por Felipe Camargo.
 (E, sobre manter Amarantos e Galeano na mesma oração, parafraseio a diva da aparelhagem e grito à uma  Academia indignada com a subversiva união:  “Se me odeia, Deita na BR...”  )

(Aliás, sigo com Gaby, para lembrar-te, Ex my Love, que o “Meu amor era verdadeiro, O teu era pirata, O meu amor era ouro, E o teu não passava de um pedaço de lata”). Ai de quem nunca sofreu por amor, o suficiente para ler-se em ridículas cartas de amor. Ou em letra de (tecno) brega...
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

São 11hs da manhã e o domingo se anuncia, exausto e belo. Faz sol, o centro brilha. E no largo do Arouxe repito pro mais belo dos belos, que “ Ilê Aye , como você é bonito de se ver...” Logo adiante,  o Criolo unissoniza Morumbis e Itaqueras na música “Ogum adjo ê mariô”, levando ao delírio manos e patricinhas que se solidarizam ao rivalizar, ombro a ombro,  um oitavo de metro quadrado para vê-lo. Medida oposta ao sentimento gigantesco de harmonia e paz que predominam e que são, em seguida, captados por Mano Brown,em show multitudionário do Racionais.  Aquele inspira a revolta criativa ao criticar a atuação dos grupelhos minoritários, que assumiram –e conquistaram - o objetivo de causar pânico durante os shows.

Revolta e paz. Encontros e Arrastões. Teses e Antítesis. Síntesis... Céu, Inferno. Entrega e Contenção.Burguesia, proletariado, Artista, marginal. Indígena, fazendeiro, político, quilombola batuqueiro. Sêmen e Sangue.  Cronópios, famas. Eu, Você. PM e ladrão. Eros, Tânatus,  Id e Opressão. Apolíneo e Dionisíaco. Esperança e Traição. Descrença, fé.
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

Espaço, liberdade, movimento e respiração. A cracolândia em ebulição. A virada cultural vira, vira virou. E revirou. As esperanças, a Cidade, os Corações.

Outros fenômenos de uma mesma virada, que explicitou suas intensas contradições, tão próprias. Tão nossas.
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

São quatro horas da tarde e decidimos parar. Sendo que “parar” significa deitar na estátua do Pátio do Colégio e despedir da Virada 2013 ao som dos Oswaldinhos, do acordeon e da cuíca, seguidos de homenagem à Paulo Vanzolini.

É quando a saudade corta “como aço de navaia, os óio se enche d'água,  que até a vista se atrapáia”...
Mas, muito embora a “Ronda”, não há retorno abatido. Como sempre, rezo a “Volta por cima”, levantando e sacudindo a poeira, fechando o dia, digo, a noite, digo, o outro dia, digo, a outra noite, embalada pela voz de Renato Braz cantando os Caymmis todos.
 
Viradão 2013 por Felipe Camargo.

 A lua tá no alto, abraço os amores que estão comigo e aqueles que não estão. São nove da noite quando partimos. 27 horas depois. Sabendo-te, Virada ( e sabendo-te  Sampa e a ti e a mim) tão “avesso do avesso do avesso do avesso...”

2 comentários:

  1. Esta crônica reflexiva da Bruna Muriel revela a filtragem de mundo de uma paulistana, que vivenciou um mega evento somente possível numa megalópole como São Paulo. As imagens de Felipe Camargo contribuem para o tom poético e turbilhonado do texto, assim fica a sugestão para visitarem o álbum completo linkado em cada imagem.
    Esta contribuição ao Teliga se encaixa nas temáticas de crônicas e existencial, contribuindo com um olhar diferente dos autores do blog que moram num pacato sítio no interior do município gaúcho de Bento Gonçalves.

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  2. Texto e fotos de despertar coisas belas...

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