06 outubro, 2013

Darwin as planárias terrestres.

por
Geoplana burmeisteri (PT.wikipedia)
Conforme registrou no seu “Diário de um naturalista ao redor do Mundo”, os últimos dias de Darwin no Brasil compreenderam o período de 19 de abril a 5 de julho de 1832 e foram passados numa “quinta” na baía de Botafogo. As ‘quintas’ são residências instaladas em propriedades rurais rústicas e, relativamente, grandes localizadas junto a áreas urbanas. Esta é uma denominação, ainda muito usada para designar este tipo de propriedade em Portugal, enquanto no Brasil está mais associada ao Rio de Janeiro, como a Quinta da Boa Vista, cuja principal residência é o Palácio Imperial, utilizado durante o Império do Brasil (1822-1889) como residência pela família imperial brasileira.



Darwin: Durante todo o resto de minha permanência no Rio, residi em uma quinta na Baía de Botafogo. Era impossível desejar-se coisa mais deliciosa do que passar assim algumas semanas num país tão magnífico. Na Inglaterra, qualquer pessoa amiga da história natural sempre tem, nos passeios, alguma coisa que lhe atraia a atenção. Mas aqui, na fertilidade de um clima como este, são tantos os atrativos que não se pode nem mesmo dar um passo sem lamentar a perda de uma novidade qualquer.

As poucas observações que me foi dado fazer versaram quase exclusivamente sobre animais invertebrados. A existência de uma divisão do gênero Planaria¹, habitante da terra seca, muito me interessou. Têm estrutura tão simples que Cuvier os fez figurar entre os vermes intestinais conquanto nunca tenham sido encontrados no corpo de outros animais.

Numerosas espécies habitam a água doce e a água salgada, mas esta de que falo é encontrada mesmo nas partes mais secas da floresta, embaixo de troncos podres, dos quais, penso eu, ela se nutre. Na forma geral, parecem-se com pequenas lesmas, porém são muito mais estreitas, e, além disso, várias representantes da espécie possuem riscas longitudinais de cores muito lindas. A estrutura é muito simples: próximo ao centro da superfície ventral existem duas pequenas fissuras transversais. Da fissura anterior pode projetar-se uma boca excessivamente excitável em forma de funil, que retêm sua vitalidade algum tempo depois da morte completa do animal, provocada pela água salgada ou outra causa qualquer.

Na imagem abaixo vê-se a espécie Geoplana (Barreirana) barreirana, uma planária terrestre que foi descrita por Riester em 1938, cujas características gerais atendem a descrição dada por Darwin, assim como outras espécies encontradas no Rio de Janeiro, cujas descrições e imagens estão disponibilizadas na rica base de dados de Fernando Carbayo sobre Planárias Terrestres do Brasil. 
 
Geoplana barreirana

Aqui Darwin faz uma digressão, descrevendo seus experimentos com planárias de outras terras...

 Darwin: Encontrei nada menos de doze espécies diferentes de planárias terrestres em várias partes do hemisfério sul. Algumas espécies que obtive na Terra de Van Dieman² conservaram-se vivas durante quase dois meses, alimentando-se de madeira podre.

Tendo seccionado transversalmente um dos animais, em duas partes iguais, decorrido um período de quinze dias, observei que as duas metades se apresentavam com a forma de dois animais perfeitos. Mas tinha dividido o corpo de maneira que uma das metades contivesse os dois orifícios ventrais, nenhum restando para a outra. Vinte e cinco dias depois desta operação, mal se poderia distinguir entre a metade mais perfeita e qualquer outro indivíduo da espécie.

A outra metade havia aumentado muito de tamanho, podendo distinguir-se, na massa parenquimatosa próxima à extremidade posterior, a formação de uma boca rudimentar acetabuliforme³. Na superfície ventral, porém, nenhuma fissura correspondente se tinha aberto. Se o calor mais intenso, na travessia do equador, não tivesse morto todos os exemplares, não tenho dúvida de que esse último detalhe de estrutura teria sido completado.

Por muito conhecida que seja esta experiência, é sempre assaz interessante acompanhar a formação gradual de cada órgão essencial, na mera extremidade de outro animal. É extremamente difícil conservar estas planárias. Logo que a cessação da vida permite a ação das leis comuns de transformação, o corpo do animal torna-se mole e fluido, com uma rapidez como nunca vi igual.

Regeneração de planária
Descobertas recentes mostram que a regeneração das planárias é ainda mais interessante do que suspeitava Darwin. Pesquisadores da Universidade de Tufts descobriram que ao regenerarem sua cabeça, criando um novo cérebro, aparentemente, também conseguem preservar algumas memórias do cérebro antigo. Para chegar a essas conclusões, os cientistas mediram quanto tempo levava para que as planárias encontrassem alimento em um ambiente controlado. Quanto mais eram 'treinadas', menor era o tempo que levavam para alcançar o seu 'jantar'. Então algumas dessas planárias treinadas foram decapitadas. Depois de regenerarem suas cabeças e cérebros (veja imagem acima), elas ainda eram capazes de encontrar o alimento de forma mais rápida do que aquelas que não passaram pelo mesmo processo de treinamento (Revista Galileu). 

Após sua digressão sobre planárias Darwin volta a falar do Brasil...


Darwin: A primeira vez que visitei a floresta onde foram encontradas estas planárias fi-lo em companhia de um velho padre português, que me levou para caçar consigo. Este desporto consistia em soltar na moita alguns cães e fazer fogo contra qualquer animal que dali surgisse. Tínhamos conosco o filho de um fazendeiro vizinho - bom espécime de jovem nativo brasileiro. Vestia camisa e calças velhas, rasgadas, e levava a cabeça descoberta. Carregava uma espingarda antiquada e facão. A moda de andar de faca é universal. Ela é quase necessária ao se entrar no mato, por causa do cipó. A frequente ocorrência de assassínios pode, em parte, ser atribuída a isso.

Os brasileiros são tão destros na faca que são capazes de atirá-la com certeira pontaria a alguma distância, e com força suficiente para infligir um ferimento mortal. Vi um número de meninos que praticavam a arte como meio de diversão, e, pela habilidade com que acertavam o alvo, um pau vertical, muito prometiam para o caso de empreendimentos mais sérios.

O meu companheiro havia morto, no dia precedente, dois grandes macacos- barbudos4. Esses animais possuem no rabo muita força de preensão, a extremidade do qual, mesmo após a morte, pode suportar todo o peso do corpo. Um dos símios tinha assim ficado pendurado no alto de um galho, e foi necessário se derrubar-se a árvore para apanhá-lo. Isso foi logo feito, árvore e macaco vindo abaixo fragorosamente.

O resultado do dia de caçada foi, além do macaco, muitos papagaios verdes e alguns tucanos. Tive, no entanto, vantagem em ficar conhecendo o padre português, pois em outra ocasião me deu de presente de um belo exemplar do gato Yagouaroundi5.

Gato Yagouaroundi ou gato mourisco (Puma yagouaroundi)
Fonte: Animais do RN.

Notas:
1- Planária não é um gênero, mas sim uma designação comum dada ao grupo de vermes de corpo achatado da Classe Turbellaria do filo Platyhelminthes. Este grupo inclui cerca de 3000 espécies, a maioria das quais é carnívora ou necrófaga.

2- Terra de Van Diemen foi a primeira designação que os europeus deram à ilha da Tasmânia, hoje parte da Austrália (Wikipedia). 

3- Acetabuliforme significa em forma de taça como se observa na forma do corpo de frutificação da espécie de fungo Peziza acetabulum L., Sp. Plant., 2: 1181 (1753), que recebeu este nome ‘acetabulum’ em função dessa característica morfológica (veja imagem ao lado).
4- Os macacos-barbudos referidos por Darwin, provavelmente sejam a espécie Sapajus nigritus  da família Cebidae (imagem à direita), popularmente conhecido por macaco-prego ou mico-preto  do Novo Mundo. Ocorre em muitas unidades de conservação no Brasil e a IUCN o considera como "quase ameaçado", apesar de grande parte de seu habitat já ter sido alterado pelo homem  (Wikipedia). 

5- O jaguarundi (Puma yagouaroundi), também chamado gato-mourisco, eirá, gato-preto e maracajá-preto, é um mamífero da família dos felídeos, encontrado desde os Estados Unidos até ao norte da Argentina. 

Possui cerca de sessenta centímetros de comprimento de corpo, 45 centímetros de cauda e pesa seis quilogramas. Tem orelhas e pernas curtas e pelagem de coloração marrom pardacenta uniforme, salpicada com pontinhos mais claros na maior parte do corpo (a ponta dos pelos é de cor mais clara), havendo muita variação individual. 

O jaguarundi tem o hábito de viver em bordas de banhados, beira de rios ou de lagos, sendo, também, encontrado em lugares secos, com vegetação aberta. Sua alimentação pode ser tanto de mamíferos como de aves, porém dando preferência a presas de grande porte (Wikipedia).






Referências e links:


Darwin, C., Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo - Vol.1, Nova edição, 1871. Abril Cultural. Companhia Brasil Editora, São Paulo, s/d.




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