Maturana e Varela celebrizaram em seu livro “A árvore do conhecimento”
o caso das duas meninas que foram retiradas de uma família de lobos que as
havia criado em total isolamento de qualquer contato humano, em 1922. Uma delas
tinha oito anos e a outra cinco, quando foram encontradas e não sabiam andar
sobre os pés, mas se moviam rapidamente quando assumiam uma postura quadrúpede.
Além disso, elas não falavam e seus
rostos eram inexpressivos, queriam comer apenas carne crua, tinham hábitos
noturnos, repeliam o contato humano e preferiam a companhia de cães e lobos.
Ao serem separadas da família lobo, elas entraram em profunda depressão
e a menor morreu, mas a mais velha ainda sobreviveu dez anos. A “menina-loba”,
que sobreviveu, mudou seus hábitos alimentares e ciclos de atividades, aprendeu
a falar e a andar sobre os pés, embora sempre voltasse a correr de quatro em
situações de emergência.
Todavia, no final do século XX ainda surgiram outros casos de crianças “selvagens”
criadas por animais sociais como cães ou macacos. Três destes casos serão
relatados abaixo.
Conceitualmente, uma criança feral ou criança selvagem é um indivíduo
que viveu isolado do contato humano, a partir de uma idade muito jovem, e não vivenciou
o cuidado humano, nem desfrutou do comportamento amoroso ou social e,
fundamentalmente, não compartilhou a linguagem humana.
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O ator Rad Kaim na peça “Ivan e os cães”(2011), uma alegoria baseada numa história real [1]. |
Caso 1: Ivan Mishukov foi um
pequeno moscovita que fugiu de casa para morar nas ruas dos quatro aos seis anos
de idade. Ele nasceu em 1992 e em 1996 fugiu de casa e foi morar nas ruas de
Moscou, sendo adotado por uma matilha de cachorros. Para conquistas a confiança
dos cães ele mendigava por comida e dividia com os cães o que conseguia, em
troca a matilha passou a protegê-lo, sempre que alguém tentava molestá-lo ou roubar.
Além disso, o calor da matilha o manteve vivo e aquecido mesmo quando nevava, mais
tarde, ele tornou-se o líder da matilha, tendo sido resgatado pela polícia de
Moscou em 1998, aos seis anos de idade, após três tentativas.
Esse menino, filho de mãe alcoólatra e padrasto violento se tornou um “selvagem
urbano”, mas, neste caso, como ele já aprendera a falar antes de ser adotado
pelos cães, conseguia se comunicar com os seres humanos, ao contrário de outras
crianças selvagens. Depois de resgatado e após passar uma temporada num abrigo
para crianças, Ivan começou a estudar numa escola regular e não parecia
diferente de qualquer outra criança, mas relatava que à noite sonhava com os
cães.
Caso 2: Oxana Malaya nasceu
em 1983, ela passou grande parte da sua infância, dos 3 até os 8 anos, vivendo
em um canil no quintal da casa da família na Ucrânia. Sem atenção e acolhimento
dos pais alcoólatras, a menina encontrou abrigo entre os cães e se refugiou num
barracão habitado por eles nos fundos da casa. Isso fez com que a menina adquirisse
um padrão de comportamento tipicamente canino.
O vínculo com a matilha de cães era tão forte que as autoridades que
vieram para salvá-la foram expulsas na primeira tentativa pelos cães. Logo que
foi encontrada, em 1991, ela mal conseguia falar e só sabia dizer “sim” e “não”,
no mais rosnava, latia e andava por todos os lados como um cão selvagem. Além
disso, cheirava a comida antes de comer, e tinha os sentidos de audição, olfato
e visão extremamente aguçados.
Oxana teve grandes dificuldades para adquirir habilidades sociais e
emocionais, tipicamente humanas, pois tinha sido privada de estimulação
intelectual e social, e seu único apoio emocional recebera dos cães com que vivia.
Desde 2010, ela reside em uma fazenda clínica, utilizada como lar para
deficientes mentais, onde ajuda a cuidar das vacas, mas ainda afirma que é mais
feliz quando está entre os cães. O vídeo abaixo documenta um pouco da sua
história, ele inicia com imagens de Oxana, aos 15 anos, repetindo, a pedido dos
documentaristas, o comportamento que já abandonara desde os 13 anos de idade.
Recentemente, aos 29 anos, Oxana foi entrevistada pela antropóloga Elizabeth Grice em sua casa localizada em Odessa, na Ucrânia. Grice encontrou uma jovem crescida conversando de pé com os amigos. Quando questionada sobre sua infância Oxana parecia muito embaraçada de falar sobre isso, respndendo: "Foi há muito tempo. Tudo o que eu me lembro são dos cuidadores e enfermeiros tentando me pegar, mas eu era rápida". Já as suas memórias da primeira infância ela bloqueou completamente.
Enquanto estava sendo entrevistada, um cão se aproximou e Oxana
acariciou o cachorro e continuou andando com Grice. Ela disse que seu trabalho
na casa é ordenhar as vacas e isso "ajuda a manter minha mente longe de
querer ser um cão de novo". Ela também disse que ainda anda como um cão em
seu quarto quando ninguém está olhando, pois isso lhe dá prazer e acalma quando
se sente rejeitada pelas pessoas, mas está em paz com seu passado e é feliz.
Caso 3: John Ssabunnya, de
Uganda, fugiu para a floresta aos 4 anos, após ver sua mãe sendo assassinada
pelo seu pai. Ele foi reencontrado, em 1991, por uma mulher chamada Millie,
integrante de uma tribo.
Quando foi visto pela primeira vez, Ssebunya estava escondido em uma
árvore. Millie voltou para o vilarejo onde vivia e pediu ajuda para resgatá-lo,
mas o garoto não apenas resistiu como também foi defendido por sua família
adotiva de macacos. Quando foi capturado, seu corpo estava recoberto por
ferimentos e seus intestinos infestados por vermes.
No começo, Ssebunya não sabia falar e nem chorar. Depois, ele não
apenas aprendeu a se comunicar como, também, aprendeu a cantar e tomou parte em
um coral infantil chamado Pearl Of Africa (“Pérola da África”). Ssebunya foi
tema de um documentário produzido pela rede BBC, exibido em 1999. John disse que recordava vagamente que um grupo de macacos
se aproximou dele com curiosidade. Eram tímidos e precavidos, mas, pouco a pouco
foram se acostumando a ele e ofereceram comida: raízes, frutas, nozes, etc. Após
duas semanas parecia que o haviam aceitado como membro periférico de seu grupo.
John viajava com eles em busca de alimento e subia em árvores para dormir de
forma desconfortável com a cabeça mais para baixo e as nádegas para cima.
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Cercopithicus aethiops |
Logo que foi resgatado John evitava o contato visual e se aproximava de
lado com as palmas das mãos abertas, de uma maneira classicamente simiesca. Ele
também caminhava de lado, puxava os lábios para trás quando sorria e saudava as
pessoas abraçando forte como os símios.
John foi adotado pelo orfanato Paul y Molly Wasswa, onde lhe ensinaram a falar e adotar costumes humanos como comer em um prato e dormir em uma cama. Como parte da sua terapia aprendeu a cantar salmos, revelando-se dono de uma bela voz e musicalidade. Atualmente, John vive no povoado de Kabonge, próximo de Bombo, ao norte de Kampala.
Nota:
[1] – Esta mesma peça concebida por Hattie Naylor e dirigida por
Fernando Villar também foi encenada no Sesi Cultural em agosto de 2013. https://www.facebook.com/culturasesiae?hc_location=timeline
Referências e links:
1- BARBOSA, Jaque. Conheça a história de 5 crianças que foram criadas
por animais. Hypeness, maio de 2013. http://www.hypeness.com.br/2013/05/conheca-a-historia-de-5-criancas-que-foram-criadas-por-animais/
2- CUNHA, Gladis
Franck. Os filhos do seu tempo. Teliga.net, 29/03/2009. http://www.teliga.net/2009/03/os-filhos-do-seu-tempo.html
3- FISHER, Mark. Ivan and the Dogs explores notion of feral
children: Theatre piece based on true story of Ivan Mishukov, 18/03/2011. http://www.list.co.uk/article/33333-ivan-and-the-dogs-explores-notion-of-feral-children/
4- MASSINI-CAGLIARI, Gladis. DELTA: Documentação de Estudos em
Lingüística Teórica e Aplicada. Resenha: NEWTON, Michael 2002. Savage Girls and Wild Boys. A History of Feral
Children. London: Faber and Faber. 284p. DELTA vol.19 no.1 São
Paulo 2003. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44502003000100008&script=sci_arttext
5- NOGUEZ, Luis Ruiz. Los niños salvajes (26). Marcianitos verdes,
09/10/2007. http://marcianitosverdes.haaan.com/2007/10/los-nios-salvajes-26/
6- Rised by dogs, 13/02/2013. http://oxanamalaya.blogspot.com.br/
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