22 setembro, 2013

Somos todos mosaicos ou, talvez, quimeras?

por
Mosaico de Menina de Priscilla Oliveira (2012).

Das aulas de biologia aos seriados de " CSI ", ouvimos repetidamente que nosso genoma é o cerne da nossa identidade, de forma que ao ler o DNA de uma única célula se obterá a informação genética de uma pessoa. Mas os cientistas estão descobrindo, com certa surpresa, que alguns indivíduos podem manifestar uma inusitada variabilidade genética.

Há não muito tempo, os pesquisadores pensavam que era raro as células de uma única pessoa saudável  diferirem geneticamente de forma significativa, porém estão descobrindo que é relativamente comum um indivíduo ter vários genomas. Algumas pessoas, por exemplo, tem grupos de células com mutações que não são encontrados no resto do corpo, enquanto outros têm genomas que vieram de outras pessoas ou embriões e são quimeras.

Segundo Alexander Urban, geneticista da Universidade de Stanford, já havia rumores sobre isto há poucos anos, de forma hipotética, mas a sugestão de haver variação genética generalizada em um único corpo costumava ser recebida com ceticismo. Porém, uma série de trabalhos recentes demonstrou que esses rumores não eram apenas hipotéticos. A variação dos genomas encontrados em uma única pessoa era demasiado grande para ser ignorada.

Dr. James R. Lupski , um dos maiores especialistas sobre o Genoma Humano do Baylor College of Medicine, escreveu em um comentário recente na revista Science que a existência de múltiplos genomas em um indivíduo pode ter um tremendo impacto sobre a prática da medicina, pois os cientistas já haviam encontrado ligações entre a presença de vários genomas e certas doenças raras, e agora eles estão começando a investigar variações genéticas para lançar luz sobre doenças mais comuns.

Esta nova visão de identidade genética também levanta questões sobre como os cientistas forenses devem usar as evidências de DNA para identificar as pessoas  e  está colocando desafios para o aconselhamento genético, que não pode assumir que a informação genética de uma célula pode dizer-lhes tudo sobre o DNA de uma pessoa.

O sequenciamento do DNA é uma ferramenta usada para compreender as variações genéticas que podem aumentar o risco de certas doenças, de forma que geneticistas podem olhar para os resultados destes para ajudar os pacientes e suas famílias lidar com certas doenças, por exemplo, indicando a alteração da dieta quando o indivíduo não têm um gene para produção de uma enzima.
O sequenciamento de DNA se tornou rápido e relativamente barato nos últimos 20 anos (The New York Times, 2013).

Como o custo de sequenciar um genoma inteiro caiu drasticamente nos últimos 20 anos, agora é possível para os médicos solicitar exames da sequência de todo o genoma de alguns pacientes e, desse modo, eles estão identificando ligações entre mutações e doenças que nunca eram percebidas antes. No entanto, todos estes testes potentes ainda são baseados no pressuposto de que, dentro do nosso corpo, há um e apenas um genoma.

Diagrama humano

Quando um óvulo e um espermatozoide combinam seu DNA , produzem o genoma do zigoto que contém todas as informações necessárias para a construção de um novo ser humano . À medida que o zigoto se divide para formar um embrião, produz novas cópias desse genoma original. Durante décadas, os geneticistas têm investigado como um embrião pode usar as instruções de um único genoma para desenvolver estruturas tão diferenciadas como os músculos, os nervos e demais órgãos do corpo humano.

Nesse contexto, os cientistas acreditavam que eles poderiam olhar para o genoma de células retiradas da mucosa bucal e serem capazes de aprender sobre os genomas de células do cérebro ou o fígado ou qualquer outra parte do corpo.

Em meados dos anos 1900 , os cientistas começaram a obter pistas que isso nem sempre é verdade. Em 1953 , por exemplo, uma mulher britânica doou um litro de sangue . Descobriu-se que parte de seu sangue era do tipo O e parte do Tipo A. Ao estudar este caso concluiu-se que ela havia adquirido um pouco do sangue de seu irmão gêmeo no útero, apresentando dois genomas diferentes em suas células sanguíneas. Tal condição veio a ser conhecida como Quimerismo e parecia, há muitos anos, ser uma raridade.

Atualmente, já se acredita que o quimerismo "pode ser mais comum do que percebemos", como destaca Linda Randolph, uma pediatra no Hospital Infantil de Los Angeles, autora de um comentário sobre quimerismo publicado no The American Journal of Medical Genetics em julho, 2013.

Os gêmeos podem misturar seu sangue no útero através do mesmo conjunto de vasos sanguíneos da placenta. Em outros casos, dois ovos fertilizados podem fundir-se formando um único embrião com dois genomas distintos. A maioria das quimeras embrionárias pode passar a vida inconsciente deste fato.

Uma mulher descobriu que ela era uma quimera aos 52 anos de idade, quando teve a necessidade de um transplante de rim. Ao ser testada para  encontrar um doador compatível, os resultados indicaram que, do ponto de vista genético, ela “não era a mãe” de dois de seus três filhos biológicos. Descobriu-se que ela havia se originado a partir de dois genomas. Um genoma deu origem ao seu sangue e parte de seus óvulos, enquanto outros óvulos carregavam um genoma diferente.

A partir destes achados, descobriu-se que as mulheres também podem receber os genomas de seus filhos, pois, após o nascimento de um bebê, ele pode deixar algumas células fetais no corpo de sua mãe, as quais podem viajar aos diferentes órgãos e serem assimiladas aos tecidos maternos. "É muito provável que qualquer mulher que já esteve grávida seja uma quimera", disse Randolph.

Quimera é um termo originado da descrição de monstro mitológico de origem grega formado pelo corpo de diferentes animais.
Para qualquer lugar que se olhe...

Como os cientistas começam a procurar quimeras sistematicamente, em vez de esperar por exames intrigantes, eles passaram a encontrá-los em uma fração notavelmente alta de pessoas. Em 2012, cientistas canadenses realizaram autópsias em cérebros de 59 mulheres, descobrindo neurônios com cromossomos Y em 63 por cento dos casos, originados, provavelmente, a partir de células originárias de seus filhos.

Em agosto de 2013, Eugen Dhimolea do Instituto do Câncer Dana- Farber, em Boston, e colegas relataram no The International Journal of Cancer, que células masculinas também podem se infiltrar no tecido mamário, uma vez que encontraram o cromossomo Y em amostras de tecido mamário em 56 por cento das mulheres investigadas.

Antes do sequenciamento de DNA, quando o mosaicismo passou a ser conhecido, ele era difícil de estudar em seres humanos, pois os cientistas só poderiam descobrir os casos em que as mutações e os efeitos eram grandes. Porém, desde 1960, pesquisadores descobriram que uma forma de leucemia é resultado de mosaicismo. Neste caso, uma célula hematopoiética sofre uma grande translocação cromossômica, movendo um grande pedaço de um cromossomo para outro, gerando a linhagem de células leucêmicas. Estudos posteriores confirmaram a hipótese de que o cancro é o resultado de mutações em células específicas.
Imagem do artigo original (DNA double take, 2013)

Todavia,  os cientistas tinham pouca ideia de como os casos mais comuns de mosaicismo iam além do câncer. As últimas descobertas deixam claro que o mosaicismo é bastante comum, mesmo em células saudáveis.

Dr. Urban e sua equipe, por exemplo, investigaram mutações em células chamadas fibroblastos, que são encontrados no tecido conjuntivo. Procuraram em particular nos casos em que um segmento de DNA foi repetido acidentalmente ou suprimido (duplicação ou deleção), encontrando que 30 por cento dos fibroblastos analisados apresentavam tais mutações. Michael Snyder e colegas, da Universidade de Stanford, procuraram mosaicismo realizando autópsias em seis pessoas que morreram de outras causas que não o câncer . Em cinco das seis pessoas autopsiadas, eles encontraram células em diferentes órgãos , com trechos de DNA que acidentalmente haviam sido duplicados ou deletados.

Agora que os cientistas estão começando a admitir que o quimerismo e mosaicismo são, relativamente, comuns, eles estão investigando os efeitos dessas condições sobre a nossa saúde.

Uma grande proporção dessas mutações pode ser uma condição benigna, pois estudos recentes sobre quimeras sugerem que esses genomas extras podem até serem benéficos, uma vez que as células quiméricas de fetos parecem buscar o tecido danificado e ajudar a curá-lo, por exemplo. Contudo, os cientistas também estão começando a encontrar casos em que mutações em células específicas ajudam a dar origem a outras doenças além o câncer. Como, por exemplo, a hemimegalencefalia, uma doença detectada na infância em que um dos hemisférios cerebrais cresce mais do que o outro, conduzindo a convulsões devastadoras, cujo tratamento implica na remoção cirúrgica do hemisfério com crescimento anômalo.

Dr. Walsh  e colegas estudaram o genoma de neurônios removidos durante estas cirurgias, descobrindo que alguns neurônios do hemisfério retirado apresentavam mutações em um gene. Duas outras equipes de cientistas identificaram, na mesma doença, mutações em outros genes, os quais controlam o crescimento de neurônios. Outros pesquisadores estão, atualmente, investigando se o mosaicismo é um fator presente em doenças mais comuns, como a esquizofrenia.

Os médicos não são os únicos cientistas interessados ​​em nosso mosaicismo ou quimerismo, pois os cientistas forenses, quando tentam identificar criminosos ou vítimas de homicídio pelo DNA querem evitar enganos. Em 2012, por exemplo, os cientistas forenses do Patrol Crime Division do estado de Washington descreveram que uma amostra de saliva e outra de esperma do mesmo suspeito de um caso de agressão sexual não coincidiam.

Os transplantes de medula óssea também podem confundir os cientistas forenses.

Pesquisadores da Universidade Médica de Innsbruck, na Áustria retiraram amostras da face de 77 pessoas que receberam transplantes até nove anos antes e, em 74 por cento das amostras, descobriram uma mistura de genomas - os seus próprios e os dos doadores de medula óssea. Nestes casos, as células-tronco transplantadas não tinham apenas substituído as células do sangue, mas também formaram células do epitélio da bochecha.

Todavia, embora o risco de confusão seja real, ele é gerenciável, pois os casos em que o mosaicismo ou quimerismo causem confusão eles podem ser esclarecidos. No estudo austríaco, por exemplo, os cientistas não encontraram células com o genoma dos doadores no cabelo.

Em contrapartida, para o aconselhamento os nossos muitos genomas representam maiores desafios, pois um teste de ADN que utilize apenas as células de sangue pode perder mutações causadoras de doença presentes em outros órgãos. Isso pode mudar à medida que os cientistas desenvolvam exames mais poderosos para investigar a presença de genomas diferentes num mesmo indivíduo e relacioná-los com doenças, mas isso ainda vai levar algum tempo.

Fonte:

Esta postagem é uma tradução resumida do artigo compartilhado pela Silvia Richter via Alex Popovkin, no grupo Bio-UFRGS anos 1980 do Facebook. Original em inglês: The New York Times – Science. DNA Double Take, 16/09/2013. http://www.nytimes.com/2013/09/17/science/dna-double-take.html?pagewanted=2&_r=0&ref=todayspaper

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