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Mosaico de Menina de Priscilla Oliveira (2012).
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Das aulas de biologia aos seriados de " CSI ", ouvimos repetidamente que nosso genoma é o cerne da nossa identidade, de forma que ao ler o DNA de uma única célula se obterá a informação genética de uma pessoa. Mas os cientistas estão descobrindo, com certa surpresa, que alguns indivíduos podem manifestar uma inusitada variabilidade genética.
Há não muito tempo, os pesquisadores pensavam que era raro as células de
uma única pessoa saudável diferirem
geneticamente de forma significativa, porém estão descobrindo que é relativamente
comum um indivíduo ter vários genomas. Algumas pessoas, por exemplo, tem grupos
de células com mutações que não são encontrados no resto do corpo, enquanto
outros têm genomas que vieram de outras pessoas ou embriões e são quimeras.
Segundo Alexander Urban, geneticista da Universidade de Stanford, já
havia rumores sobre isto há poucos anos, de forma hipotética, mas a sugestão de
haver variação genética generalizada em um único corpo costumava ser recebida
com ceticismo. Porém, uma série de trabalhos recentes demonstrou que esses
rumores não eram apenas hipotéticos. A variação dos genomas encontrados em uma
única pessoa era demasiado grande para ser ignorada.
Dr. James R. Lupski , um dos maiores especialistas sobre o Genoma
Humano do Baylor College of Medicine, escreveu em um comentário recente na
revista Science que a existência de múltiplos genomas em um indivíduo pode ter
um tremendo impacto sobre a prática da medicina, pois os cientistas já haviam
encontrado ligações entre a presença de vários genomas e certas doenças raras,
e agora eles estão começando a investigar variações genéticas para lançar luz
sobre doenças mais comuns.
Esta nova visão de identidade genética também levanta questões sobre
como os cientistas forenses devem usar as evidências de DNA para identificar as
pessoas e está colocando desafios para o aconselhamento
genético, que não pode assumir que a informação genética de uma célula pode
dizer-lhes tudo sobre o DNA de uma pessoa.
O sequenciamento do DNA é uma ferramenta usada para compreender as
variações genéticas que podem aumentar o risco de certas doenças, de forma que geneticistas
podem olhar para os resultados destes para ajudar os pacientes e suas famílias
lidar com certas doenças, por exemplo, indicando a alteração da dieta quando o
indivíduo não têm um gene para produção de uma enzima.
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O sequenciamento de DNA se tornou rápido e relativamente
barato nos últimos 20 anos (The New York Times, 2013).
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Como o custo de sequenciar um genoma inteiro caiu drasticamente nos
últimos 20 anos, agora é possível para os médicos solicitar exames da sequência
de todo o genoma de alguns pacientes e, desse modo, eles estão identificando ligações
entre mutações e doenças que nunca eram percebidas antes. No entanto, todos
estes testes potentes ainda são baseados no pressuposto de que, dentro do nosso
corpo, há um e apenas um genoma.
Diagrama humano
Quando um óvulo e um espermatozoide combinam seu DNA , produzem o
genoma do zigoto que contém todas as informações necessárias para a construção
de um novo ser humano . À medida que o zigoto se divide para formar um embrião,
produz novas cópias desse genoma original. Durante décadas, os geneticistas têm
investigado como um embrião pode usar as instruções de um único genoma para
desenvolver estruturas tão diferenciadas como os músculos, os nervos e demais órgãos
do corpo humano.
Nesse contexto, os cientistas acreditavam que eles poderiam olhar para
o genoma de células retiradas da mucosa bucal e serem capazes de aprender sobre
os genomas de células do cérebro ou o fígado ou qualquer outra parte do corpo.
Em meados dos anos 1900 , os cientistas começaram a obter pistas que
isso nem sempre é verdade. Em 1953 , por exemplo, uma mulher britânica doou um
litro de sangue . Descobriu-se que parte de seu sangue era do tipo O e parte do
Tipo A. Ao estudar este caso concluiu-se que ela havia adquirido um pouco do
sangue de seu irmão gêmeo no útero, apresentando dois genomas diferentes em
suas células sanguíneas. Tal condição veio a ser conhecida como Quimerismo e
parecia, há muitos anos, ser uma raridade.
Atualmente, já se acredita que o quimerismo "pode ser mais comum
do que percebemos", como destaca Linda Randolph, uma pediatra no Hospital
Infantil de Los Angeles, autora de um comentário sobre quimerismo publicado no The American Journal of Medical Genetics
em julho, 2013.
Os gêmeos podem misturar seu sangue no útero através do mesmo conjunto
de vasos sanguíneos da placenta. Em outros casos, dois ovos fertilizados podem
fundir-se formando um único embrião com dois genomas distintos. A maioria das quimeras
embrionárias pode passar a vida inconsciente deste fato.
Uma mulher descobriu que ela era uma quimera aos 52 anos de idade,
quando teve a necessidade de um transplante de rim. Ao ser testada para encontrar um doador compatível, os resultados
indicaram que, do ponto de vista genético, ela “não era a mãe” de dois de seus
três filhos biológicos. Descobriu-se que ela havia se originado a partir de
dois genomas. Um genoma deu origem ao seu sangue e parte de seus óvulos,
enquanto outros óvulos carregavam um genoma diferente.
A partir destes achados, descobriu-se que as mulheres também podem receber
os genomas de seus filhos, pois, após o nascimento de um bebê, ele pode deixar
algumas células fetais no corpo de sua mãe, as quais podem viajar aos
diferentes órgãos e serem assimiladas aos tecidos maternos. "É muito
provável que qualquer mulher que já esteve grávida seja uma quimera",
disse Randolph.
Para qualquer lugar que se
olhe...
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Quimera é um termo originado da descrição de monstro mitológico de origem grega formado pelo corpo de diferentes animais. |
Como os cientistas começam a procurar quimeras sistematicamente, em vez
de esperar por exames intrigantes, eles passaram a encontrá-los em uma fração notavelmente
alta de pessoas. Em 2012, cientistas canadenses realizaram autópsias em
cérebros de 59 mulheres, descobrindo neurônios com cromossomos Y em 63 por
cento dos casos, originados, provavelmente, a partir de células originárias de
seus filhos.
Em agosto de 2013, Eugen Dhimolea do Instituto do Câncer Dana- Farber,
em Boston, e colegas relataram no The International Journal of Cancer, que
células masculinas também podem se infiltrar no tecido mamário, uma vez que
encontraram o cromossomo Y em amostras de tecido mamário em 56 por cento das
mulheres investigadas.
Antes do sequenciamento de DNA, quando o mosaicismo passou a ser
conhecido, ele era difícil de estudar em seres humanos, pois os cientistas só
poderiam descobrir os casos em que as mutações e os efeitos eram grandes. Porém,
desde 1960, pesquisadores descobriram que uma forma de leucemia é resultado de
mosaicismo. Neste caso, uma célula hematopoiética sofre uma grande translocação
cromossômica, movendo um grande pedaço de um cromossomo para outro, gerando a
linhagem de células leucêmicas. Estudos posteriores confirmaram a hipótese de
que o cancro é o resultado de mutações em células específicas.
Todavia, os cientistas tinham
pouca ideia de como os casos mais comuns de mosaicismo iam além do câncer. As
últimas descobertas deixam claro que o mosaicismo é bastante comum, mesmo em
células saudáveis.
Dr. Urban e sua equipe, por exemplo, investigaram mutações em células
chamadas fibroblastos, que são encontrados no tecido conjuntivo. Procuraram em
particular nos casos em que um segmento de DNA foi repetido acidentalmente ou
suprimido (duplicação ou deleção), encontrando que 30 por cento dos
fibroblastos analisados apresentavam tais mutações. Michael Snyder e colegas,
da Universidade de Stanford, procuraram mosaicismo realizando autópsias em seis
pessoas que morreram de outras causas que não o câncer . Em cinco das seis
pessoas autopsiadas, eles encontraram células em diferentes órgãos , com
trechos de DNA que acidentalmente haviam sido duplicados ou deletados.
Agora que os cientistas estão começando a admitir que o quimerismo e
mosaicismo são, relativamente, comuns, eles estão investigando os efeitos
dessas condições sobre a nossa saúde.
Uma grande proporção dessas mutações pode ser uma condição benigna,
pois estudos recentes sobre quimeras sugerem que esses genomas extras podem até
serem benéficos, uma vez que as células quiméricas de fetos parecem buscar o
tecido danificado e ajudar a curá-lo, por exemplo. Contudo, os cientistas
também estão começando a encontrar casos em que mutações em células específicas
ajudam a dar origem a outras doenças além o câncer. Como, por exemplo, a hemimegalencefalia,
uma doença detectada na infância em que um dos hemisférios cerebrais cresce mais
do que o outro, conduzindo a convulsões devastadoras, cujo tratamento implica
na remoção cirúrgica do hemisfério com crescimento anômalo.
Dr. Walsh e colegas estudaram o
genoma de neurônios removidos durante estas cirurgias, descobrindo que alguns
neurônios do hemisfério retirado apresentavam mutações em um gene. Duas outras
equipes de cientistas identificaram, na mesma doença, mutações em outros genes,
os quais controlam o crescimento de neurônios. Outros pesquisadores estão,
atualmente, investigando se o mosaicismo é um fator presente em doenças mais
comuns, como a esquizofrenia.
Os médicos não são os únicos cientistas interessados em nosso mosaicismo
ou quimerismo, pois os cientistas forenses, quando tentam identificar
criminosos ou vítimas de homicídio pelo DNA querem evitar enganos. Em 2012, por
exemplo, os cientistas forenses do Patrol Crime Division do estado de Washington
descreveram que uma amostra de saliva e outra de esperma do mesmo suspeito de
um caso de agressão sexual não coincidiam.
Os transplantes de medula óssea
também podem confundir os cientistas forenses.
Pesquisadores da Universidade Médica de Innsbruck, na Áustria retiraram
amostras da face de 77 pessoas que receberam transplantes até nove anos antes
e, em 74 por cento das amostras, descobriram uma mistura de genomas - os seus
próprios e os dos doadores de medula óssea. Nestes casos, as células-tronco
transplantadas não tinham apenas substituído as células do sangue, mas também formaram
células do epitélio da bochecha.
Todavia, embora o risco de confusão seja real, ele é gerenciável, pois os
casos em que o mosaicismo ou quimerismo causem confusão eles podem ser
esclarecidos. No estudo austríaco, por exemplo, os cientistas não encontraram células
com o genoma dos doadores no cabelo.
Em contrapartida, para o aconselhamento os nossos muitos genomas
representam maiores desafios, pois um teste de ADN que utilize apenas as
células de sangue pode perder mutações causadoras de doença presentes em outros
órgãos. Isso pode mudar à medida que os cientistas desenvolvam exames mais
poderosos para investigar a presença de genomas diferentes num mesmo indivíduo
e relacioná-los com doenças, mas isso ainda vai levar algum tempo.
Fonte:
Esta postagem é uma tradução resumida do artigo compartilhado pela Silvia Richter via Alex Popovkin, no grupo Bio-UFRGS anos 1980 do Facebook. Original em inglês: The New York Times – Science. DNA Double Take, 16/09/2013. http://www.nytimes.com/2013/09/17/science/dna-double-take.html?pagewanted=2&_r=0&ref=todayspaper
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