A
natureza sempre desempenhou papel preponderante no imaginário das civilizações.
Através do raio que cai, da colheita que fracassa, da erupção vulcânica, dos
ventos destruidores, da água que a tudo arrasa, o homem se confrontou com
forças devastadoras, obrigando-o à busca de explicações.
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Narciso y Eco, pintura de John William Waterhouse por Bioeticas.org |
Outro
aspecto que sempre o intrigou é a variabilidade de dotes físicos e intelectuais
que homens e mulheres apresentam desde o nascimento; alguns surgem aquinhoados
com vastas capacidades, enquanto outros são desprovidos, condenados, desta
forma, a uma existência rústica a executar tarefas repetitivas.
Antigas
tradições registram que os reis antigos mandavam vir os oráculos quando nasciam
seus herdeiros, numa tentativa de burlar a natural ignorância das coisas
vindouras e tomar conhecimento antecipadamente dos futuros fados reservados às
suas crianças.
Assim,
o homem procurava os augúrios para descobrir os melhores tempos para guerrear,
para deitar a semente na terra, para fazer paz, para agir mais proximamente
possível da “lei natural”, que se imaginava ser aquela ditada pela vontade dos
deuses, a fim de escapar das catástrofes naturais.
A
modificação do convívio humano com os diversos aspectos naturais no decorrer
dos séculos se deu na maneira como exacerbou o seu desejo de modificá-la e dominá-la.
O
surgimento de um deus único, antropomórfico e dissociado da natureza induziu o
aparecimento de um viés ético completamente novo em relação a toda a história
em que os povos temiam os elementos naturais, não apenas por seu poder intrínseco
de destruição, mas pelas forças inteligentes que os moviam.
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Imagem frequentemente associada à palavra Deus no Google. |
À
medida que Deus foi exilado para um mundo distante chamado céu, aqui na terra o
homem, feito à sua imagem e semelhança, tudo podia. As fronteiras éticas tiveram
que açambarcar as ações deste autocriado rei deus e legitimaram seu poder devastador,
sem a necessidade de prestação de contas aos deuses próximos.
Uma
vez alicerçado o universo ético em que ao homem é dado o poder ilimitado de
atuação sobre a natureza interna e externa, enfraqueceu-se a oposição à
legitimação do seu direito de “brincar de ser deus”.
As
pesquisas na engenharia genética abriram um vasto campo de possibilidades, nas
quais uma ética utilitarista debruça-se para apreender as novas fronteiras. Um
dos debates se situa na possibilidade do desenvolvimento de exemplares humanos
em laboratório já predestinados a serem escravos ou senhores, o que destruiria
definitivamente as implicações do modelo (homem → ser natural → produto divino)
e tornaria inócuo o ideal de democracia onde todos têm os mesmos direitos ao nascer.
Longe
do paulatino esvaziamento do conceito de homem moral nos últimos dois séculos, Aristóteles
tece suas argumentações sob uma ética em que a natureza é o bem maior: “...pois, tudo que ocorre segundo a natureza
é naturalmente tão bom quanto pode ser...(EN,1099 b 27)”.
Não obstante toda
a herança judaico-cristã posterior, que alterou profundamente a maneira de
pensar o mundo, aquelas reflexões continuam a lançar luzes sobre os nossos problemas.
Jamais o edifício ético ocidental se divorciou da herança aristotélica.
Podemos
pensar que resolvemos algumas questões pendentes naqueles tempos, mas também
devemos aceitar que o cerne da ética construída por Aristóteles traz ainda hoje
dilemas não superados.
Por Isaías Malta da Cunha
Março/2006
Revisado
e ilustrado por Gladis Franck da Cunha
Abril/2012
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