18 dezembro, 2011

Percepção Humana: há um efeito de precedência global em audição e visão.

por
Outono de Giuseppe Arcimboldo
A compreensão das relações de percepção entre o todo e suas partes sempre foi um desafio. Um exemplo marcante da complexidade das relações todo-parte (ou global-local) é a pintura "Outono", de Giuseppe Arcimboldo de 1573 (imagem acima). Esta tela representa o retrato de um homem composto de legumes e frutas característicos do outono. O retrato é reconhecível à primeira vista, mas à medida que é observado o observador se tornar ciente de que ele não é composto por um rosto humano.

Em neurociências, um grande esforço de pesquisa tem sido realizado para investigar as relações entre as características globais e locais, buscando compreender como estas duas percepções visuais distintas interagem. Sugere-se que essa distinção pode definir uma função geral da percepção que contribui para a distinção do processamento global e local em todas as modalidades perceptivas (visão, audição, tato e paladar).

No entanto, o esforço de investigação do processamento global-local tem sido dirigido principalmente para a modalidade visual, faltando evidências de que essa dicotomia também se aplique a outras modalidades.

Nesse sentido, Lucie Bouvet, Stéphane Rousset, Sylviane Valdois e Sophie Donnadieu realizaram uma pesquisa para descobrir se a distinção global-local  se aplicava tanto ao campo visual quanto auditivo e se há um mecanismo comum de percepção entre diferentes modalidades.

Quando percebemos cenas naturais, informações locais e globais são semanticamente dependentes, a percepção da floresta pode ajudar a perceber as árvores e vice-versa. Para passar por essa questão metodológica, Navon (1977) usou formas hierárquicas na modalidade visual para avaliar independentemente o processamento global e local e investigar como esses dois níveis de processamento  interagem.

Os níveis globais e locais de processamento foram dissociados, organizando os elementos locais para a construção de uma forma global. Desse modo, os elementos locais e a forma global poderiam ser congruentes ou não (por exemplo, um "S" grande composto de pequenos "Ss" ou pequenos "Hs").

Navon relatou que os participantes eram mais rápidos para identificar as formas globais do que os elementos específicos e ficavam perturbados pela identidade da forma global quando os elementos locais eram não-congruentes, ou seja, ficavam perturbados com um S grande formado por pequenos “Hs”, por exemplo.


 Estes resultados ilustram o Efeito de Precedência Global (GPE – global precedence effect).  Os estudos sobre esse efeito já levaram a duas conclusões: 1) a informação global está disponível mais cedo do que as informações dos detalhes (local) e 2) o processamento global é automático: não podendo ser evitado apesar de instruções explícitas para focar a atenção no nível local.

Embora seja um efeito robusto, o GPE pode ser modulado ou revertido por condições experimentais ou conforme as características do estímulo. Por exemplo, muitas características como ângulo visual da forma global e dispersão de elementos locais, duração da exposição, a incerteza espacial e a natureza dos estímulos são conhecidas por afetar o GPE tanto que um efeito contrário, uma precedência local, pode ser às vezes obtida (observe abaixo a figura da Primavera que Giuseppe Arcimboldo pintou a partir dos mesmos critérios da tela outono e veja como esta informação modifica sua percepção!).

Primavera de Giuseppe Arcimboldo
No processamento paralelo de informação global/local, quando a informação é processada simultaneamente nos dois níveis, o global pode começar antes que o processamento local seja totalmente concluído. Esta é a explicação que tem sido proposta para o efeito de prevalência do processamento global - GPE.

De acordo com esta concepção haveria uma sobreposição temporal entre os dois níveis de análise, mas com maior velocidade para identificação do quadro geral. Este modelo de iteração é apoiado por dados de neuroimagem e EEG.

As baixas frequências fornecem informação espacial global e são processados pelo caminho dorsal visual enquanto o caminho ventral visual processa as altas frequências da informação espacial-local. Pelo fato da via visual dorsal ser mais rápida do que a ventral, a informação "global" (resultado de baixas e médias frequências espaciais) está disponível mais cedo do que a informação "local" (resultado das frequências altas).

Além desta explicação relativa às frequências dos sinais para o Efeito da Prevalência Global (GPE), vale ressaltar que há também uma especialização hemisférica para o processamento global e local. Na verdade, pacientes com lesão cerebral no hemisfério esquerdo exibem um déficit de percepção dos elementos locais, enquanto os pacientes com lesões no hemisfério esquerdo apresentam déficits na percepção global.

Estudos de neuroimagem com participantes saudáveis demonstraram que o hemisfério direito é mais ativado durante o processamento global e o hemisfério esquerdo durante o processamento local.

Mais recentemente, foi demonstrado que as frequências visuais espaciais são diferencialmente processadas por cada hemisfério. Frequências espaciais baixas (informação global) dependem, principalmente, do hemisfério direito enquanto as frequências espaciais altas (informações locais), baseiam-se principalmente no hemisfério esquerdo.

Assim, os elementos visuais locais e globais parecem ser processadas pelos hemisférios esquerdo e direito, respectivamente, devido às suas especializações para as frequências espaciais.

A partir destes dados Bouvet e equipe, considerando que a audição parece ser uma contrapartida direta para a visão, levantaram a seguinte questão: a diferenciação global-local segue o mesmo processamento nesta outra modalidade perceptiva?

Para responder a este questonamento, os pesquisadores  avaliaram a cognição auditiva global-local, perguntando aos participantes se duas melodias desconhecidas eram idênticas ou não.

Para tanto eles criaram estímulos sonoros caracterizados por diferenças, tanto em nível global quanto local. O nível local era definido pelos intervalos do compasso, ou seja a distância entre duas notas, enquanto o nível global correspondia à melodia, definida pelo tom das notas, independentemente, do valor da afinação.

Os critérios que definem os intervalos entre as notas como processamento local e a melodia como processamento global são fundamentados em três aspectos;

1- Primeiro, os intervalos são pequenas unidades incorporadas hierarquicamente em uma unidade maior, a melodia (ou compasso).

2- Em segundo lugar, demonstrou-se que os não-músicos eram mais propensos a usar o tom das notas para discriminar melodias, o que implica que, para não-músicos, o contorno melódico é uma sugestão mais saliente do que o processamento de intervalos.

3- Em terceiro lugar, estas duas características musicais envolvem especialização hemisférica. Estudos de pacientes com danos cerebrais revelaram que os pacientes que sofrem de uma lesão temporal do hemisfério esquerdo podem perceber o contorno, mas não a alteração do intervalo enquanto pacientes com lesão cerebral equivalente do hemisfério direito são prejudicados no processamento de ambos: melodia e intervalo. Esta observação fornece evidências de que o contorno e as características de intervalo são organizadas hierarquicamente: as informações de intervalo não podem ser processadas se a informação de melodia não é processada conjuntamente.

Um estudo anterior de Liegeois Chauvel (1998) também revelou que o giro temporal superior, mais particularmente sua parte posterior, é necessário para o processamento da melodia. Em conjunto, estes resultados fornecem evidências convergentes de que a detecção de alterações melódicas envolve o processamento global (hemisfério direito), enquanto a detecção de alterações de intervalo  depende de processamento local (hemisfério esquerdo).

Além disso, a especialização hemisférica em audição parece ser análoga à da visão, a estrutura global sendo processada preferencialmente pelo hemisfério direito, enquanto os elementos locais pelo esquerdo.

Até o estudo de Bouvet e colaboradores, nenhuma pesquisa havia comparado o processamento global e local para estímulos visuais e auditivos com os mesmos participantes.

Para reforçar a teoria do processo de percepção unificado, era crucial demonstrar que os mesmos mecanismos estavam envolvidos nos processamento da informação global e local nas duas modalidades (visão e audição). Ou seja, era necessário demontrar que os participantes que apresentam um GPE para visão também apresentam GPE audtivo. Nesse estudo, portanto, foram propostas duas tarefas que demandavam o mesmo paradigma de identificação.

A tarefa visua usou o clássico estímulo visual  de Navon (1977), enquanto a tarefa auditiva usou o estímulo rápido-lento descrito por  Justus and List (2005), com a proposta de identificação de Sanders and Poeppel (2007). A escolha destes estímulos foi motivada pela evidência de que o tempo é uma melhor contrapartida para a percepção espacial do que a frequência.

 A hipótese levanta foi: se o mesmo padrão GPE é subjacente à visão e audição, estes estímulos devem apresentar respostas semelhantes. Participaram da pesquisa 20 jovens destros não músicos (sete homens) da comunidade urbana de Grenoble, com idade média de 26 anos e com visão e audição normais.

O Estímulo visual constou de 4 figuras com dimensões equivalentes, duas congruentes (quadrado/quadrado e círculo/círculo) duas incongruentes (quadrado/círculo e círculo/quadrado). Já o estímulo auditivo envolveu 4 sequências melódicas com nove grupos de tons criadas usando um software com timbre de piano (veja figura abaixo).

(A- congruente B- incronguente)
 Através desta pesquisa verificou-se que, em ambas as modalidades, há uma vantagem da percepção global sobre a local, havendo uma interferência do processamento global no local. 

Outro resultado convincente foi uma correlação significativa nos dois tipos de percepção, pois os mesmos participantes exibiram estilo de processamento semelhante para as duas modalidades.

Estes resultados apoiam firmemente a ideia de que há um estilo cognitivo para processar a informação e um princípio comum para o processamento das percepções, onde o aspecto global antecede e influencia a percepção dos detalhes.

Em resumo: Evidências indicam processamento semelhante com efeito de prevalência global para as duas modalidades cognitivas de percepção visual e auditiva.

Traduzido e editado de:
BOUVET, L. ; ROUSSET, S. ; VALDOIS, S. ; DONNADIEU, S. Global precedence effect in audition and vision: Evidence for similar cognitive styles across modalities. Acta Psychologica. Vol. 138, Outubro 2011, P,. 329-335, disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0001691811001545

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts with Thumbnails