30 junho, 2011

O nada faz gelar os ossos!

“Que o amor seja eterno, enquanto dure” é a sentença dos que contemplam os amantes que se inebriam sob os eflúvios da paixão. Mas, mesmo acreditando-se na finitude do amor, em relação à vida, não se aceita coisa menor do que a vida eterna. Todos vivem eternamente até o momento em que se descobrem mortos.

Romeu e Julieta

Os jovens se apegam nas décadas vindouras e os velhos se aferrolham ao passado para justificar a falta de memória da morte, que apesar disto é companheira de todas as horas. Pelo canto do olho é possível vislumbrar a sombra que segue incansavelmente os vivos. O nada faz gelar os ossos, provoca tremedeiras e produz pesadelos.

Falar sobre o nada é caso de imperiosa dor. Por força dos apegos focalizados na temporalidade da sucessão dos batimentos cardíacos, cria-se uma cegueira voluntária sobre todo o resto da realidade que existiu antes daquela pequena bomba ter batido pela primeira vez no peito do embrião e existirá mesmo depois da última bombada.

Ser ou não ser é a questão fundamental do ser humano proposta por um dos maiores gênios humanos: William Shakespeare. Não ser é o mergulho no nada, que ninguém quer. Mas ele está aí, corroendo a vida rotineira das pessoas e espalhando nos seus dias a poeira voluptuosa da ânsia vazia.

O Prestidigitador de Bosch
 Não ser é a questão mais importante que assola o ser humano e que, mesmo que ele se retorça e se entorte para não encará-la, ela deforma a sua vida e a transforma num inferno, até que ele, de olhos esbugalhados contempla o alfa e o ômega de tudo e de si mesmo, o ponto de partida e de chegada que tragará a tudo e a todos irremediavelmente.

Porque a percepção da questão fundamental do ser ou não ser se estabeleceu em termos tão antagonicamente irreconciliáveis, tendo, a vida, ficado com todas as benesses, enquanto à morte toda a tragédia foi atribuída?

O conceito de separação entre corpo e alma marcou o início da atual era de sofrimento psíquico. Na idade média o corpo foi renegado ao status de “casa do pecado”, o que tornou imperativo a mortificação da carne em prol da elevação do espírito, único ente apto ao usufruto da vida eterna.

Na idade moderna abstraiu-se o espírito para o escaninho dos assuntos religiosos e o antigo reino dos céus se fez reino dos corpos, alterando a máxima medieval que predicava a felicidade como um futuro a ser vivido no paraíso das almas, para o da realização corpórea imediata: viva para que o corpo usufrua os prazeres que ele proporciona e obtenha através dele as delícias desejadas pelos órgãos dos sentidos. Estava inaugurada a era do paraíso na terra, um lugar em que a vida é a grande meta e a morte, um fim indesejável e nefasto que traz consigo, nas suas negras asas, a inevitabilidade do não ser.

No entanto, nas duas visões cósmicas há um denominador comum: ambas são permeadas pelo desejo inequívoco de perpetuação do ser. Na primeira é a salvação do espírito a razão da existência, na segunda é o desejo do corpo de prolongar indefinidamente sua estada no paraíso terrestre. Em ambas há a suprema busca do ter e subsistir, seja neste mundo ou no além.

Sendo assim, o despossuimento ocasionado pelo nada tem o mesmo significado tanto para o homem medieval, quanto para o hodierno, porque significa a ruína definitiva da almejada salvação. Nem o inferno cristão, nem seu paraíso celeste e nem o contemporâneo reino do corpo elaboram a figura da nulificação. No imaginário ocidental é absolutamente horrorosa a ideia da aniquilação do ser, em que o um passa a fazer parte do todo, renunciando ao eu, cuja essência e fim é buscar desesperadamente sua perpetuação.


Assim escreveu-se durante os séculos o “script” de uma tragédia que é encenada continuamente nos palcos da humana existência. O esquecimento voluntário renovado sob a esperança da vida eterna não consegue apagar de todo a dor de fundo que espreita a cada falha do coração, a cada falecimento de um ente querido, a cada falta de ar, a cada mudança da maré da fortuna.

Mesmo negando resolutamente a marcha inexorável ao não ser, os humanos caminham na sua direção, distraindo-se com as pequenas novidades do caminho, dedicando suas vidas a não perceber a realidade concreta que lhes estoca incessantemente os sentidos: o nada se infiltrando e desintegrando até as coisas mais palpáveis e seguras, até que um dia a própria tábua de salvação é surrupiada, restando apenas a miserável ilusão humana, chama de esperança ingênua encontrada nos olhos dos moribundos.

Por Isaias Malta

Fontes das ilustrações:
1- Romeu e Julieta – Arnaldo Poesia
2- O Prestidigitador de Bosch - Knowledgerush
3- Louco do Tarot - DharmaDhannyaEl

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