A sociedade é constituída de indivíduos que em seu conjunto são chamados de povo ou “massa”. Os “sem-palavra” são o recheio das civilizações, personagens à margem da locução histórica. Sempre foram objetos de poder, produziram bens e alimentaram a aristocracia, mas nunca assumiram o papel de sujeitos.
A religião os quer resgatar do lodo do pecado. A sua relação com os deuses ao tempo dos romanos beirava a escravidão segundo Paul Veyne (1989,p.206) “...deixa a gente do povo passar o dia inteiro num templo servindo o deus como escravos, imitando durante horas, diante da estátua, os gestos do cabeleireiro ou da camareira.” Para Aristóteles (EN,1095b,cap.5) “A humanidade em massa se assemelha totalmente aos escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais...”.
Se religião e filosofia condenaram o homem comum, quem tomou suas dores? Não foram certamente os notáveis. Quem foram a cozinheira de Platão, o acionador de foles do órgão de J.S. Bach, o sapateiro de Descartes, o barbeiro de Sir Isaac Newton? A base da pirâmide sociocultural da humanidade engendra suas existências sem qualquer locução histórica duradoura, passando como herança para as gerações vindouras o silêncio do não ter sido.
A filosofia sugere que o primeiro estado da existência é dominado pelas paixões. As vidas atoladas no primeiro estágio humano são escravas das coisas sensíveis e se portam como bolhas de sabão ao sabor do vento. Heróis-escritores concordam com a analogia da lagarta, o estado transitório da vida comum não pode ser admitido como um fim em si mesmo e não o é. Bilhões de lagartas não são dignas de figurar nas narrativas.
A história da humanidade é a trajetória do gênero humano. Que história é esta? Certamente a narração de uns poucos “sobreviventes” dotados de capacidades intelectivas privilegiadas. A história miúda do açougueiro se perdeu com suas carnes, do ferreiro com seus artefatos, da dona de casa com seus afazeres. O homem, tido como sujeito da história, é o resultado da fala de poucos indivíduos.
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Imagem do filme Powaqqatsi |
Do mercador, da cortesã, do sapateiro, do artesão não chegaram histórias? Ou foram solapadas pela máquina que seleciona as histórias “certas”? A esmagadora maioria dos humanos é feita de gente condenada ao mais baixo dos viveres: o usufruto dos prazeres sensuais, condenação advinda de porta-vozes empossados por um poder que certamente não veio das ruas. Quem vive absorvido pelo caleidoscópio da vida diária teria tempo de deixar um testamento intelectual?
Acredita-se que bebedeiras, filhos chorando, atividades desgastantes, conflitos conjugais, perdas, dores e todas as injunções sofridas no intercurso de uma vida banal, necessariamente minam o direito da expressão. Indivíduos comuns devem encenar a miséria humana no palco da vida, desde que sumam ao término do ato. O senso comum entronizou a noção de que a anomia é o epitáfio plausível para o homem comum.
Onde estão as vozes dos perdidos? Por que seus bilhetes, suas cartas e os seus devaneios escritos em pedaços de papel ou papiros se perderam? Será que nada escreveram? As dores comuns, as aporias do dia-a-dia, as inquietações existenciais, nunca provocaram tensões de ruptura suficientes para obrigar o seu registro?
Os versos medíocres, as prosas insossas, as narrativas fúteis, as cartas comezinhas, as cartas de despedida dos suicidas, as declarações de amor, enfrentaram o fogo e a descrença. Os fragmentos que sobreviveram são incapazes de recontar as narrativas na voz dos próprios personagens.
O pedestre casual de uma cidade moderna despido do seu celular, televisão, carro, eletrodomésticos, computador, em suma, de todos os artefatos que fazem dele cidadão-do-século-XXI, é um aldeão medieval. A máscara do nosso aldeão cairia no momento em que fosse acareado com seu congênere da idade média. O que os diferenciaria? Além das comodidades a que está acostumado, qual é a visão de mundo que este homem poderia externar para provar sua diferenciação histórica daquele antigo modelo?
O novo cosmo de Copérnico? A nova física de Sir Isaac Newton? O novo eu de Descartes? Alguma obra de algum destes senhores deixou alguma marca indelével no espírito dos cidadãos atuais que lhes permitam uma explicitação dos vieses históricos causais da sua formação civilizatória?
Caso ele tivesse o azar de cair nas mãos de um interrogador ao estilo socrático, que respostas ele daria às seguintes perguntas: se a “crença” atual é a terra redonda, o que prova isto? Não sendo mais a terra o centro do universo, que postulados sustentam a destruição do geocentrismo? Tendo o tempo perdido seu caráter linear e absoluto, qual é o seu novo paradigma? Como são formadas as imagens numa televisão? Qual é o princípio de funcionamento do computador?
Provavelmente, o nosso aldeão contemporâneo lançaria mão de um arsenal de opiniões acerca das benesses que o servem e do universo que o cerca, mas como não conhece nem rudimentos dos modelos teóricos, técnicos, ontológicos, científicos e sociológicos mais básicos, passaria ideias delirantes, muito semelhantes àquelas daqueles seres que perambulavam em andrajos pelas ruelas medievais anunciando o fim do mundo.
Durante o percurso da humanidade no planeta, quais foram as reais marcas deixadas na sua psique pela religião, filosofia e ciência?
A vida sem sentido foi criada por quem? A finalidade sempre foi o motor da existência comum. Servir aos deuses, gerar filhos e usufruir prazeres, não necessariamente nesta ordem, permearam a vida do homem pré-industrial. Mas os “heróis” pensadores lutaram bravamente pela secularização dos ideais humanos e moldaram um conceito de liberdade autossuficiente, que visava retirar do homem os grilhões de escravidão ao imaginário medieval. Morto o escravo, jaz o homem comum nú de significação.
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Imagem do filme Powaqqatsi |
Toda a finalidade e toda a luta contra o pecado foram substituídas pela liberdade, um conceito novo que isolou o homem do universo tornando-o um ente no deserto, ser dotado de livre arbítrio vagando a esmo por paisagens prenhes de infinitas possibilidades.
A nova roupagem da liberdade dissolveu os objetivos transcendentais, esvaziando a caracterização do homem feita por Aristótoles (Política,1253a): “a característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade”.
O homem comum segue na sarjeta da história sendo ao invés de sujeito, limpador de botas, produtor de alimentos, asfaltador de estradas, sendo mãos e nunca voz concatenada; apenas um balbucio lamuriento de pequenos penares.
Por Isaias Malta da Cunha
Edição e ilustração: Gladis Franck da Cunha
Referências Bibliográficas
1- Aristótoles, Ética a Nicômacos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
2- Aristótoles, Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.
3- Veyne, Paul (org). Do império Romano ao Ano Mil in: Ariés, Philippe; Duby Georges (diretores), A História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Que matéria! O máximo! Deste VIDA ao pequeno, que deveria ser igual a todas e todos! VEZ e VOZ!!!! Quem terá sido a cozinheira de Platão, aquele da caverna?
ResponderExcluirgenial!
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