12 fevereiro, 2011

O medo da morte é apenas falta de educação?

Monólogos sobre o nada - parte V.

Quem é educado para a morte? Quem cultiva os rigorosos saberes sobre a última fronteira? No ocidente este assunto tem atraído apenas os poetas, compositores malditos, filósofos marginalizados, vagabundos letrados e outros que vivem no lusco fusco entre o dia da vida cotidiana e a noite voraz que toma de assalto as visões dos agonizantes.

Ter estado na zona limítrofe entre a ilusão, que aqui é chamada de realidade e a cessação dos olhos vendados, aproxima a existência ordinária do “eternum continuum” onde a dualidade vida/morte é superada.

Porém, há mil impeditivos para o desvelamento, e uma vida dedicada aos afazeres é o maior deles.

Quem se dedica de corpo e alma à construção dos pilares da sua vida, filhos, bens, lazer, religião, amores, trabalho, ou seja, aquele que triunfa no mundo competitivo, está sempre tão longe da coisa tão perto, que mesmo que tropece com ela, não estará preparado para entendê-la porque nunca se viu caindo no vazio.

Quem nunca perdeu tudo, é inválido para encarar sua própria morte de olhos nos olhos. Então provavelmente será arrancado dos seus bens preciosos como o ladrão o é do seu botim, como um fracassado que nunca se preocupou em enxergar o real na frente do seu nariz.

Todos buscam o tudo. Uma vida é consumida em ter, experimentar, possuir mesmo que a ilusão do eterno se desfaça constantemente. Consomem-se anos para usufruir instantes que comprometem décadas, na busca incessante de algo, de alguma coisa, que substitua o grande vazio que toma conta de todos os horizontes, caso não se fuja do inevitável.

Colagem humana via Crônicas da Vida Escolar (Mil crônicas)
 Assim, a morte é postergada e o confronto contra o nada, deixado para amanhã, sempre amanhã, adiando, adiando, até que o nada irrompa e encontre alguém menos preparado para ele do que quando tinha nascido. Então é tarde, e a grande missão de enfrentar a nulificação é desperdiçada pelo incontinente apego às coisas efêmeras, imagens que esvoaçaram miradas brevemente através do basculante da existência.

A aquisição final, a mais importante, o passo derradeiro do estado de ter tudo para o de ser nada se transforma num pesadelo de quem sempre foi preparado para se agarrar ao efêmero, ao passageiro, à tábua que surge do naufrágio do navio, um dia sólido, chamado realidade.

Ninguém foi educado para a imobilidade, a quietude, o silêncio, a passividade e a paciência, porque são aspectos do nada que povoam a vida assim como o espaço interatômico preenche quase toda a matéria.
A ansiedade sempre é a corrosão do nada que já descascou o fino verniz do contentamento com a vida corriqueira. Ela assombra o ser e o joga contra a visão da matéria escura, que compõem tanto universo, quanto o mundo psíquico.

A cada perda instala-se um novo vazio, a cada vazio a pessoa aproxima-se do nada fatal, mas luta bravamente agarrando-se ao pouco que restou para não soçobrar, porque foi treinada para isto. Toda a sua vida foi dedicada à fortificação da vontade de ser, de possuir, de pertencimento e de olhar o futuro como um vasto leque de possibilidades e realizações pessoais.

Queda de Bruno Walter, modificado.
 Uma tradição oriental que açambarca a redução ao nada usa a metáfora do buscador que se sentou sob uma figueira para alcançar a iluminação. Ao cabo de um tempo, tão longo como várias vidas, ou tão breve como um suspiro, ele logra a iluminação, cujo resultado não é uma prediga universal capaz de converter multidões, mas é o nada realizado dentro do Buda que serve somente a ele mesmo.

Também conhecido como “vazio iluminador”, o estado almejado dentro do budismo é a realização individual do nada dentro de cada um.

Desta forma, ao contrário das estruturas religiosas ocidentais em que os notáveis galgam degraus na hierarquia do poder, quase todos os Budas se retiram da vida pública depois de iluminados. Porque aquele que viu “maya”, ou o estado de ilusão em que se encontrava, não depende mais de adulações, comendas, bens materiais, postos de mando ou roupagens.

Buda via Café Impresso
 Essa é uma visão diametralmente oposta ao que se concebe no ocidente como autorrealização. Aqui, o objetivo da vida é amealhar recursos para obter “qualidade de vida”, numa luta contra o tempo, a natureza e o hostil mundo das invejas.

Aqui, o sujeito “autorrealizado” está impregnado de tudo. Tem tudo a perder e tem medo de todos. A velhice o apavora, a doença o espreita e os ladrões lhe roubam a tranquilidade. Sendo uma tragédia nessa lógica, perder, murchar, decair, adoecer, empobrecer, como poderá a metafísica ocidental produzir um ser que não seja escravo passional do medo de perder?

Uma vez que a solução para a morte não foi encontrada nem nas UTI’s, nem na ingestão de vitaminas, nem nos exercícios físicos, nem no combate aos radicais livres, ela campeia como um fantasma que cedo ou tarde aparece numa viela escura. Os vivos não a aceitam e os agonizantes a ignoram, embora seja a única certeza desde o nascimento e torna-se um problema para uma civilização voltada para o ser e que abomina a sua contraparte: o não ser.

Por ser a civilização das coisas, ela não dá conta do nada. Ao não abarcar o nada na sua racionalidade, exila-o para o mundo onde habitam os monstros irracionais.

No fim da terra plana, os mares se precipitam no abismo com um grande estrondo.

Na borda entre o mundo conhecido e o ignoto habitam os dragões e outros seres de maldades que personificam os terrores ancestrais da humanidade. Quando o mundo se torna silencioso e sombrio e o sujeito se vê no vazio, é o nada que irrompeu e ele não sabe o que fazer porque ninguém nunca lhe educou para o fatalismo do seu destino.

Na vida de cada um, os dragões espreitam a cada momento, porque cada sístole e diástole do coração empurram o ser ao vazio do desconhecido.

A verdade da morte paira sobre as taquicardias e os sobressaltos noturnos. Talvez o coração falhe na próxima batida, então a vida é uma sucessão de pequenas vitórias diante da morte certa. O coração terminará parando, não quando se quer, nem quando se saiba, mas parará, tum, talvez no próximo, tum, talvez no próximo, tum...

Morte no trono via ultradownloads

Por Isaías Malta
Adaptação e ilustrações: Gladis Franck da Cunha
Primeira ilustração: Anjo da Morte, modificado de ‘Na Lei

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