02 fevereiro, 2011

O grande desafio!

Monólogos sobre o nada – parte 4.

A história de uma vida é a sucessão de evidências que escancaram ao sujeito a grande realidade do nada por trás da pantomima que os atores vão deixando no palco, ao longo do tempo.

Contrariamente à percepção de que a existência é um somatório de acréscimos, o indivíduo vai sendo descascado camada por camada, como uma cebola. Ao longo da sua vida, ele perde familiares, amigos, emprego, saúde, vigor, casa, sanidade mental e todas as referências do mundo dos vivos.

Uma existência é uma longa queda em direção à paupérrima situação de um esquife preenchido por um corpo vestido precariamente para a última viagem.

No fim, o indivíduo experimenta a negação total de tudo daquilo que ele foi, uma vez que todos os seus apegos são abruptamente interrompidos. Seus amores, suas posses, seus objetos preciosos, seus descendentes, sua memória, para tudo isto ele está morrendo.

Por mais que tenha lutado em vida para deixar sementes, estas são premissas inúteis, que não restituem continuidade àquilo que é mortal e cuja sina é o desvanecimento completo. Não importa se a família ainda tenha rezado a missa do trigésimo ano de falecimento, virão outros tantos anos e com eles crescerá o esquecimento, até que a derradeira imagem do morto se desintegre na lembrança dos descendentes.

Apesar da patética obviedade de que a morte despe o sujeito daquilo que ele construiu ao longo dos anos, é mais patética, ainda, a compulsiva luta para que a verdade não triunfe ainda em vida.

Qual seria o benefício para alguém o reconhecimento de que está marchando/murchando inevitavelmente para a supressão completa do que é e do que tem?

Sob o ponto de vista de uma civilização construída sob a base do ter, isto é uma inversão de valores. Sob um ponto de vista de que as renúncias aproximam o indivíduo da sua única verdade, renunciar ao longo da vida à acumulação de riquezas, à inútil ideia da perpetuação, a mesquinhez do apego aos objetos, é a forma não de evitar o inevitável, mas de caminhar resolutamente sem vendas nos olhos rumo ao fim certo e não à dor surpreendente da nulificação, mas sim ao êxtase da grande verdade, amalgamada nos viventes desde seu nascimento.

 Intermezzo
Nornes porTrishkell

O tecido da vida é tramado pela presença de substâncias, sejam aquelas formadas pelos elementos químico-físicos da natureza, sejam outras de caráter imaterial que ocupam lugar no interregno dos desejos e das lembranças.

Independentemente da materialidade imediata ou mediata dos produtos humanos, eles são ou representam coisas.

Na vida, diversas coisas materiais, morais ou afetivas são perseguidas. No entanto, o “intermezzo” entre as partículas atômicas é preenchido de nada, entre os átomos, o nada, entre as moléculas o nada, entre os planetas, o nada preenche.

O universo é preenchido de vazios que na sua totalidade quase são tudo. Caso fosse necessário estabelecer uma única verdade física de uma possível igreja materialista, ela, por coerência, deveria estabelecer a primazia do nada sobre a matéria, hierarquizando-a na fenomenologia dos meros acidentes.

Sendo a matéria um complicado arranjo de ‘muitos nadas’, como explicar que se viva tão distante do cimento que a tudo unifica/nulifica?

Ninguém é educado para o nada. Todos fogem do nada, mesmo sem conhecê-lo. Instintivamente o nada é visto como um abismo que naufragará carreiras, aspirações, afetos, bens materiais, sonhos, amigos, família e todo o objeto real ou imaginário.

No entanto, o nada é a primeira, a única e a última certeza que o ser humano experimenta durante o transcurso da sua vida. Nasce-se, vive-se e morre-se iludido contra o nada, apesar dele aterrorizar cada passo do instável viver. Ele espreita cada segundo a menos da ampulheta vital, ele provoca ansiedade em cada respiração, transformando a existência num mergulho irrefreável em direção ao vazio.

Texto: Isaias Malta
Revisão e Ilustração: Gladis Franck da Cunha

Fonte das imagens:
1-Imagem de Caronte, o barqueiro por “Ao som do silêncio”.

2- Nornes porTrishkell disponível em Deviant art

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