06 janeiro, 2011

III– A continência do real dentro da racionalidade


APONTAMENTOS SOBRE NADA – Parte 3
O matemático acredita que não inventa as proposições matemáticas, mas descobre as leis que regem o universo, o que tira do produto da ciência matemática o seu viés de criação humana, para colocá-la no panteão do conhecimento puro.

O filósofo acredita que existe um princípio universal chamado de razão, que contém todo o conhecimento buscado pela filosofia e, ademais, todos os seres humanos são dotados deste princípio, o que os faculta a investigação, mesmo que não seja da totalidade, de porções das coisas em si mesmas.

Os cientistas naturais, geralmente, professam que os seus resultados são aspectos da realidade que está aí para ser medida, experimentada, compilada, o que legitima a generalização dos resultados das investigações para a formulação dos princípios que nortearão o cotidiano científico.

No entanto, tanto o matemático, quanto o filósofo e o naturalista estão umbilicalmente presos ao arcabouço do seu nicho sócio-orgânico-cultural, pois as visões que acometeram os sábios de todos os tempos são aquelas moduladas pelas imposições ora reinantes na biologia humana e nos aspectos temporais representados pelo contexto social e cultura.

Limitados assim por sua organicidade-temporalidade os homens têm criado conceitos, têm formulado leis, têm inventado abstrações que julgam peremptoriamente serem estruturas desvendadas da própria realidade.

O matemático afirma que os números e todas as proposições matemáticas fazem parte da realidade do universo, o filósofo afirma piamente que a razão, o ser, o ente, o nada, o infinito, a imobilidade, o movimento perpétuo, o tempo, a eternidade, a ética, a verdade, o inteligível são vislumbres daquilo que existe “a priori”[1] e não um produto emanado sob as limitações da sua capacidade perceptiva biológica.

O cientista preconiza que as teorias científicas, apesar da admissão da sua provisoriedade, são visões do real.
A discussão sobre a possibilidade de o homem ter acesso à coisa em si mesma é tão remota quanto o ato de pensar.

Com o advento da ciência moderna e o método científico que necessita de provas cabais para a comprovação das teorias, pareceu que o antigo impasse do acesso ao real foi solucionado. A matemática alega que não há como duvidar que 1+1=2. Os físicos alegam que a gravidade foi desvendada, medida e a teoria da gravitação de Newton é uma realidade que está aí ao alcance da comprovação de qualquer um. Será? A mais simples operação matemática da soma de unidades possui um valor intrínseco tão imutável que reflete a harmonia do universo, ou isto não passa de uma abstração humana?

A república de Platão

O caminho do conhecimento humano sempre foi o de estabelecer o real dentro das dimensões da racionalidade. Hegel no seu livro “Princípios da Filosofia do Direito” [2], quando sintetizou o esforço de Platão na procura do princípio “mais profundo”, corrobora a visão do homem dotado de um supremo princípio cósmico mental, que abstrai suas limitações orgânicas de apreensão, chamado desde a antiguidade de racionalidade:

“No entanto, mostrou Platão o grande espírito que era pois, precisamente, o princípio em volta do qual gira tudo o que há de decisivo na sua ideia é o princípio em volta do qual gira toda a revolução mundial que então se preparava: O que é racional é real e o que é real é racional” (Hegel, 1821).

Ora, sendo o racional aquilo que passa dentro das cabeças humanas, certamente é algo sujeito aos humores dos ciclos das enzimas, das descargas iônicas nas sinapses dos neurônios e de milhões de outros fatores físico-químicos que ocorrem similarmente em todos os cérebros, mas ligeiramente diferentes de um para outro.

Ademais, as memórias são distorcidas ao longo do tempo, o que torna os processos mentais tão permeáveis à seta do tempo quanto qualquer outro desenvolvimento biológico.

Texto: Isaías Malta
Revisão e ilustração: Gladis Franck da Cunha

Notas, referências e links:
1- “a priori” significa que já existia antes da observação.
2- Princípios da filosofia do direito (Grundlinien der Philosophie des Rechts em alemão) é um livro de Georg Wilhelm Friedrich Hegel publicado em 1820, embora a data na folha de rosto da edição original seja de 1821 (Wikipedia). 
3- Ilustração inicial obtida em: FIOLHAIS, Carlos. Do Racional ao Irracional. Publicado por Sérgio Morais em 12/Nov/2010 no blog Histórico-Filosóficas.
4- O cerne do texto se relaciona com o conceito de Filtragem do Mundo, que pode ser lido nas postagens: “Minha tese de Filtragem do Mundo”;  “Filtragem do Mundo e Interação Organismo/Meio”;  “Relações entre filtragem, assimilação cognitiva e comportamento”.
5- Imagem da República de Platão obtida em: “A república de Platão: uma alternativa para organização social grega em IV A.C.” publicado em artes e ideias por BJR no blog Obvious em 8/02/2009.

4 comentários:

  1. Gladis matou a pau com a primeira imagem!

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  2. Mais uma excelente lição.
    A dissertação sobre “ racional “ é primorosa.
    O final “ Ademais (…)” é lógico.
    Nesta perspectiva, creio que é possível concluir que sendo o racional a realidade, significa isto, que somos a adição do “ eu “ sempre em mutação.

    Porque será que eu penso que o “ Mestre “ tem uma admiração excepcional por Hegel?

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  3. O Porquê da adiração é simples, Isaias fez uma especialização em Filósofia e Ética Política e sua monografia da foi centrada em Hegel.

    A monografia já está totalmente publicada aqui no blog e os demais textos elaborados nas disciplinas eu estou revisando, ilustrando e publicando, aos poucos.

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  4. Tenho estado a ler e a reler, “ Mestre é Mestre” e estou a gostar.
    Tenho a sensação que ele tem uma enorme admiração por Hegel. É usual, todos nós temos as nossas preferências.

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