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Noite sobre lago de Isaías Malta |
No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era vazia e sem forma; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre as águas. Gênesis cap. 1, vers. 1.
Onde pode ser encontrada a quietude total? Existe a imobilidade absoluta? Há um vazio que não retenha no seu interior nem mesmo uma mínima perturbação eletromagnética?[1] O homem sempre se perguntou sobre o princípio da criação e tem elaborado engenhosas explicações de cunho mítico, religioso, filosófico e científico. Deus, destino, fatalidade, casualidade e caos dançam a maneira do Deus Shiva indiano desde o início da história, sem que se tenha chegado a uma resposta consensual.
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Shiva e Shakti |
Talvez a causa tanto do mais ínfimo grão de areia, como da gigantesca estrela seja a ausência de qualquer referência que se possa conceber como elemento criador personificado. Assim como o infinito estilhaça até os pensamentos mais robustos, o não ser, sendo a negação de tudo o que é, adquire a mesma rarefação dimensional, alçando-o ao nível das coisas alcançáveis pela fé. Porém, enquanto a fé ordinária se baseia em algo ou em alguma coisa, a fé na não existência deve se deixar absorver pela mais esmagadora sensação de vazio que as trevas originárias evocadas no gênesis bíblico possam provocar.
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Laurence Olivier em Hamlet |
Não importa, sempre haverá outra galáxia distante a ser vislumbrada e outra partícula atômica menor ainda a ser desvendada. A fronteira física dos universos micro e macro percebida pelos instrumentos reflete o tamanho do alcance da percepção espacial humana, onde além daquilo, começam especulações que tergiversam sobre o infinito, que é uma forma elegante de rotulagem da ignorância sobre a imensa escuridão que se abate além das fronteiras da pequena ilha representada pelo conhecimento humano.
Além da última galáxia distante captada pelos mais potentes radiotelescópios o nada se escancara e o homem, mesmo sob prejuízo do orgulho da “imagem e semelhança a Deus” deveria admitir que se defronta constantemente com o fim de tudo em qualquer investigação científica, ou numa simples mirada no céu noturno, ou nas suas investidas filosóficas sobre as questões que remontam aos fundamentos do ser-aí-no-mundo[2].
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Objeto ARP 194 fotografado pelo Hubble |
Não é necessário chegar aos confins cósmicos para descobrir os limites do homem, basta indagar sobre o que se passa no quarto ao lado e ir mais além: é possível imaginar a existência de algo somente porque se acha que é perfeitamente plausível. É perfeitamente crível a existência da floresta amazônica, ou das remotas regiões imersas no grande deserto Saara?
Para o indivíduo que nunca frequentou tais paragens, a sua a ausência de contato físico com estas regiões relega suas “sensações” de verdades sobre a Amazônia e o Saara à categoria de crenças, mesmo que tenham nascido de leituras, fotos, desenhos e relatos elaborados pelos indivíduos que efetivamente viajaram àqueles lugares. Num ponto de vista assim, a “verdade” amazônica pode ser tão acreditada quanto a “verdade” da Atlântida. Na medida em que aparecessem relatos, fotos, trabalhos científicos e desenhos sobre o continente perdido, elaborados por exploradores confiáveis, certamente essa produção de conhecimento poderia ser acreditada por aqueles que jamais irão à Atlântida, assim como inúmeros outros nunca irão à Amazônia e nem ao Saara e nem por isto deixarão de acreditar como continentes reais.
A crença é uma forma de burla do não ser. Quem acredita, aumenta seus horizontes, empurrando o nada, naturalmente tão próximo, para os remotos lugares do fim da memória. A crença é uma maneira refinada de “entificar” porções de nada e dar significado a elas. Quem acredita em Deus deifica suas crenças num ser superior e as funde numa personificação antropomórfica.
Quem não acredita, rejeita a crença vigente construindo uma antinominia daquilo, validando aquilo através da negação. Mas aceitar ou negar um bom velhinho de barbas brancas que oniscientemente está a se debruçar mesmo sobre os mais ligeiros problemas existenciais, lançou bases para o surgimento da catastrófica metafísica moderna que justificou conceitualmente a supremacia da espécie humana sobre todas as outras formas de existência no seu planeta.
A vida humana passa ao largo dos grandes vazios, entrementes tangenciando alguns deles através de ocasionais sucessões catastróficas. Quando falta chão sobre os pés, quando as perspectivas de futuro se extinguem, quando o centro de gravidade de uma existência é destroçado, acontecem as fugidias visões do abismo. Mesmo, assim, o resumo da ópera existencial é a negação recorrente do óbvio, é a cegueira voluntária à crueza do fato de que o desconhecido espreita o próximo minuto e que este negror que tanto assusta é o verdadeiro oceano onde todos estão mergulhados, não passando a vida de uma simples gota diferenciada que pode se dissolver repentinamente.
Para os humanos que inspiram/expiram/morrem/revivem e inspiram novamente, tendo a mínima consciência de que a última respiração pode ser definitivamente a última, longe de ser mórbidos, se acordam para a única realidade possível, posto que eterna, pois é aquela do vai e vem das ondas cósmicas onde a vida tem a significação do sonho e o sonho é a lagoa pantanosa onde ficam depositadas todas as “coisas importantes” a quem alguém se apega enquanto foge da grande visão.
Ao homem comum, a convivência com o vazio primordial é traumática e enlouquecedora, no entanto os sobreviventes do processo ressurgem como criadoras obras que se tornam patrimônio da humanidade. Os grandes que se destacaram entre todos os bilhões de criaturas havidas no planeta não forjaram a transcendência no burburinho das multidões, isto sim nos lugares ermos da introspecção, nos longínquos silêncios, cuja simbologia foi fortemente marcada pelos 40 dias de jejum no deserto de Jesus Cristo.
É provável que, ao invés de terem experimentado as ricas vivências das luzes, dos sons e das formas, tenham provado o amargo gosto da perda total, do abandono, da noite sem tempo, portanto sem fim. É provável que tenham chegado ao final de tamanha queda ao começo, àquele ponto indescritível, talvez o ALEPH de J.L. Borges, ou o motor imóvel de Aristóteles, ou a cabeça sem rosto representando o Incriado no topo dos totens Astecas e Maias. Ao contrário do deus personificado inventado pelas religiões monoteístas, o incognoscível, a coisa em si mesma da filosofia, o princípio de tudo talvez seja o não ser, o não suceder, a não matéria, a não energia, o nada absoluto. Portanto, inacessível ao intelecto, cuja vocação primeira é projetar o mundo à sua imagem e semelhança.
Por Isaías Malta
Notas:
1-Ainda não foi obtido experimentalmente o vácuo perfeito. Por mais que a matéria seja expurgada de um recipiente, os instrumentos sempre registram vestígios de algo ou alguma coisa que persiste.
2-ser-aí-no-mundo: do alemão “dasein”, termo usado pelo filósofo Heidegger para designar o ente atuante no mundo.
Fontes das ilustrações e links:
Imagem de Shiva e Shakti – Patê de Mente
Laurence Olivier em Hamlet – Leituras Favre (com texto do monólogo)
Objeto ARP 194 – Astronomia no Recôncavo da Bahia.
Senti um prazer indescritível ao ler esta preciosidade.
ResponderExcluirA leitura, trouxe-me à mente uma interrogação que me acompanha há anos. Falo de Aristóteles.
Quando ele escreveu “Não é que existe algo além que é infinito, mas sim porque além dele sempre existe algo."
Será que significa “ eternidade “, ou seja, sem início e sem fim?
Dito de outra forma, a definição de espírito, alma, luz, energia, a designação não é o importante.
Ora, não havendo matéria, ele fala da essência pura.
Deus ou algo semelhante?
Mário,
ResponderExcluirApenas para inquietar-te mais: falam as tradições esotéricas que a revolução da consciência que o ser humano pode realizar o levaria até o Absoluto.
Até aí tudo bem, mesmo que incompreensível de todo, mas veja o que um Mestre afirmou: "O Absoluto é apenas o primeiro grau da Sabedoria!"
Durma-se com este barulho ou seria silêncio?
Professora, fez-me reflectir muito.
ResponderExcluirEis o meu pensamento.
O absoluto é único e a sabedoria não tem limite.
A busca é infinita e só o barulho do nosso interior é que nos permite a procura. O silêncio, digo eu, representa o vazio e neste não existe respostas.
Fiz uma reflexão demasiado simplista. Tentei definir o óbvio, errei.
ResponderExcluirNão tinha apreendido a mensagem. Assim, a introspecção, foi o caminho que percorri. Se consegui não posso garantir.
Detive-me.
A perfeição humana não existe, direi que o Mestre e a Professora são o casal quase perfeito. Talvez tenham chegado ao ponto sublime.
Dei comigo a pensar no post “ Como dar o fora a distância quando o amor perde de validade”
Escrevi eu: “Na conclusão, se me permite, uma pergunta, para compreender o termo “ carma “. É alusivo à Filosofia Oriental ou à chamada Lei Causa Efeito ou a outra coisa?
Respondeu o “ Mestre “: “Carma é uma alusão simultânea à Filosofia Oriental e à Lei de Causa e Efeito.
Nenhuma ação na vida deixa de trazer consequências sobre o sujeito, boas ou más.
Mais uma dúvida, esta mais profunda, me inquieta sim.
Terá a Professora conseguido penetrar no meu “eu” interior?
É difícil, ou eu não quero acreditar, porque teoricamente só está ao alcance de quem domina a parapsicologia, mas…
Não sei se entendi a pergunta, mas não busco o eu interior, apenas o despertar da consciência.
ResponderExcluirQuando a mente para ou silencia encontramos respostas que não podem ser ditas, apenas vividas, ou seja são as verdades.
A questão do eu se relaciona ao conceito de Ego, que é a ilusão ou inconsciência. Neste caso, o ego deve ser aniquilado, como sugerem os budistas. De cada eu destruído liberta-se um pouco mais da consciência que se soma a uma partícula inata.
O texto de Isaías se refere a uma condição limitante do intelecto humano, que permite a verbalização do conhecimento, na verdade apenas uma parte pequena, pois vivemos muito mais do que podemos verbalizar.
Quando a mente (...) penso que fala de introspecção.
ResponderExcluirÉ lógica a sua definição “ ego “, aliás, é o que se adequa a “ personalidade “. Em termo lato, a ideia que o individuo tem de si próprio. Subjectivo sem dúvida mas, quem é que não o tem?
Quanto ao “ eu” sinceramente discordo da concepção porque todos nós somos o somatório dos vários “eu” em constante mutação.
Assim sendo, não posso aniquilar nenhum deles por mais que me esforce. Se eventualmente fosse possível o “eu” terminava e com ele a existência. Falo do tangível.
A dúvida,ou inquietação, prende-se com o “ eu” interior.
Entramos no esoterismo,fascinante sem dúvida.
Como escreveu Alexandre Herculano.
“Eu não me envergonho de corrigir os meus erros e mudar de opinião, porque não me envergonho de raciocinar e aprender.”
Mario,
ResponderExcluirRealmente o Esoterismo não é o escopo deste blog, mas isso não significa que não tenhamos escolhido um caminho.
Ao aniquilar o ego morremos, de fato, mas ao mesmo tempo nascemos para um novo tipo de vida. Esta é uma das bases do gnosticismo cristão, que propõe o misticismo científico, ou seja, não busca a fé cega mas a experimentação mística.
Já no caso dos conceitos: mente, personalidade, ego, essência, espírito, etc, não há uma única definição, nem mesmo muita clareza nas definições. Estes são termos finitos para aspectos que nosso intelecto não abarca de todo.
Se queres conhecer mais sobre esta linha de pensamento podes consultar as obras de Samael aum Weor, o original em espanhol da Psicologia Revolucionária está disponível em:
http://www.samaelgnosis.net/libros/htm/psicologia_revolucionaria/
boa leitura!
Professora
ResponderExcluirMuito obrigado pela sua amabilidde.
Já tinha lido por alto na versão portuguesa. Sabe, é a minha eterna ânsia da busca do conhecimento.
Reitero os meus agradecimentos.
Se não der muito incómodo, gostaria de ler a opinião do " Mestre " sobre a primeira interrogação.
ResponderExcluirCom todo o respeito que me merece, aliás como sabe, sinceramente, quando se trata de Filosofia, na minha opinião, o " Mestre " tem outra, digamos, sensibilidade. Toca-me mais.
Muito obrigado.
Mário,
ResponderExcluiruma belíssima interrogação que remete ao cerne ontológico central da filosofia.
Você fala de Deus, espírito, eternidade, energia, alma, luz, etc. Todavia, sob a luz do Ato e Potência, estrutura básica do pensamento de Aristóteles, podemos inferir que ele se referia à consciência. Esta sim, à medida que desabrocha vai empurrando as fronteiras do infinito infinitamente. Sob este conceito, a noção de infinito é a medida da ignorância em abarcá-lo.
O infinito é um truque mental inventando para não enlouquecermos.