22 novembro, 2010

O professor como mediador do acesso à filosofia antiga


Os professores têm a tendência a desenvolver uma ansiedade causada pelo receio da não inteligibilidade.

Comparo-os aos artistas que enfrentam a ribalta com o coração aos pulos, receosos da reação do público. Mexer com filosofia é um fio de navalha entre o magistério tradicional e o picadeiro. No final do espetáculo, surge o professor carente de respostas sobre o seu desempenho, um ser em permanente autocrítica, varrido por seus questionamentos recorrentes: terá havido dispersão? Terão entendido? O objetivo da aula foi atingido?

Uma sala de aula pode plausivelmente ser comparada a um sistema complexo:
Não há entre os pesquisadores que trabalham na área uma definição consensual sobre o que seja um sistema complexo. Uma delas diz que um sistema é tão ou mais complexo quanto mais informação for necessária para descrevê-lo. Nessa definição, certamente se encaixa o cérebro humano com cerca de 100 bilhões de células nervosas[1] [...].
[...] O comportamento de um sistema complexo é coletivo, emerge da contribuição de todos os seus componentes ao mesmo tempo, pois suas partes estão correlacionadas entre si, e a influência de cada componente se propaga aos demais mesmo a longa distância. Não se pode dar maior importância às menores escalas de distância em detrimento das maiores. Todas as escalas são igualmente determinantes em seu comportamento global (OLIVEIRA, 2005, p.25).

Essa sinonímia serve para demonstrar que um professor age num espaço imprevisível e movediço. Seus esforços pequenos ou grandes no afã de alcançar a inteligibilidade podem provocar mudanças cataclísmicas no sistema, ou seja, a sala de aula. As mudanças não são mensuráveis objetivamente, já que cada um dos seus componentes, encerrada a aula ou o curso, se dispersa no mundo, carregando, talvez, dentro de si novas concepções que, doravante modifiquem sua vida.


O professor é o maestro de uma instável orquestra enfrentando os mesmos percalços de Mickey Mouse durante suas peripécias como aprendiz de feiticeiro regendo uma enlouquecida orquestra no desenho animado Fantasia de Walt Disney sob a música de Paul Dukas.

Uma pergunta que faço desde que fui apresentado ao Sr. Platão é a seguinte: qual é a função do professor de filosofia no abrir de portas ao filosofar? Infelizmente o próprio professor tem limitações na autoavaliação. Como componente do sistema, o professor tende a ter uma escassa visão global do seu papel, razão de suas angústias quanto aos reais efeitos produzidos por suas aulas.

Ao ler-se um diálogo de Platão tendo ideia de que por trás da obra literária escondem-se nuances sutis, as afirmações e negações podem ser apenas um jogo onde os contrários são simples peças. Não sendo um arrazoado de preceitos morais e sim um refinado processo dialético articulado por movimentos descendentes, diairesis, ascendentes, synagoge, refutação, elenchos e hipóteses (PAVIANI, 2001), a leitura superficial pode induzir o leitor desavisado a erros crassos de interpretação.

O real papel do professor pode ser definido através da diferenciação entre oralidade e escrita. Paviani[2] afirma que o diálogo sobre o bem jamais foi escrito por Platão, apesar de ter sido oralizado na academia. Para ele, Platão jamais teve a ilusão de que o processo dialético em sua totalidade pudesse ser transferido para símbolos em uma folha de papel. Desta forma, alguns diálogos não foram escritos porque Platão não quis vê-los desfigurados em sua essência.

O que falar sobre o diálogo “O Filósofo” que não consta da sua obra, como constam “O Sofista” e “O Político”? Platão quis subentender que o filósofo é o resultado das ações do sofista e do político, ou este diálogo somente aconteceu no nível oral? As aflições que acometeram Platão, no seu afã de se expressar usando canais de comunicação mais claros possíveis, são as mesmas que perpassam o professor.

Tenho certeza que um estudioso de Platão, depois de uma vida debruçada sobre sua obra e tendo as aptidões naturais[3] para tanto, adquire condições de recriar numa sala de aula fragmentos dos diálogos perdidos.

As condições erráticas dos ânimos, a vontade de saber e a cumplicidade geral, criam um ambiente propício para o surgimento do filosofar feito daquele mesmo estofo que animou Platão em suas jornadas na sua academia. Destarte, o papel do professor tem um cunho arqueológico, pois somente ele tem o poder de recriar situações apenas esboçadas na obra escrita, somente ele, usando o vigor da oratória, pode dar vida à oralidade perdida há muitos séculos [4].

Por Isaías Malta

Notas:
[1] - Sabe-se, atualmente, que o número de neurônios é menor, veja em: O cérebro humano tem menos células do que se imaginava!
[2] - Comunicação pessoal.
[3] - Aptidão natural no sentido aristotélico “As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente".(EN, Livro II,1103b).
[4] - Em contraposição à ideia mecanicista da possibilidade de se fazer uma máquina de ensinar.

Referências:
OLIVEIRA, P.M.C. Mecânica estatística, caos e complexidade. Ciência Hoje. São Paulo, v.37, n.219, p20-26, 2005.

PAVIANI, J. Filosofia e Método em Platão. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2001.

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