07 setembro, 2010

A origem da complexidade celular nos organismos pluricelulares.

por

"Conta a tradição talmúdica que vinte e seis tentativas malogradas precederam a criação deste mundo. O gênesis não teria sido aquele milagroso instante inaugural tão celebrado, nem a eclosão repentina de uma totalidade, nem a eclosão repentina de uma totalidade redonda saída do Nada através do Verbo, mas tentativa e erro, experimentação, fracasso, remontagens, recolagens" (Pelbart, 1993, p. 31).

Estas considerações de Pelbart nos remetem ao estarrecimento dos cientistas biológicos, diante dos complexos e intrincados processos de construção dos novos indivíduos multicelulares a partir de uma célula.

Em outras palavras, pode-se afirmar que uma das questões mais intrigantes da Biologia é o surgimento da diversidade celular dos organismos multicelulares, que se originam de uma única célula-ovo.

Tal questão pode ser resumida da seguinte maneira: Se todas as células de um organismo possuem o mesmo material genético, como se diferenciaram?

Esta diferenciação não se resume à sua forma e funcionamento, afetando também o ciclo celular. Assim, temos células que podem se multiplicar gerando células-filhas durante toda a vida, enquanto outras, após a diferenciação se tornam incapazes de realizar mitose, como ocorre com as células do músculo cardíaco e os neurônios, por exemplo.

Veja abaixo a diversidade de tecidos e células presentes na articulação do joelho de chimpanzé.

Para a diferenciação celular concorrem muitos fatores como as enzimas maternas, a cariogamia, as mitoses assimétricas e outros tantos e fascinantes eventos embriológicos.

Um aspecto diferencial entre organismos pluri e unicelulares é a complexidade da regulação gênica. A regulação da expressão gênica em procariontes tem sido largamente estudada desde meados da década de 1960-70, mas as descobertas nestes organismos são insuficientes para explicar o desenvolvimento de multicelulares.

Por que a regulação gênica no desenvolvimento de multicelulares é diferente daquela que ocorre em procariontes?

O desenvolvimento ou aumento da complexidade biológica envolve processos de diferenciação celulares, que exigem um intrincado sistema de regulação para que, no final, um organismo formado por milhões de células funcione como uma unidade.

O surgimento dos organismos pluricelulares só foi possível após o surgimento do cromossomo eucarionte, que se diferencia do procarionte por possuir extensas regiões ou domínios regulatórios, que são sensíveis a uma ampla gama de proteínas reguladoras. Estas proteínas são bastante variáveis entre diferentes espécies e tecidos de uma mesma espécie, indicando a grande complexidade dos domínios regulatórios dos cromossomos eucariontes, que podem se localizar, por vezes a uma considerável distância do gene estrutural (veja esquema abaixo).


A complexidade de toda a maquinaria de regulação gênica nos eucariontes é um resultado que possibilitou o acúmulo de fantásticas mudanças evolutivas entre os seres vivos em termos de variedade estrutural e funcional. Tal biodiversidade seria muito difícil de obter se a natureza tivesse contado apenas com mutações em genes estruturais.

Assim sendo, a regulação gênica no desenvolvimento dos eucariontes difere daquela que ocorre nos procariontes essencialmente por sua maior complexidade, tanto no que se refere à estrutura cromossômica, quanto aos tipos de moléculas regulatórias e multiplicidade de processos envolvidos.

Outro fator essencial aos multicelulares é a presença de genes que desencadeiam amplos processos regulatórios, como se fossem maestros a comandar uma grande orquestra. Tais genes são denominados HOMEÓTICOS.

Os Genes homeóticos e suas Implicações evolutivas.
Capa da revista "Super Interessante" por Sérgio Gomes (jul 1990)
Deixaremos por hora as enzimas maternas, cariogamia, mitoses assimétricas e vamos avançar no tempo embrionário chegando ao momento da construção de órgãos ou organogênese. Nesse momento, a maravilhosa sinfonia do desenvolvimento tem como maestros os genes homeóticos, que tanto em animais quanto em plantas, garantem que as estruturas certas se desenvolvam nos locais exatos, ou seja, pétalas na corola, sépalas no cálice, pernas no tórax, antenas na cabeça, olhos na cara e dentes na boca.

Na história dos genes homeóticos, cujas mutações intrínsecas são geralmente fatais nas fases iniciais do desenvolvimento, a desgraça de algumas moscas foram essenciais aos pesquisadores, que encontraram em Drosophila indivíduos viáveis com aberrações como "patas no lugar de antenas" estes mutantes foram chamadas Antenapedia e protagonizaram a descoberta desses genes.


Devido aos genes homeóticos fica garantido, mesmo nas espécies mais politípicas, a manutenção da forma básica da espécie, que já foi aprovada pelo controle de qualidade da seleção natural.

Esses genes codificam fatores de transcrição caracterizados por um domínio de 60 aminoácidos que se ligam a certas regiões do DNA denominadas homeoboxes. Supõe-se que estas proteínas ativam baterias de genes que especificam as propriedades particulares de cada segmento embrionário, sendo fundamentais na determinação do eixo anteroposterior em invertebrados e vertebrados. Podendo ainda, como foi descrito para neurônios de Drosophila determinar a especificidade de certas células.

Comparação entre genes homeoboxes de embriões de Drosophila e de camundongo

Considerando a precisão de suas funções, ao contrário do que se poderia esperar, a regulação destes genes apresenta modos complexos, com múltiplos promotores em alguns casos e múltiplos sítios para iniciação da transcrição. Além disso, muitos destes genes podem produzir famílias de proteínas relacionadas por alternativos processamentos do RNAnuclear (splicing).

Processamento alternativo do RNAnuclear produzindo 3 RNAm diferentes.

Voltando aos deuses talmúdicos, toda esta complicada ou intrincada regulação aliada à necessidade de precisão nos permitem avaliar suas dificuldades no processo de criação e talvez por isso tenham optado pela conservação.

Sem deixar-nos enredar numa digressão ou alusão teológica abordemos, agora, o que deixou pesquisadores tão surpresos quanto o cara aquele, que “estava jogando sinuca e uma nega maluca me apareceu, carregava um filho no colo, dizendo pro povo que o filho era meu”: um inusitado parentesco dos seres vivos em nível de DNA!
Distribuição de genes homeóticos conservados em Drosophila e embrião de mamífero.

Foi surpreendente a descoberta de que há um parentesco muito grande em nível do DNA mantido, especialmente, nestes genes homeóticos.

Os genes homeóticos se assemelham tanto em relação à sua sequência de bases quanto à sua posição relativa nos cromossomos, quando comparamos moscas, ratos e homens! Certamente ao contrário do moço da sinuca que ficou apalermado, esta descoberta deliciou os adeptos da teoria evolucionista: Quem se atreveria a supor que o mesmo conjunto de genes poderia especificar o eixo corporal de mamíferos e de moscas?

Comparação entre genes homeóticos de Drosophila e ser humano nos cromossomos e na organogênese.

Essa descoberta pode ser comparada a uma revolução Copernicana, e trouxe toda uma série de implicações científicas estabelecendo linhas de intercessão entre áreas de pesquisa que permaneciam isoladas.
Muito me agradam todo esse movimento e troca, pois entre outras coisas fica evidenciada a importância da pesquisa básica.

A antiguidade clássica já enfatizava: "Homem conhece a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses", por nossa parte podemos acrescentar que para o homem conhecer o homem precisa também se debruçar sobre moscas que se alimentam em frutos fermentados.

Refletindo sobre as questões evolutivas, ficamos perplexos com a relação variabilidade versus conservação. Por um lado encontramos genes altamente conservados e por outro uma multiplicidade de formas e de interações com o ambiente.

Interações tão fantásticas, que nossa vã filosofia pode ainda muito pouco compreender. Apesar dos diferentes caminhos percorridos por vegetais e animais há uma lógica semelhante no seu desenvolvimento, que é própria da vida em si: manter-se altamente conservada e ao mesmo tempo garantir a multiplicidade dentro da uniformidade.

Referências:
1- CHROMONET Purpose disponível em: http://pbil.univ-lyon1.fr/members/sagot/htdocs/team/projects/chromo_net/purpose_chromo_net.html
2- CRUZ, Germán Arellano DESARROLLO Y DIFERENCIACIÓN EN EL EMBRIÓN. Revista Ecología Aplicada. Dsiponível em: http://tarwi.lamolina.edu.pe/~acg/desarrollo_y_diferenciacion_en_e.htm
3- FRANÇA, Martha S. J. A biodiversidade e toda a vida do mundo. SUPER Interessante edição 034, julho/1990. Disponível em: http://super.abril.com.br/ecologia/biodiversidade-toda-vida-mundo-439514.shtml
4- P. E. A. C. E. Publication Ltd presents: The PEACE-files disponível em: http://www.peace-files.com/index.shtml
5- PELBART, Peter P. A nau do tempo-rei. Imago, Rio de Janeiro, 1993. p.31
6- WOLPERT, Lewis et al Princípios de Biologia do Desenvolvimento. 3ed Porto Alegre : Artmed, 2008.

Um comentário:

  1. Olá Gladis,

    Fantástica a aula sobre organismos pluricelulares.
    Olhe que odeio biologia, mas o seu texto... é fantástico.

    ResponderExcluir

Related Posts with Thumbnails