12 setembro, 2010

A evolução biológica e a cultura humana.

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Evolução do Homem por Jow Cartoons
Trabalhar nas múltiplas conceituações de cultura suscita o estabelecimento de um amplo debate interdisciplinar que envolve a preocupação de tratar das bases biológicas na formação da cultura, sem todavia tentar-se "explicar" a cultura, mas sim no sentido de também pensá-la biologicamente, partindo do pressuposto de que são verdadeiras as concepções fundamentais da teoria da evolução propostas por Darwin, sem muita preocupação com suas anomalias.

Dessa forma, se nenhum novo paradigma surgir revolucionando esta questão, este ensaio poderá servir como uma revisão adequada do assunto, ampliando as bases de discussão para o estabelecimento do diálogo intercultural, caso contrário, poderá servir como mais uma das "piadas" científicas a ser contada, futuramente, nas salas de aula.
De acordo com pressupostos básicos da teoria da evolução de Darwin, os seres vivos têm tendência para apresentar variações, uma fração das quais é de natureza hereditária.

Quando essas variações não forem neutras para a sobrevivência ou reprodução, ocorrerá, obviamente, uma sobrevivência e uma reprodução diferenciadas de seus portadores. "Os seres favorecidos nessa luta pela vida são considerados como os mais bem adaptados aos meios em que vivem, isto é, os mais aptos sob o ponto de vista seletivo. Como o ambiente se altera ao longo do tempo, também mudam a direção e a intensidade da seleção natural. Dessa forma os seres vivos irão evoluindo" (FREIRE-MAIA, 1991).

Atualmente questiona-se o fato de que as mutações casuais e a seleção natural sejam fatores suficientes para explicar toda a evolução, mas podem contribuir para uma reflexão sobre o papel da cultura na origem do ser humano, que foi capaz de se diferenciar dos demais primatas, principalmente no que concerne à produção e armazenamento de "cultura".

Além da cultura, há inúmeras diferenças morfológicas entre o ser humano e outros primatas, mas grande parte delas puderam ser acumuladas a partir do isolamento sexual do grupo ancestral e neste isolamento reprodutivo ela desempenha um papel destacado.

Podemos conceituar biologicamente a cultura como uma extraordinária complexificação do que se denomina, em Biologia, de comportamento animal, que, em linhas gerais, envolve todos os processos através dos quais um animal percebe o mundo externo e o seu estado interno e responde às mudanças percebidas.

Segundo uma visão clássica, quase todos os comportamentos que observamos nos animais são adaptativos. Eles respondem a estímulos apropriados de maneira eficiente e por isso alimentam-se, encontram abrigo, acasalam-se e procriam. O que faz com que o comportamento de um animal se torne tão bem adaptado ao seu ambiente natural pode ser um conjunto de respostas "pré-formadas" no sistema nervoso como parte de sua estrutura herdada, constituindo-se num tipo de "memória da espécie" transmitida de uma geração a outra ou pode ser uma capacidade de modificar seu comportamento em virtude de suas experiências, à medida que se desenvolve através da ação sobre o meio (MANNING, 1977).

O aprendizado permite modificar o comportamento de modo a adaptá-lo a circunstâncias novas, no homem, isso permitiu o desenvolvimento de uma grande plasticidade fenotípica, fazendo com que a organização estrutural das populações humanas seja certamente a mais elevada do reino animal. Isto se aplica não só a estrutura social dentro das populações, das famílias às nações, como também às relações inter-populacionais, que são únicas. Estas diferenças podem superar, inclusive, as observadas entre populações de espécies distintas e com muita frequência, as relações estabelecidas se assemelham ao que se observa entre predador e presa ou hospedeiro e parasita.


O intercâmbio e interdependência entre populações humanas é muito maior do que para outras espécies. Isso afeta não apenas o intercâmbio de pessoas, como o de energia, de matéria, de conhecimento e cultura.

Nesse sentido, com o crescente processo de globalização, torna-se cada vez mais urgente acrescentarmos à nossa cultura humana a capacidade de estabelecimento do diálogo intercultural.

Sendo assim, não se pode definir um homem unicamente pelos seus constituintes biológicos (células, órgãos e metabolismos), é necessário, para explicar as suas características mais essenciais, levar em conta os grupos sociais e culturais em que ele está integrado, pois os utensílios fornecidos pela natureza não têm qualquer interesse enquanto outros homens não nos ensinarem a manejá-los (Jacquard,1988).

Fato é que até os animais menos complexos podem, por seu comportamento, alterar o ambiente adequando-o em seu proveito, e assim modificar as forças seletivas que os afetam. Um comportamento completamente novo pode ser transmitido por aprendizado e gradativamente substituir a atividade prévia, sem que ocorra nenhuma alteração genética, pois, em geral, se herda apenas uma potencialidade para aprender e não o aprendizado em si, a não ser nos casos em que não há sobreposição de gerações e os indivíduos precisam nascer sabendo.

É claro que a evolução cultural só é possível entre os animais que possuem uma capacidade considerável de modificar seu comportamento por prática e imitação, e, além do homem, isso pode ser observado em outros primatas, tendo sido descobertas uma grande variedade de diferenças alimentares, cuja origem foi cultural, entre bandos do macaco japonês Macaca fuscata.

Macaca fuscata
 Paradoxalmente, é muito restrito o papel que a aprendizagem pode desempenhar na evolução do comportamento animal, pois essa evolução depende de variações herdadas sobre as quais a seleção possa agir. Ou seja, para que os processos de seleção natural possam atuar é necessário que o novo comportamento se transforme em informação "herdável", que não dependa exclusivamente do relacionamento direto entre os seres vivos, caso contrário o novo comportamento, por mais adaptativo que seja corre o risco de ser perdido com a extinção do indivíduo ou grupo populacional que o tenha desenvolvido.

Nesse sentido, a capacidade de "registrar" sua cultura através da escrita, pintura, escultura, música, etc, foi provavelmente uma das maiores conquistas que fez com que o homem se diferenciasse dos demais primatas e pudesse "evoluir culturalmente".

Pintura rupestre da Tradição Agreste por Chico Historiador
 Hoje, já acumulamos tantas diferenças e nos diferenciamos tanto dos nossos parentes primatas que parece meio irracional pensar num tempo onde nossas diferenças morfológicas em relação aos chimpanzés e orangotangos não eram assim tão evidentes.

A hipótese mais aceita para o surgimento do homem era de que nossos ancestrais se pareciam muito com os grandes antropoides atuais. Porém, a descoberta de um esqueleto de Ardipithecus ramidus muda este conceito sugerindo que os ancestrais dos macacos já foram muito parecidos com os homens atuais. Este fóssil repudia o senso comum de que os macacos atuais foram nossos ancestrais e reforça as teorias evolutivas, as quais preconizam que o ser humano e os grandes macacos antropoides, como gorila e chimpanzé, tiveram o mesmo e desconhecido ancestral comum.

Ardipithecus ramidus: fóssil e concepção artítica.
 O surgimento de uma nova espécie envolve um processo de acúmulo de diferenças genéticas a tal ponto que o cruzamento entre os indivíduos não produza mais descendentes férteis, para isso, a seleção natural é fundamental pois, ao longo do tempo, vai favorecendo as ligações entre os genes, que contribuem conjuntamente para uma característica comum.

Dessa forma, quanto mais fortemente estiverem "ligados" ou apareceram no mesmo indivíduo genes com alto poder adaptativo, menor será o risco de aparecerem indivíduos em que alguns deles faltem, provocando um desenvolvimento imperfeito. Nesse caso, ressalta a importância dos processos de isolamento reprodutivo, ou de seleção sexual, que favorecem o acasalamento entre determinados indivíduos em detrimento de outros, garantindo a manutenção dessa ligação genética.

Sem dúvida os processos de isolamento reprodutivo fazem parte da herança genética, não apenas dos animais como também de todos os grupos de seres vivos com reprodução sexuada, pois eles desencadeiam a microevolução, um processo que dá origem a novas espécies a partir de uma população ancestral.

O isolamento reprodutivo envolve, inicialmente apenas padrões comportamentais de reconhecimento e estranhamento. Nos animais estes sinais sociais precisam ser salientes e quase todos têm forma muito exagerada, pois para terem a maior eficiência possível precisam ser nítidos e inequívocos, principalmente entre espécies próximas ou morfologicamente semelhantes onde as diferenças são basicamente quantitativas.

O zaragateiro (Turdoides bicolor) por Último segundo/Ciência.
  Hoje, com já dissemos anteriormente, acumulamos tantas diferenças, que nos diferenciam dos nossos parentes primatas que parece meio irracional pensar em estratégias especiais de isolamento sexual, mas nos primórdios do surgimento do homem nossas diferenças morfológicas não eram assim tão evidentes. Além disso, não é verdade que os macacos modernos estejam genealogicamente mais próximos do que nós do ancestral comum que deu início à divisão entre os símios em geral e os grandes macacos há milhões de anos atrás.

O fóssil de Ardipithecus ramidus, com idade estimada de 4,4 milhões de anos confere com prespectivas anteriores de que nosso ramo do arbusto dos grandes macacos apresentaria um ancestral comum com os chimpanzés até 5 e 8 milhões de anos atrás, isso significa que por muito tempo fomos uma mesma espécie.

Tanto quanto nós, os chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos são formas bastante evoluídas e adaptadas aos seus ambientes. Mas é provável que ainda tenhamos na nossa bagagem genética uma tendência grande para o desenvolvimento de mecanismos de isolamento sexual baseados em diferenças culturais, como um recurso auxiliar para discriminarmos, aqueles que são iguais a nós daqueles que são diferentes de nós.

Este aspecto favoreceria, indiretamente, o surgimento dos comportamentos racistas entre diferentes populações ou grupos sociais como uma manifestação do instinto de preservação, ou seja, como um ônus da evolução  cultural.

Logicamente, não somos apenas seres que se isolam, temos também que considerar nossa alta potencialidade de estabelecimento de agrupamentos humanos, já presente quando éramos primatas e também a intrigante e incompreendida característica do altruísmo, que nos capacita à filantropia.

Assim, vemos em luta as forças dissociativas do isolamento sexual e associativas da formação de grupo. As primeiras nos lançando à luta ou à fuga de tudo aquilo que nos seja estranho, as segundas nos capacitando para a convivência e o desenvolvimento dos processos educativos, que podem nos proporcionar um comportamento ou uma cultura muito distanciada da nossa natureza meramente animal.

Para Nietzsche: "O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta [...]".

Voltando às questões biológicas, é muito difícil precisar até que ponto se pode transpor os conhecimentos obtidos com pesquisas em animais aos seres humanos, mas "faz parte da sabedoria convencional que virtualmente toda variação cultural é originariamente mais fenotípica do que genética" (RUSE,1983).

Darwin, por exemplo, apoiava a origem biológica da agressão humana, assim como afirmava que as diferenças raciais podiam ser explicadas através desse mecanismo. Todavia, essa discussão suscita o problema básico de saber até que ponto os padrões do comportamento humano, de fato, constituem uma função direta dos genes e não da cultura, mas querer "explicar" os processos sociais através do conhecimento biológico é uma ingenuidade, que tem levado muitos biólogos a uma leitura míope acerca do homem.

Este ensaio procurou levantar alguns aspectos que favorecessem a reflexão sobre a importância da cultura para o surgimento e estruturação da espécie humana, no sentido da mesma ter tido um importante papel no nosso auto-reconhecimento e no isolamento reprodutivo.

Nossa capcidade biológica para estruturação de uma cultura elaborada possibilitou os processos educativos. Jacquard (1988) afirma que: "O objetivo primário da educação é, evidentemente, revelar a um filho de homem a sua qualidade de homem, ensiná-lo a participar na construção da humanidade e, para tal, incitá-lo a tornar-se o seu próprio criador, a sair de si mesmo para poder ser um sujeito que escolhe o seu percurso e não um objeto que assiste submisso à sua própria produção”. O termo "humanitude" define “a contribuição de todos os homens, de outrora ou de hoje, para cada homem" .

Referências:
1- FREIRE-MAIA, Newton. A ciência por dentro, Vozes, Petrópolis, 1991.
2- GOULD, Stephen Jay. Dedo mindinho e seus vizinhos - ensaios de história
natural, Cia das Letras, São Paulo, 1993.
3- JACQUARD, Albert. A herança da liberdade: Da animalidade à humanitude. 1ed.
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988a.
4- NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falava Zaratustra, Hemus E. Ltda, São Paulo,
1994.
5- MANNING, Aubrey. Introdução ao comportamento animal, Livros técnicos e
Científicos S.A., Rio de Janeiro, 1977.
6- RUSE, Michael. Sociobiologia: senso ou contra-senso?, Itatiaia ltda, Belo
Horizonte, 1983.

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