Para arrematar a proposição inicial definidora da ética como produto social, há que se avançar sobre a compreensão do sistema político brasileiro além da percepção social de desvinculação ético e política. Ao conceito de homem naturalmente social é possível imbricar o de sociedade naturalmente ética. Assim, a negação da ética como substrato decorrente do existir social é fator realimentador das crises políticas, normalmente percebidas em seu imediatismo moral.
Num esforço para trazer à tona a ética subvalorizada nos debates conceituais sobre a crise política brasileira, foi necessário recorrer a incursões históricas, sociológicas e antropológicas para purificar a ética contaminada pela moral subjetiva, para então contemplá-la sob a ótica sistêmica, a fim de justificar logicamente a sua inerência ao ato político, bom ou mau. Outrossim, a percepção da má política como destituída de ética, conduz à crítica iníqua, porque centrada exclusivamente nas exigências de virtude dos agentes políticos, porque abstraidora dos escaninhos das estruturas de poder, onde se encontram os interstícios legais de que se valem as ilicitudes.
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Bosch - 7 pecados |
Como já referido, o leitmotiv perpassador deste texto é a hipótese da continuidade histórica de determinados elementos éticos, que podem ser identificados no passado colonial e patrimonialista. Porém, a ênfase em não preferir a abordagem socialogizante se justifica porque não é apenas na estrutura do Estado, nem no arcabouço legal e nem nas engrenagens sociais, onde vão ser encontradas respostas sintéticas para o insidioso continuísmo dialético. Decerto elas se encontram dispersas nos fatores citados e mais além, no imaginário submerso do inconsciente coletivo. A sua gênese se deu nos primórdios da implantação do Estado pronto, numa terra sem a singularidade do cidadão, nem a particularização da sociedade. Mas a identificação da origem não explica a sua entronização e perduração histórica, para a qual é necessário recorrer à hipótese do processo dialético malicioso, cujo moto principal é mudar a aparência sem mudar a essência.
O lançar mão do fio condutor teórico da colossal construção filosófica hegeliana no tocante ao pensamento do Estado como instância eticizante, se deu para permitir o estabelecimento de comparações entre o forte Estado ético interpretado em Hegel e o perceptivelmente fraco Estado moral brasileiro. A contraposição não teria sentido se não houvesse a suposição de que por trás da fraqueza moral brasileira existe um forte Estado estabilizado historicamente, cujo produto dialético principal foi ter sustentado a paradoxal ambiguidade modernizadora e preservadora da ideologia colonial. Porém, uma revisitação a Hegel tem que ser executada sob alguns cuidados, mais especificamente, submetendo o viés utópico das suas proposições ao filtro contemporâneo do post-mortem metafísico, apesar de Hegel ter se prevenido contra os utopismos, principalmente quando explana o seu método, no início da sua Filosofia do Direito:
Tal dialética não é, consequentemente, a atividade externa de um pensamento subjetivo, senão que é a alma do conteúdo que engendra e exibe seus ramos e frutos organicamente. O pensamento subjetivo não faz mais do que contemplar o crescimento da idéia como atividade da sua própria razão, e mesmo que um tanto subjetivamente, não agrega nada seu ao processo. Pois ao contemplar uma coisa de maneira racional, ao considerar a racionalidade que lhe é própria, não lhe atribui uma razão externa, elaborando-lhe uma a seguir, de acordo com esta. Neste livro se trata do espírito livre, que é a culminância da razão autoconsciente. É o que se realiza aqui, engendrando-se como mundo existente. A ciência filosófica se limita, nesse caso, em levar à consciência o trabalho que realiza a própria razão do assunto em questão. (HEGEL apud CORDUA, 1992, §31)
Depreende-se um finalismo idealista para o bom e o justo quando Hegel se refere ao Estado como "realidade da ideia ética", "realidade da vontade substancial", "realidade da liberdade concreta", etc. Por ser o “Estado absolutamente racional” e estágio máximo de universalização, Hegel atribui nele a efetivação da liberdade onde “o indivíduo, por sua parte, graças à sua disposição de ânimo em direção ao Estado, que é em essência seu fim e o produto da sua atividade, encontra nele a sua liberdade substancial.” (HEGEL apud CORDUA, 1992, p.30).
Ao contemplar o caso brasileiro faz-se necessário realizar uma operação de mudança do finalismo do bem para o da subsistência histórica. Assim, ao invés de um Estado concebido como “[...] espírito ético enquanto vontade substancial manifesta e clara para si, que se pensa e se conhece e que realiza o que sabe na medida em que sabe.” (HEGEL apud CORDUA, 1992, p.196), faz-se a substituição da teleologia desta vontade pelo impulso inercial de perpetuação do modelo, tanto no estado efetivado, quanto no seu desenvolvimento histórico. Então, diante dos fatos históricos formadores da sociedade civil brasileira, as inquirições devem ser no sentido de trazer à luz os pressupostos éticos herdados de Portugal que foram entronizados e resistiram aos impulsos reformadores ao longo de cinco séculos, se enriquecendo e se mimetizando quase à maneira da proposição de Hegel de uma dialética do conceito, impulsionadora do seu enriquecimento:
A dialética do conceito, diferentemente, é superior à versão negativa porque ela mesma é desenvolvimento e progresso imanente ao conceito. Como se chega a isso? A dialética em nosso sentido considera a determinação do conceito como um conteúdo positivo do mesmo. Em vez de ver a determinação que particulariza o universal somente como limite e oposto, os vê na função positiva que desempenham para o enriquecimento do conceito, que juntamente com a particularização, adquire um conteúdo determinado. (HEGEL apud CORDUA, 1992, p.30)
Sob a perspectiva do desenvolvimento e enriquecimento, é notável que o sistema ético implantado no Brasil colônia tenha passado por vários ciclos dialéticos de universalização-particularização-singularização, e os princípios, mesmo quase extintos em sua justificação inicial, tenham sobrevivido intactos, embora o resto do sistema tenha seguido o curso normal de modernização. Assim, a dialética hegeliana concebida como um movimento de superação, tem tido na história brasileira o papel de mecanismo de preservação de alguns princípios sob camuflagens ocultadoras. A superação tem tido a função de reciclar algumas figuras arcaicas que, embora originariamente no sistema hegeliano imbuídas do impulso para o bom e o justo, remanescem na realidade brasileira enquanto estamentos voltados para a continuidade histórica: o príncipe e a burocracia da classe geral como mediadores da vontade de todos.
Ao se proceder a operação de troca da teleologia hegeliana pelas particularidades inerentes àquilo que se pode chamar de realismo político brasileiro de cunho maquiaveliano, surge um Estado antitético em relação aos fins, mas profundamente hegeliano no seu funcionamento real, podendo-se dizer que mesmo que não seja Hegel em espírito, o é na realidade da sua efetivação.
A comprovar as similitudes, a figura do poder subjetivo do príncipe persiste como foco do poder, não mais encarnado na subjetividade do monarca, porém subsistente eticamente. Quando Hegel introduz alguns elementos sofísticos na sua lógica para satisfazer seus pontos de vista, por vias transversas está descrevendo o realismo político brasileiro:
Por um lado, nos parágrafos certamente menos convincentes da Filosofia do direito, ele "deduz" – através de argumentos falsamente lógicos e, portanto, objetivamente sofísticos – a necessidade de que a soberania "exista enquanto pessoa natural do monarca."E, por outro, numa postura mais realista mas nem por isso menos antidemocrática, esforça-se por situar a manifestação concreta da soberania (ou da vontade geral) – a sua transformação em efetivo poder de governo– na burocracia, designada por ele como "classe (ou estamento) geral". Desse modo, a burocracia se torna o efetivo portador material da vontade geral: "A classe geral, que se dedica mais de perto ao serviço do governo, deve ter imediatamente, em sua determinação, o universal como finalidade de sua atividade essencial” (COUTINHO, 2007, p.11)
Hegel “maduro” não foi a favor da democracia como elemento mediador entre a Sociedade Civil e o Estado, ele por não acreditar num poder exercido diretamente pela vontade geral, instituiu as instâncias de mediação representadas pela vontade subjetiva do monarca e a função da classe geral, ou seja, a casta burocrática operadora do aparelho de governo.
Ao atribuir à burocracia a condição de "classe geral", Hegel termina por recusar explicitamente a concepção (rousseauniana!) de que "todos devem tomar parte na discussão e resolução das questões gerais do Estado",ou seja, termina por negar a necessidade e possibilidade de constituição de uma esfera pública que socialize e democratize o poder. (COUTINHO, 2007, p.12)
Essa é descrição do núcleo de poder perpetuado no Brasil? Não diretamente, mas pode se supor que o Estado de Hegel despido do seu conteúdo teleológico, remeta a um Estado maquiaveliano, onde o príncipe tem como fim a conservação do poder. Há que se voltar o olhar para a parte ocultada do sistema ético, a fim de trazer à luz princípios tão internalizados, que passam despercebidos pelos crivos da crítica política. Sob a hipótese do Estado brasileiro como a síntese entre Maquiavel e um Hegel do “mal”, ele mescla eficientemente a maliciosa conservação do projeto de poder do príncipe com a forte estrutura ética marcada por mediações não democráticas. Na anatomia de tal Estado sintético, alguns pressupostos éticos remanescem desde os primórdios do século XVI:
1- A figura do Príncipe, dotado de poder imperial, que apesar da adoção da filosofia do Estado Democrático de Direito, persiste na raiz do sistema político presidencialista vigente. Durante as eleições presidenciais, o eleitor não faz a escolha do representante máximo do poder executivo, outrossim, busca eticamente um “salvador da pátria”, um imperador que resolva todos os problemas do país;
2- Uma aristocracia repaginada ao iluminismo, composta de toda a burocracia operadora das três esferas montesquianas de poder e pelos cidadãos ricos. Modernamente chamada de elite, seus membros têm direito a foro privilegiado, diretamente afeito ao Supremo Tribunal Federal, que é um tribunal constitucional por um lado e por outro, concessor generoso de indultos à uma casta que jamais conheceu freio moral ao longo de 500 anos de história. Assim, uma vez morto o império, subsiste o princípio ético consagrador da classe situada além do bem e do mal;
3- O exercício do poder, longe dos ideais de equanimidade entre os três poderes, tem a preponderância do poder executivo, historicamente de notável ascendência sobre o poder legislativo, que se move sob os desígnios imperativos do “Príncipe” e sua corte, cabendo às câmaras legislativas o papel de referendadoras das leis exaradas pelo poder de fato que, nascido de intenções colonialistas, ainda predomina como poder à moda de moderação imperial.
A problemática mediação entre Sociedade Civil e Estado tem sido executada por uma casta, de características de transmissão semi-hereditárias, incrustada nas altas esferas republicanas, numa zona não suficientemente demarcada de sobreposição entre o público e o privado. Assim, o Estado não completamente universalizado, por não ser o resultado da totalidade da ideia da sociedade civil, não chega a se singularizar na pessoa do príncipe, uma vez que tal figura persiste apenas como subsunção ética. Por trás da normalidade democrática do Estado de direito, há uma camada cinzenta de burocratas portadores da vontade geral? O clamor das críticas políticas indica que sim, favorecendo mais uma aproximação a Hegel quanto à mediação burocrática de poder. No seu sistema, a mediação entre a sociedade e o Estado não é democrática, pois se dá sob o utopismo de uma naturalidade virtuosa atribuída a classe geral (burocracia), que a capacita para o exercício do poder. Excetuando-se a utopia da virtuosidade, tal mediação pode ser tomada como uma descrição realista da vigente no Brasil:
Portanto, a figura concreta da vontade geral não é mais buscada, como em Rousseau, na assembleia dos indivíduos virtuosos – e, portanto, malgrado o utopismo, num espaço intersubjetivo criado por meio do contrato e do consenso –, mas na suposta "sabedoria" de uma cinzenta camada de burocratas que atuaria weberianamente sine ira et studio. (COUTINHO, 2007, p.12)
Como nenhum país pode garantir que o seu Estado seja operado apenas por notáveis virtuosos, a precaução contra o desvio moral dos agentes públicos deve vir de outra parte. E o antídoto contra a utopia da virtude certamente deve estar contido na estrutura ética do Estado, cujo corpo de leis, fiéis aos princípios de igualdade preconizados pelos ideais iluministas, administra a igualdade entre os cidadãos.
Uma das críticas éticas que está surgindo no cenário social se concentra na concessão de privilégios corporativos, provável coadjuvante causadora da sensação de impunidade, uma vez que a disseminação da ideia irradiada ao corpo social de que os aristocratas jamais serão pegos pelas barras da justiça, redunda na sensação de ineficácia dos aparelhos repressivos do Estado. Porém, as pressões exercidas contra um dos princípios mais caros ao conservadorismo brasileiro ainda são débeis, porque grandemente contaminadas pelo reducionismo dos debates ao superficialismo moral contingente, onde a ênfase no julgamento da conduta dos atores ofusca a visão do guarda-chuva ético garantidor da soberania do poder.
Como a discussão sobre a estrutura do Estado é objeto da sociologia, cabe à filosofia desenvolver o debate sobre objetos mais sutis situados no domínio dos bens humanos inalienáveis da ética e moral. E para a sua contextualização no espaço filosófico social, se prestam as distinções entre ética e moral formuladas nos “Princípios da Filosofia do Direito” de Hegel. Destarte, à luz das concepções hegelianas, foi suscitado um jogo de contraposições entre o real e o idealizado, sob a argumentação de um Estado brasileiro eticamente forte e coesamente estável, como um filho adulterino que Hegel jamais adotou. No entanto, aproveitando o rol da recepção do seu sistema que lhe atribui o caráter de Estado ético e forte próprio das ditaduras, houve a leitura de um Brasil totalitário oculto sob a vigência do regime democrático representativo, implícito na sua injustiça social crônica.
No Brasil quase se tem a figura do Príncipe, porque subsumida eticamente e quase se tem o estamento aristocrático, embora convertido conceitualmente aos moldes dos Estados modernos. Banida da visibilidade ética, a aristocracia permanece sob o lusco fusco das leis infraconstitucionais tutelada pelo foro privilegiado, sob o eufemismo de “foro especial por prerrogativa de função”, uma filigrana jurídica extrapolante à malícia dos legisladores, porque resultante da reminiscência ética.
O resultado dos componentes coloniais internalizados foi a criação de um Estado fortemente ético, não teologicamente voltado para o bem, mas para a sua reprodução ao longo do tempo, atendendo a um delicado mecanismo dialético conceitual, onde o todo é aprimorado segundo as inovações humanistas, sem contudo, sofrer abalos no cerne dos arquétipos submersos.
Supõe-se que o Brasil, um dos países campeões mundiais de má distribuição de renda, somente possa ser explicado por ter mantido na sua estrutura básica o modus operandi espoliativo idealizado pelo colonizador europeu. E as discussões sob o pano de fundo moral que a sociedade tem empreendido são insuficientes para o aprofundamento e questionamento da continuidade dos fulcros éticos. Ao abordar a institucionalização dos mecanismos de controle social, este texto aponta uma via de desencadeamento do movimento de contestação aos princípios éticos, uma alternativa de reforço ao impulso reformador que atenda às demandas sociais.
A horizontalização do poder exercido pelas entidades civis, através de constantes pressões sobre a ação política, pode fustigar a tradição do Príncipe subsumido ao quebrar a lógica de uniteralidade das ações políticas. Ao ser implantado o princípio da obrigação de prestação de contas, a demanda por critérios cada vez mais transparentes no manejo da coisa pública será cada vez mais intensa. E ao prestar contas, o Estado será cada vez mais forçado a servir, ou seja, um fato novo na história política brasileira.
Sob a impossibilidade do desvencilhamento completo das utopias, é possível imaginar que o Brasil, contraditando a percepção geral de que as coisas estão piorando, esteja avançando num caminho novo de apropriação do Estado pela Sociedade Civil. Certamente que a visão pessimista se baseia na tradição positivista de aversão ao debate, pois as exigências sobre o governo e os retornos em forma de justificativas, retroagires e mudanças de rumo, se dão através de muita discussão. Aparentemente o aumento do ruído social e das artimanhas do Estado acuado diante das cobranças, sugere que tudo piorou. Contudo a democracia é uma casa permanentemente assaltada pelo barulho dos embates, talvez a única via não revolucionária de mudança de princípios éticos cristalizados. Os veículos de apropriação foram criados e estão atuando e eles se substancializaram na forma dos controles sociais, em cuja atuação repousam as esperanças de produção de rupturas na insidiosa dialética de reprodução do sistema colonialista.
10º Capitulo: "Tensionamentos Filosóficos sobre Distinções entre Ética e Moral na Política Brasileira"
Autor: Isaias Malta da Cunha
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.
Bibliografia.
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