
Minha concepção de filtragem do mundo parte da perspectiva de Cassirer[1] de que a sobrevivência humana tornou-se mais complexa quando a interação com o meio passou a ser mediada por símbolos. Por outro lado, isto possibilitou ao olhar humano ser transformado ou educado.
Ao longo da história das ciências, considerando-se qualquer área de investigação, o pensamento humano foi mudando. Por exemplo, os homens já “viram” uma Terra plana e fixa, hoje “vemos” que nosso planeta é aproximadamente redondo e se movimenta, assim como este exemplo há vários outros que sugerem a possibilidade de transformação do olhar, pois todas as realizações humanas surgem de acordo com as condições históricas e particulares dos seus realizadores.
A possibilidade que a função simbólica proporcionou para a programação dos próprios neurônios, independentemente da informação hereditária, trouxe consigo, maiores oportunidades de sobrevivência ao ser humano, além de torná-lo mais sensível e poético. Para Jacquard [2], a natureza, por acaso ou por necessidade, fabricou o homem, que, como ser livre e capaz de premeditação, construiu a sua própria humanidade. Para aprofundar esse conceito, ele propôs o esquema abaixo sobre a ontogênese do homem.

Esquema de ontogênese do homem proposto por Albert Jacquard (1988: 82)
Nele, Jacquard aborda os aspectos genéticos, ambientais, bem como a capacidade de auto-reflexão do ser humano. As setas representam a contribuição do patrimônio genético, do meio, da sociedade e do próprio sujeito sobre si mesmo. Para ele esta auto-reflexão atingiu um tal nível nos seres humanos que se tornou uma característica específica.
Ao analisar o esquema de Jacquard vemos que ele separa o meio físico do social, porém estas duas entidades são inseparáveis, se aceitarmos como propõe Elias[3], que a própria sociedade se constitui como um meio. Desse modo, para os seres humanos, há, sempre, uma sobreposição entre o meio físico e social. Por exemplo, os alimentos são um meio físico, mas vários aspectos como a sua seleção, consumo, produção e elaboração são amplamente culturais. Desse modo, as abordagens científicas sobre o ser humano e sua cultura devem sempre levar estas questões em consideração. Nesse contexto a proposição de meio físico ou social de Piaget[4] é mais adequada, uma vez que identifica uma ampla sobreposição entre os seus aspectos físicos e sociais, bióticos e abióticos.
A partir de Piaget, Cassirer e Elias, fiz uma releitura de Jaqcard e elaborei o esquema abaixo, integrando o meio físico e social e concebendo o homem como um animal simbólico.

Releitura do esquema anterior, concebendo o homem como um animal simbólico.
Em meu esquema, as setas simbolizam que os indivíduos assimilam o meio físico e social através de um processo ativo de filtragem do mundo. Eles recebem sua informação genética deste meio e realizam sua auto-reflexão a partir dos conceitos que elaboram nesta interação. Em resumo, o animal simbólico sempre se percebe e é percebido através dos filtros que constrói. Desse modo, até mesmo sua auto-reflexão dependerá do contexto em que vive.
Nessa perspectiva, as pessoas são o produto de processos assimiladores resultantes das interações entre sua herança biológica com seu Umwelt[5], mais a própria ação dos sujeitos sobre o meio e sobre eles mesmos. Em outras palavras, as assimilações dos sujeitos são mediadas por filtros, os quais não são herdados, mas construídos ativamente ao longo do desenvolvimento cognitivo. E todo olhar lançado sobre o ser humano deve estar ciente da complexidade destas relações e das suas próprias características de olhar.

Mirian Celeste Martins[5] traduziu o olhar como “percepção cognoscitiva”, que vai além dos dados sensoriais, por isso o nomeou de “sensível olhar-pensante”, pois este é um olhar que pensa, reflete, sente, interpreta e avalia. Um olhar curioso, que estabelece relações e vê diferenças. É olhar de pensamento divergente ou “é olhar que não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre a superfície plana, mas escava, supõe e expõe um campo de significações, é visão feita interrogação”.
Portanto, a mudança dos seres humanos envolve a educação do olhar, no sentido de desafiar e mediar os processos que contribuem para elaboração de filtros capazes de ampliar a assimilação do mundo. Em outras palavras, a educação do olhar, como a almejo, compreende o desenvolvimento e a compreensão de conceitos, que busquem uma melhor relação do ser humano consigo mesmo e com seu meio.
Referências e notas:
[1]- CASSIRER, Ernst. [1944]. Ensaio sobre o homem : introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo : Martins Fontes ltda, 1997.
[2] - JACQUARD, Albert. A herança da liberdade: da animalidade à humanitude. 1ed. Lisboa : Publlicações Dom Quixote, 1988.
[3]- ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história de costumes. Rio de Janeiro : Zahar, v. 1, 1989.
[4] - PIAGET, Jean. [1932] O juízo moral na criança. São Paulo : Summus, 1994a.
[5] – Umwelt é uma palavra alemã que significa o mundo que está à nossa volta.
[6] - MARTINS, Mirian Celeste. Aprendiz da arte: trilhas do sensível olhar pensante, São Paulo : Espaço Pedagógico, 1992.
Pérolas de conhecimento... Tia Gládis... sempre surpreendendo!
ResponderExcluirDr. Paulo é uma honra reencontrá-lo por aqui.
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