25 março, 2009

Os filhos do seu tempo!

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Através de uma análise histórica das transformações dos costumes, pode-se dizer que os indivíduos ou sujeitos são "filhos do seu tempo" se comportando de acordo com seu contexto social em interação com sua condição biológica básica.

Locomover-se é uma necessidade biológica básica dos animais, uma vez que necessitam retirar todo seu alimento do ambiente. No caso específico do ser humano, a postura bípede que desenvolvemos, certamente, requer uma musculatura e articulações ósseas adequadas, todavia nosso caminhar é também um ato social, o qual precisa ser aprendido na interação entre seres humanos, adquirindo nuances culturais.

Lembremos do caso das duas meninas de uma aldeia bengali, ao norte da Índia que, em 1922, foram retiradas de uma família de lobos que as havia criado em total isolamento de qualquer contato humano. Uma delas tinha oito anos e a outra cinco. Quando foram encontradas, as meninas não sabiam andar sobre os pés, mas se moviam rapidamente quando assumiam uma postura quadrúpede.

Além disso, elas não falavam e seus rostos eram inexpressivos, queriam comer apenas carne crua, tinham hábitos noturnos, repeliam o contato humano e preferiam a companhia de cães e lobos. Ao serem separadas da família lobo, elas entraram em profunda depressão, a menor morreu, mas a mais velha sobreviveu dez anos. A “menina-loba”, que sobreviveu, mudou seus hábitos alimentares e ciclos de atividades, aprendeu a falar e a andar sobre os pés, embora sempre voltasse a correr de quatro em situações de emergência [1].

Figura 01- Menina-lobo recebendo alimentos.
Nas espécies sociais, o aprendizado da locomoção envolve, além da postura física, o estabelecimento de uma posição relativa entre os indivíduos em deslocamentos observados em grupos. Essa posição relativa reflete diferentes níveis de poder dos indivíduos em relação ao grupo.

No caso humano isto também pode ser observado, variando de acordo com as diferenças culturais dos povos. Assim, a esposa na cultura tradicional japonesa deve modular seu caminhar a fim de andar sempre um pouco atrás do marido, enquanto a Rainha da Inglaterra sempre segue um pouco à frente do seu consorte.

Norbert Elias [2] denomina de processo civilizador o controle das emoções individuais por limitações internas e externas. As transformações sociais decorrentes dos processos civilizadores sugerem que a humanidade se caracteriza pela mudança. Todavia, essa mudança não é sinônimo de caos, pois há nela uma espécie de ordem, garantindo certos limites que conservam uma estrutura fundamental. Tais limites são construídos a longo prazo a partir de modelos, através de um processo de interação dos indivíduos com seu meio.

Nesse sentido, após amplos estudos de investigação documentaria Elias pode relacionar as estruturas psicológicas individuais ou estruturas de personalidade e as formas criadas por grande número de indivíduos ou estruturas sociais, abordando-as não como fixas, mas como mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo processo de desenvolvimento a longo prazo, mediante o qual a vida afetiva das pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções.

Num outro contexto, ao investigar a maquinaria cognitiva e neurológica subjacente à razão e à tomada de decisões, Damásio [3] concebeu a essência do sentimento como a percepção direta da imagem continuamente atualizada da estrutura e do estado do nosso corpo. A estrutura do corpo ou fenótipo depende amplamente das interações entre a informação genética herdada e o meio físico. Enquanto a imagem atualizada do estado do nosso corpo varia de acordo com o contexto em que estamos inseridos e das informações que recebemos através dos nossos sentidos.

Através da atualização de nossa imagem corporal conseguimos, por exemplo, deslocar-nos no ambiente. É sabido que, em média, os pilotos de aeronaves após entrarem numa nuvem levam um minuto para ficar totalmente desorientados sobre a direção em que se locomovem porque, em ausência de contato direto com uma superfície fixa ao planeta, se altera até mesmo a capacidade de identificar nossa posição postural com precisão. Por este motivo, os aeroportos, que não possuem instrumentos para orientar as aeronaves quando não há condições de visibilidade, fecham para pousos e decolagens durante os nevoeiros.

Outro exemplo que salienta a dependência do nosso sentido de orientação com o contato físico do nosso corpo com o planeta pode ser encontrado na aviação de caça. Sabe-se que quanto maior for a velocidade de uma aeronave será mais difícil para os pilotos identificarem se estão inclinados para um lado ou outro, de cabeça para cima ou para baixo, por este motivo, na aviação de caça a pilotagem depende essencialmente de instrumentos.

Ao longo do desenvolvimento cognitivo, a percepção do mundo vai se ampliando, com a estruturação do sistema nervoso em função da interação sujeito/meio. Piaget se debruçou sobre vários aspectos da construção das percepções na criança sobre os aspectos físicos ou sociais do seu meio. Tais percepções se constituem em descobertas do mundo.

Enquanto determinadas capacidades de percepção, ou estruturas cognitivas não estiverem prontas, partes deste mundo permanecerão transparentes para o sujeito. Assim como existem estruturas específicas para cada função no organismo, existem outras para o ato de conhecer. Piaget utiliza o termo, órgão cognitivo, para designar tais estruturas, as quais se diferenciam progressivamente de estruturas mais gerais, precedentes e podem ser relacionadas com redes neurais.

Para o ser humano, a percepção do mundo vai se modificando à medida que ele elabora conceitos, os quais podem ser alterados ao longo do tempo. Assim, a idéia de olhar, sempre é mais ampla do que o sentido de visão, pois envolve uma interpretação impregnada pela vida particular de cada um.

Notas:
[1] –Fontes: MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995. Amala e Kamala, as meninas-lobo, disponível em:
[2]- ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história de costumes. Rio de Janeiro : Zahar, v. 1, 1989.
[3] - DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes : emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.

Um comentário:

  1. G.F.Sacarrão em sue texto sobre o abuso de metáforas em biologia enfatisa que o conhecimento que formamos da realidade depende, em grande parte, da nossa linguagem, da sua estrutura e forma, das palavras inventadas, dos significados atribuídos, das analogias fantasiadas, etc... O texto completo está disponível em http://www.triplov.com/sacarrao/metafora.html

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