28 março, 2009

A formação da sociedade civil brasileira.


Quando Cabral chegou ao Brasil, deparou-se com os dóceis autóctones, que não constituíam Sociedade Civil. Viram-se os portugueses diante de povos ágrafos, desintegrados em tribos e etnias, algumas antropofágicas e que viviam em constantes guerras intertribais. Hobbes se apropriou dos achados empíricos nas Américas para formular o seu estado de natureza radical e, com poucas diferenças, o seu estado de guerra quase coincide com a estrutura, mais do que familiar e menos do que social, dos indígenas brasileiros:
Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem qualquer espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacifico costumam deixar-se cair, numa guerra civil. (HOBBES, 1983, p.87)



Corroborando Hobbes, os registros das guerras contínuas entre as tribos indicam que o litoral brasileiro já estava quase que totalmente tomado pelas tribos do grupo lingüístico tupi-guarani:
Os Goitacá eram uma das únicas nações indígenas da costa do Brasil que não pertencia ao grupo lingüístico Tupi-Guarani. Na verdade, os seus vizinhos Aimoré (do grupo Jê), os Goitacá tinham resistido à invasão Tupi do litoral brasileiro, que começara no início da era Cristã e ainda estava em andamento quando os portugueses desembarcaram no Brasil em 1500. (BUENO, 1999, p.113)

A afirmação de que as populações indígenas do Brasil pré-descobrimento não formavam Sociedade Civil baseia-se “No conceito de Sociedade Civil, Hegel compreende, antes de mais nada, a necessidade histórica e a formação de uma sociedade despolitizada centrada na economia”. (BECCHI, 1993, p.385) Ora, as tribos indígenas, apesar de constituírem sistemas de atendimento de necessidades, permaneciam como reuniões de famílias isolados, mais próximas do estado de natureza de Hobbes do que do conceito hegeliano de sociedade civil.

A fim de contrapor as explorações informais das riquezas da nova terra pelos franceses, a coroa portuguesa houve por bem implantar no Brasil as Capitanias Hereditárias, num esforço de povoação da terra e a retenção do seu controle. Como que a confirmar a opção de Hegel pelo abstrato em detrimento do real "O real para nós está em terceiro lugar, apesar de que segundo a realidade, seja o primeiro. Assim, formalmente a família é anterior a propriedade, ao delito, etc. Igualmente, o Estado é anterior a moralidade. (HEGEL apud BECCHI, 1993, p.412)”, no Brasil a idéia do Estado foi abstratamente imposta à imagem e semelhança da monarquia lusitana, que deflagrou uma sociedade civil atrelada à função de extração e envio de riquezas, e expiação de pecados.

Menos do que o modelo de sociedade de Hegel, de atendimento às próprias necessidades, a brasileira teve como função atender a de outrem, dentro da lógica colonialista vigente. Quanto ao Estado, este logo fugiu do modelo português e sofreu adaptações em virtude da urgente necessidade de povoamento:
No dia 31 de maio de 1535 (cerca de um ano após a assinatura da primeira carta de doação das Capitanias Hereditárias), o rei D. João III declarou as capitanias do Brasil território “de couto e homizio”; ou seja, uma região na qual crimes cometidos anteriormente em outros lugares ficavam instantaneamente prescritos e perdoados. (BUENO, 1999, p.91)
O resultado disso se mostrou extremamente prejudicial aos donatários, por que:
Embora muitos dos condenados fossem “indivíduos de baixa esfera e de costumes pervertidos, que traziam no próprio corpo o estigma de sua infâmia” – tendo sido marcados com ferro em brasa ou, mais freqüentemente, “desorelhados” – alguns haviam sido punidos por questões fiscais, relacionadas com o não-pagamento de impostos. Ao contrário dos criminosos comuns, muitos deles se dedicaram a atividades produtivas no Brasil. Os demais apelaram para a pirataria e o tráfico de escravos indígenas. Ao todo cerca de 500 degredados devem ter sido trazidos para o Brasil entre 1535 e 1549. (BUENO, 1999, p.91)
Por ter havido aqui a história da formação da sociedade civil de maneira total e resumida, desde o quase Estado hobbesiano de natureza à formação do Estado quase hegeliano, é possível encontrar algumas causas do problema do distanciamento entre Estado e Sociedade. Supondo-se que o Estado tenha se mantido fiel à sua concepção original de instrumento arrecadador da coroa portuguesa, à sociedade civil restou o papel de reagir continuamente às volúpias cortesãs, opondo-se contra a fanha arrecadatória. Passados cinco séculos, a percepção da sociedade continua a mesma, um Estado voluptuosamente dedicado a arrecadar e não a distribuir. As implicações deste conflito original podem suscitar um amplo leque de reflexões. Um deles segue o viés sociológico sob a concepção weberiana, numa visão cara às ciências sociais:
O Weber da versão hoje hegemônica nas ciências sociais e na opinião pública sobre a interpretação do Brasil tem sido aquele dos que apontam o nosso atraso como resultante de um vício de origem, em razão do tipo de colonização a que fomos sujeitos, a chamada herança do patrimonialismo ibérico, cujas estruturas teriam sido ainda mais reforçadas com o transplante, no começo do século XIX, do Estado português no solo americano. Desse legado, continuamente reiterado ao longo do tempo, adviria a marca de uma certa forma de Estado duramente autônomo em relação à sociedade civil, que, ao abafar o mundo dos interesses privados e inibir a livre-iniciativa, teria comprometido a história das instituições com concepções organicistas da vida social e levado à afirmação da racionalidade burocrática em detrimento da racional-legal. (VIANNA, 1999, p.3)

Mas, para superar as hipóteses puramente antropológicas, ou das ciências sociais, a filosofia possui o ferramental necessário para a investigação conceitual da delimitação entre a invisibilidade moral subjetiva e a porção de visibilidade ética social, ocultada no caso brasileiro, subsumida no inconsciente coletivo. Então, sem correr o risco de desvio da tônica centrada na ética subjacente à política, é mister abranger outro horizonte que tensione de maneira mais eficiente a questão da confusão permanente que a sociedade civil brasileira manifesta entre ética e moral. Na tentativa de superação das explicações meramente estruturalistas e históricas, impõem-se a pergunta sobre o porquê do brasileiro não ter realizado o Estado. A adequação da resposta sociológica de um Estado isolado da sociedade não é bastante para contemplar o jogo de forças éticas e morais envolvidas no processo.

A explicitação das origens históricas dá conta por si mesma do problema da continuidade do Estado espoliador? É factível supor que algo ao longo do percurso histórico tenha contribuído para a reprodução histórica do Estado, visto pela sociedade com desconfiança renovada, sem que tenham faltado motivos justos para tal. Percebe-se que no Brasil a sucessão do tempo serviu mais para renovar um simulacro da dialética do senhor-escravo ao binômio Estado-Sociedade, do que para a efetivação do idealismo de Hegel, que imaginou um Estado como instância máxima e plena da realização da liberdade do sujeito.

Falar em sociedade civil leva necessariamente ao debate sobre o Estado, ambos vistos como diferentes instâncias daquilo, que na prática são indissociáveis:
Na tradição hegeliana e marxista, Estado e Sociedade são tomados como entidades distintas e freqüentemente contraditórias. Hegel distingue a sociedade civil, que é o estado da necessidade, do Estado, que representa a vontade geral, a unidade de vida política. De maneira mais específica, para Hegel, a sociedade civil é o fenômeno do Estado, e o Estado a idéia da sociedade. (SCHWARTZMAN, 1988, p.2)

A opção pela estrutura hegeliana não deixa de ser irônica pelo seu conteúdo antitético: a um Estado prussiano idealizado, onde “o problema da conciliação entre o público e o privado, da liberdade individual e da unidade da vontade geral, já estava resolvido.” (SCHWARTZMAN, 1988, p.3), pois se contrapõe ao Estado brasileiro, que é prenhe de todos os conflitos possíveis. Porém, esse paralelismo se torna interessante tanto pela confrontação das antinomias, como pelas similitudes alcançadas, quando no próximo capítulo for operada a substituição conceitual do finalismo do impulso universalizante para o bem, pela neutralidade dirigida a manutenção de velhas heranças.

7º Capitulo: "Tensionamentos Filosóficos sobre Distinções entre Ética e Moral na Política Brasileira."
Autor: Isaias Malta da Cunha
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.

Um comentário:

  1. Anônimo1/7/11

    é muito grande, não dá para colocar na cartolina.

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