09 março, 2009

As redes neurais e o olhar do animal simbólico.

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Os filtros cognitivos não servem apenas para descobrirmos nosso entorno, eles nos revelam a nós mesmos e aos outros.

É possível estabelecer uma estreita relação entre as estruturas cognitivas com a filtragem do mundo, uma vez que todo conhecimento implica assimilações e toda assimilação não consiste em copiar o real, mas em agir sobre ele transformando-o.

Em outras palavras, dizer que o conhecimento supõe uma assimilação e que assimilar consiste em conferir significações equivale a afirmar que conhecer um objeto implica a sua incorporação em esquemas de ação.

A assimilação consiste em modificar o objeto em função da ação e do ponto de vista próprios. Se uma assimilação provocar desequilíbrio das estruturas cognitivas surgirá a acomodação, ou seja, a modificação do sujeito a partir do desequilíbrio provocado. Este processo envolve a formação de novas estruturas cognitivas, as quais irão afetar as novas assimilações e, subseqüentemente, as acomodações, num processo contínuo e profundamente marcado pela história individual de cada um. Assim, os conhecimentos não constituem uma cópia do meio, mas um sistema de interações reais, que refletem a organização auto-reguladora da vida.

Todas as estruturas biológicas assimiladoras de nutrientes, água ou oxigênio são simultaneamente filtros, uma vez que extraem as substâncias necessárias de um sistema complexo, onde estão misturadas aos elementos indesejáveis. As assimilações cognitivas também obedecem às leis gerais da assimilação biológica. Portanto, o conhecimento consiste em extrair as informações, selecionando-as a partir de um contexto amplo.

Nesse sentido, o comportamento se constitui num conjunto de escolhas e de ações sobre o meio, regulando as trocas. De posse das informações é necessário, ainda, organizá-las e regulá-las, para solução dos problemas, pois conhecer implica o acesso e processamento das informações.

Segundo Piaget, os mecanismos cognitivos constituem ao mesmo tempo a resultante dos processos auto-reguladores gerais da organização viva e os órgãos especializados da regulação nas trocas com o meio [1]. Isto significa que existem funções gerais, comuns aos mecanismos orgânicos e cognitivos, mas existe, também, uma especialização progressiva das funções cognitivas, cujo principal objetivo é a adaptação.

Quando examinamos o conjunto do organismo, não se pode afirmar que tudo é adaptativo, pois estamos tratando de uma questão muito intrincada. Os organismos são uma cadeia de eventos que se inicia nos genes, que codificam enzimas, as quais catalisam reações bioquímicas, que determinam as reações celulares, as quais irão determinar as características morfológicas e fisiológicas, que permitirão a sobrevivência e reprodução, num dado ambiente, por sua vez complexo.

Em cada espécie a história de vida dos indivíduos constitui uma estratégia para manter a sobrevivência. Em geral, os fenômenos considerados importantes são os que marcam a reprodução, a forma de crescimento, a longevidade, entre outros. Todos estes processos envolvem a disponibilização de energia. Como a quantidade de energia disponível é finita, há uma escolha a ser feita, pois cada estratégia despende energia nisto ou naquilo. Os comportamentos de escolha de habitat e reconhecimento da espécie, por exemplo, são fundamentais para a sobrevivência. Mesmo em insetos, observam-se intrincados mecanismos comportamentais de exploração do ambiente e escolha de nicho.

Através do comportamento, os organismos tendem a explorar o ambiente de forma diferenciada, percebendo-o como de “granulação” grosseira ou fina, de acordo com sua capacidade de movimento. A noção de grão se refere tanto as dimensões do mosaico ambiental, quanto às variações temporais, climáticas, alimentares e outras. As formas de percepção das espécies influenciam amplamente as interações entre organismo e meio, sugerindo, desse modo, um importante elo entre interação, comportamento e filtragem do mundo.

Piaget ressalta que o comportamento fisiológico de cada espécie supõe, necessariamente, uma série de discriminações cuja natureza não é alheia aos encaixes classificatórios. Por um lado o organismo absorve certas substâncias, desprezando outras, por outro, as substâncias absorvidas se dividem entre o que ficará retido e o que será rejeitado. O que for assimilado será transformado e distribuído de maneiras muito variáveis.

O organismo conserva sua estrutura assimilando substâncias do meio, ao mesmo tempo em que conserva sua organização, a qual se constituirá no ponto de partida daquilo que será o sujeito do conhecimento. Sob sua forma mais geral, uma regulação mantém o equilíbrio relativo de uma estrutura organizada ou de uma organização em vias de construção.

Para compreender a natureza comum entre as regulações orgânicas e cognitivas, é preciso ter em conta que a vida é criadora de formas, o que implica que se dedique à conquista de um meio cada vez mais alargado. Aí residem, igualmente, as características mais centrais de toda cognição [1].

A analogia profunda entre o trabalho construtivo das operações intelectuais e o das transformações orgânicas, consiste em que ambos, continuamente, precisam lutar contra a irreversibilidade dos acontecimentos e a degradação das energias e das transformações. Ambos conseguem isto pela elaboração de sistemas organizados e equilibrados, cujo princípio é a compensação dos desvios e erros, para que haja conservação do sistema [1].

Piaget trata o sistema nervoso como o intermediário necessário entre a organização viva e o conhecimento. Ou seja, a base do conhecimento são os comportamentos instintivos, cujas estruturas consistem em sistemas de esquemas coordenados. Em particular o instinto utiliza aparelhos orgânicos e hereditariamente programados, enquanto a inteligência os descobre no exterior, prepara ou constrói [1].

Através do comportamento as espécies se adaptam ao meio, selecionando seus nichos[2] a partir de um contexto complexo determinado por fatores bióticos e abióticos. Para tanto, um dos aprendizados que precisam desenvolver, caso não recebam hereditariamente, é sua própria separação em relação ao meio, bem como seu próprio reconhecimento como indivíduos e quem são seus pares.

O ser humano não escapa destas necessidades, e é a espécie que mais depende da aquisição destes conhecimentos. Necessitamos aprender a nos auto-interpretarmos ou nos decifrar através assimilações realizadas num contexto sócio-ambiental.

Assim, uma enorme plasticidade é introduzida no organismo através do sistema nervoso, permitindo a cada um, uma história de interações que resultam num caminho específico de mudanças estruturais, através de redes neurais. Estas redes, por sua vez, constituem uma história particular de transformações a partir de uma estrutura inicial.

A formação de redes neurais, portanto, é fundamental para o desenvolvimento cerebral e pode ser definida como a base biológica do conhecimento e, conseqüentemente dos filtros cognitivos. As redes construídas definem o que o sujeito “pode” perceber, constituindo-se num processo de filtragem do mundo.

Os modelos demasiadamente novos deixam o sujeito indiferente, enquanto os sons e movimentos novos comparáveis aos que já percebeu em si mesmo, provocam logo um esforço de reprodução. O interesse parece resultar de uma espécie de mal-estar ou conflito entre a semelhança parcial, que impele o sujeito à assimilação e a indiferença parcial, que tanto atrai a atenção quanto serve de obstáculo à reprodução imediata [3].

A imagem não é simplesmente um prolongamento da percepção, pois resulta de uma construção cujos materiais são fornecidos por uma “substância sensível” e, em última instância, se constitui num esboço de uma imitação possível. A imagem mental é íntima porque diz respeito somente ao indivíduo, servindo, apenas, para traduzir suas experiências particulares e por isso conservando um papel insubstituível ao lado do sistema de signos coletivos. Por este motivo, a linguagem interiorizada se conserva muito mais socializada do que a imagem, tendendo sempre a exteriorizar-se.

Em outras palavras, a imagem não é um derivado da percepção pura, mas o produto de uma “atividade perceptiva” [3], que permitirá, através dos conceitos, regular nossa percepção. Compreender o mundo significa assimilá-lo e nos acomodarmos a ele, de modo que os filtros que intermediam este processo não só afetam nossa maneira de ver como a de agir sobre o mundo, desde os comportamentos mais elementares aos mais complexos.

Notas:
[1]- PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978.
[2]- Nicho - conceituado amplamente como todas as atribuições da espécie em seu habitat: de quem e como a espécie se alimenta, a que organismos serve de alimento, como e onde encontra refúgio, como e onde se reproduz, entre outras inúmeras atividades de que participa. Fundamentalmente é tudo o que uma espécie necessita para sobreviver.
[3]- PIAGET, Jean. [1945] A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho; imagem e representação. Rio de Janeiro : Livros Técnicos e Científicos S.A., 1990.

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