14 fevereiro, 2009

6 – Subsunção ética da aristocracia


O conjunto das normas é um dos reflexos do sistema ético, que se espraia desde a visibilidade social até princípios imersos no inconsciente coletivo. A dinâmica cotidiana, onde se dá o agir moral, é determinante da defasagem entre o dever-ser moral, e o que é ético. Tal defasagem é inerente às discrepâncias entre as características da ética como fenômeno histórico e conservador e a moral, moldada pelas demandas do tempo presente.



No Brasil, devido a fatores históricos responsáveis pela ilegitimidade do Estado, o equilíbrio entre o dever-ser e o que é, tem pendido para a contraparte conservadora, ou seja, a instância particularizante da sociedade em seu impulso demandador de reformas é ineficaz perante a instância universalizante conservadora do Estado.
O tamanho da defasagem entre a ética e a moral é diretamente proporcional ao conflito entre o Estado e a Sociedade Civil, fomentando a percepção de que há poucos detendo muito, enquanto à maioria resta as migalhas. Um mecanismo engendrado ao longo do colonialismo foi a partilha do poder e das riquezas entre poucas e felizardas “criaturas do rei” (MARCHAND apud BUENO, 1999, p.88). Finda a colônia e finda a necessidade de ter um punhado de homens que cuidassem dos interesses da coroa, se manteve forte o sentido de auto-preservação do reduzido clã de compartilhadores do poder e das riquezas.

Mediante a contemplação histórica, instrumento capaz não de prover soluções, mas como esclarecedor de indícios de elementos imutáveis ao longo do tempo, percebe-se que:
Transplantadas para o Brasil, as instituições e estruturas jurídicas portuguesas foram um poderoso fator de unidade nacional, criando entre os habitantes o sentimento de solidariedade e igualdade perante a lei, tanto nas relações civis quanto no conjunto das leis penais. Escravos e índios situavam-se, por definição, fora desse quadro (o que se prolongou até a República), áreas sociológicas e históricas em que “era precária ou inexistente a ordem estatal portuguesa”, aspecto peculiar das conhecidas distinções entre o país real e o país legal. (MARTINS, 2004,p.1)

A existência de duas castas de cidadãos, a dos comuns e as “criaturas do rei”, tem na raiz da sua perpetuação a interveniência de forças contraditoriamente conservadoras e reformistas, atendendo às especificidades teóricas do movimento circular intrínseco à característica dialética. Ambiguamente, se por um lado, o sistema ético tem se aprimorado ao longo dos séculos adquirindo conquistas humanistas, como no resto dos Estados modernos, por outro, uma parte dele tem permanecido infenso a mudanças na forma da distribuição da lei, ou no modo como a moral subjetiva é percebida.


Desde o início da colonização, aparece uma casta inalcançável pelo julgamento moral reservado aos comuns: “no Império era uma justiça de nobreza, era uma justiça de classe, era uma justiça que se ajustava aos princípios monárquicos. Em compensação, somente os barões do Reino tinham acesso à Justiça como autores, e não tinham como réus”. (MACHADO-FILHO, 2007,p.1)

A lógica histórica tem blindado a aristocracia composta pelos detentores de títulos e seus agregados, os ricos e os funcionários públicos de alto escalão numa redoma de direito privativo. E a adoção do sistema montesquiano desde o império e o seu posterior aprimoramento sob o regime republicano, não trouxe consigo um reaparelhamento ético que enquadrasse a nobreza hereditária extinta, a burguesia emergente e o clã burocrático, sob o mesmo guarda-chuva legal fustigador de negros, índios, mestiços, cristãos novos, e “gentes de baixa qualidade”. A partir da implantação da república, houve a reconfiguração da aristocracia hereditária, incluindo ricos e burocratas, agora sob sutis princípios iluministas, não mais como um estamento amparado legalmente, mas insinuado sub-repticiamente por entre os buracos negros das legislações infraconstitucionais:
No Brasil, a aristocracia está bem definida: são mais de 700 autoridades dos Três Poderes (presidente e vice-presidente da república, ministros de Estado, senadores, deputados federais e ministros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral e Tribunal Superior do Trabalho) que só podem ser julgadas penalmente pelo STF. Essa situação traz problemas de cunho ético e prático. (AGUIAR, 2007)

A sobrevivência da nobreza do foro privilegiado em tempos modernos, ao manter algumas características quinhetistas, aprofunda o debate sobre a validade do que é legal em detrimento do moral. Mesmo que a sociedade chegue à conclusão consensual de que nem tudo que é legal, é moral, coopta com a distorção perceptível sob a forma de “alguns mais iguais do que outros”. Então, a sociedade apesar de, em sua instância ainda particularizada não aceitar a continuidade da aristocracia como fato moral, ao nível universalizador do Estado, visto por Hegel como única instância possibilitadora da plenitude da liberdade do sujeito, confirma a sua validade.

Tal contradição é minimizada por uma explicação de senso comum, que diz que no fundo o cidadão comum não abomina tanto os privilégios, na esperança de um dia poder tê-los.

Além da causalidade histórica abordada, a divisão da cidadania em castas se faz sob a luz de diversas motivações. Há que se questionar as razões consagradoras de um princípio que isenta as elites dirigentes dos tribunais concebidos sob inspiração igualitária, uma vez que se baseiam na tradição do medo atávico à potencial injustiça decorrente das perseguições dos juízes locais. Observa-se um senso extremado de auto-preservação que ao transcender os códigos escritos, deforma a execução das leis e extrapola as proibições das diversas constituições promulgadas desde a monarquia.

Não obstante as reiteradas condenações ao instituto do fórum privilegiado: “No constitucionalismo brasileiro, o foro privilegiado, não obstante muitas vezes tolerado, em caráter excepcional, para o processo e julgamento de determinadas autoridades públicas na esfera penal, sempre foi objeto de forte repulsa, desde a nossa primeira Constituição.” (ROLIM, 2005, p.1). Todavia, nunca houve a efetivação desse idealismo constitucional, porque na práxis é a excrescência que se impõe.

Não obstante a ojeriza constitucional, os termos podem ser mudados sacando-se a palavra “privilégio” e substituindo-a pelo pomposo e hermético nome de “foro especial por prerrogativa de função” (SCHETTINO, 2007, p.1), eternizando-se a nobreza republicana historicamente consolidada. A argumentação na linha da suposição de uma aristocracia subsumida tem como objetivo atacar transversalmente o problema da corrupção, não mais visto sob a ótica moral do juízo de mérito sobre a virtude dos atores envolvidos. O deslocamento para o ponto de vista ético visa questionar os pressupostos de onde emanam os poderes amparadores da casta operadora do crime.

A inversão metodológica se impõe perante a constatação de que encabeçando os grandes escândalos públicos de corrupção, estão os membros da nobreza. Portanto, urge investigar possíveis relações causais entre ética, impunidade e corrupção. Assim, pode-se concluir surpreendentemente que, mesmo que a corrupção aconteça em conseqüência da desvinculação entre política e moral, não deixa de ser um fenômeno perfeitamente integrado ao sistema ético. Os ungidos pelo foro privilegiado se movimentam unicamente sob a inspiração do imperativo categórico kantiano, uma vez que os seus cometimentos morais pertencem exclusivamente ao fórum íntimo da sua consciência.

Não necessitando prestar contas aos tribunais comuns, os agentes públicos brasileiros dependem da própria vontade em fazer o bem e caso não o façam, não será a coação do Estado a lhes tolher as inclinações malévolas.
6º Capitulo: "Tensionamentos Filosóficos sobre Distinções entre Ética e Moral na Política Brasileira."
Autor: Isaias Malta da Cunha
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.
Zabazuba

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