10 janeiro, 2009

O comportamento adquirido e a mutabilidade da natureza humana.

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Em relação a percepção humana, nossa biologia nos impõe limitações tais como a maneira previsível e restrita do olho explorar um campo visual. Somos cegos para a luz ultravioleta, facilmente percebida por certos insetos. Nossos ouvidos são completamente surdos para as freqüências ultra-sônicas utilizadas por morcegos e golfinhos. Nosso sentido de gosto é medíocre em relação à abelha.

Nosso olfato é muito mais pobre do que o de cachorros e outros animais domésticos. Não temos nenhum conhecimento sobre a orientação em campos elétricos ou magnéticos ou até a luz polarizada, que são estímulos percebidos claramente por diversos animais. Todavia, por mais que o ser humano tenha estruturas limitadas em nível fisiológico, obteve um desenvolvimento cultural extremamente complexo, que afeta não apenas o intercâmbio de energia como de matéria e conhecimento.



Para a Biologia, é possível definir o comportamento como o conjunto das ações que os organismos exercem sobre o meio exterior para modificarem os seus estados, ou para transformarem a sua própria situação em relação a este meio.

Já para Piaget [1], o comportamento é o instrumento cognitivo da conquista funcional do meio e serve como um motor da evolução. Ele explica que o comportamento é constituído pelas ações que visam utilizar ou transformar o meio e também conservar ou aumentar os poderes que os organismos exercem, resultando numa extensão progressiva do ambiente e um aumento dos poderes do organismo sobre ele.

Em suas palavras: “a característica mais específica e misteriosa do comportamento é a exigência de ir sempre mais além, o que pode parecer contrário às leis da economia, mas tem como resultado a diferenciação ou complexificação da organização somática” (Piaget, 1976, p. 141).

Há uma lógica nos processos vitais, uma possibilidade estrutural que serve de fundo para as diferentes manifestações, que caracterizam a diversidade de seres vivos. Os organismos são sistemas abertos, cujas estruturas constituem a condição de seu funcionamento. Assim, todos os animais utilizam certos estímulos ambientais para desencadear e guiar seu comportamento de forma a equilibrar a condição ou contradição entre a necessidade de serem sistemas abertos, com um relativo fechamento, que lhes garante a permanência como sistema.

Nesse contexto, a estrutura do sistema nervoso define as bases biológicas do comportamento.

Todavia, as respostas comportamentais não dependem exclusivamente do sistema nervoso, algumas plantas "se comportam" sem possuir qualquer vestígio de sistema nervoso, como as "carnívoras", que modificam rapidamente folhas ou pétalas para apreender insetos. Mas, a gama de comportamentos em organismos multicelulares, que não possuem sistema nervoso, é muito limitada. Pode-se, portanto, trabalhar com a hipótese de que os comportamentos complexos dependem de um sistema de circuitos, relés e centros de controles que classificamos como sistema nervoso.

Antes de aprofundarmos esta questão, convém lembrar que nenhum cérebro tem possibilidades de lidar com mais do que uma fração das informações potenciais que lhe chegam dos órgãos dos sentidos. Os órgãos dos sentidos transformam algumas características físicas do ambiente - cores, sons, odores - em séries de impulsos nervosos que viajam pelas fibras sensoriais até o cérebro.

Calcula-se que existam, uns 3 milhões dessas fibras de entrada no sistema nervoso humano. Se considerarmos cada uma como um interruptor que possa estar ou ligado ou desligado, são possíveis 23000000 diferentes combinações de entrada. Para lidar com elas, o cérebro dispõe apenas de 1010 neurônios e este número, embora muito grande, é insignificante se comparado com o primeiro, que é muito maior do que a estimativa que se tem do número de partículas em todo o universo.

A discrepância entre as possibilidades de entrada e a capacidade de processamento da informação gera a necessidade de filtragem dos estímulos. É óbvio que nem todos os 23000000 de combinações de atividades das fibras sensoriais podem ocorrer. Muitas delas não precisam ser consideradas por não ter nenhum sentido, no que se refere à sobrevivência de determinado organismo, já alguns sinais são fundamentais e devem ser captados, selecionados e reconhecidos com precisão. Em biologia se utiliza o termo estímulo chave para designar estes sinais inequívocos do ambiente. Já os sinais que emanam de membros da mesma espécie, nos seus processos de comunicação, são chamados sinais sociais.

Por exemplo, os sinais que influenciam de forma fundamental a sobrevivência e reprodução do animal devem ser previsíveis e seguros. Assim, um morcego precisa esperar que a intensidade luminosa diminua, a fim de iniciar seu vôo crepuscular, mas não pode usar como estímulo a queda de temperatura, que normalmente acompanha o crepúsculo porque este sinal está também associado com outras circunstâncias diferentes.

As pesquisas sobre estímulos chave e sinais sociais sugerem que um animal responde a apenas uma parte do ambiente e ignora o resto [2]. Mesmo quando “misturado” aos sinais emitidos por outras espécies, os animais respondem apenas aos sinais sociais emitidos por indivíduos da sua espécie. Estes comportamentos elementares perfeitamente ajustados às necessidades dos seres vivos são, para Piaget, o resultado de fenocópias, onde a construção neural se deu em resposta às interações organismo/meio e a informação hereditária, de alguma forma, graças as suas potencialidades, assimilou o desencadeamento dessa construção [1].

A seleção dos sinais chave ou sociais levanta o problema de saber até que ponto os estímulos ignorados penetram no organismo? Onde fica o "filtro" que separa os demais estímulos ambientais daqueles que são chave ou sinais sociais e os torna sem efeito?

Uma parte da resposta pode ser encontrada nos órgãos sensoriais e nervos aferentes que partem deles em direção aos centros de processamento do sistema nervoso central, os quais se desenvolveram especialmente ao longo da evolução para identificar e selecionar os estímulos que chegam ao organismo. O resultado final desse processo de filtragem perceptiva leva o animal a responder seletivamente aos estímulos sinais do ambiente.

Esse sistema de "filtragem" que seleciona a entrada de estímulos é denominado periférico. Na filtração periférica, a primeira limitação é imposta pelos órgãos sensoriais e é relativamente fácil investigar quais sinais um animal consegue captar, em função das respostas que consegue dar. Por exemplo, os nossos olhos são insensíveis à luz ultravioleta, assim como os nossos ouvidos aos sons superiores aos vinte quilociclos.

Para descobrir se as abelhas são capazes de ver cores, o etólogo alemão Karl von Frisch, realizou um experimento simples mas engenhoso. Primeiro treinou abelhas a buscar mel numa flor artificial colorida. Depois colocou esta flor num painel, juntamente com outras flores com a mesma forma, porém cinzentas. Se as abelhas não fossem capazes de distinguir cores, tudo lhes pareceria igualmente cinza e tentariam encontrar o mel procurando indistintamente em qualquer flor. Todavia, von Frisch constatou que elas procuraram o mel apenas na flor colorida. Graças a esta descoberta lhe foi concedido um prêmio Nobel em 1973. Na imagem abaixo a flor da esquerda apresenta a cor vista por nós, enquanto a da direita mostra como a mesma flor é vista pelos insetos que percebem o ultravioleta [6].

A partir desse experimento pioneiro, numerosos estudos foram empreendidos e já se descobriu que as abelhas são capazes de discriminar cores e nuances, mesmo quando iluminadas por fontes tão diferentes como o sol ou uma lâmpada elétrica. Além disso elas vêem formas, movimentos, a posição num campo visual e a profundidade dos objetos. Constatou-se, também, que percebem nuances na faixa de luz ultravioleta, que são indistinguíveis ao olho humano[3].

Todavia, o principal problema é compreender a natureza dos filtros não periféricos, pois há muitos casos em que as respostas de um animal não podem ser atribuídas, exclusivamente, aos seus órgãos dos sentidos, pois os animais respondem diferentemente aos aspectos de uma mesma situação, de acordo com seu "estado de ânimo"[2].

Experimentos de psicólogos do comportamento animal, os quais investigam como os animais reconhecem objetos, demonstram que, de algum modo, o filtro muda, quando muda o estado motivacional do animal. Dessa forma, um animal com fome, por exemplo, reage muito mais intensivamente aos estímulos chave relacionados a obtenção de alimentos do que um animal saciado [2]. Isto leva à hipótese de que uma parte da seleção acontece centralmente.

Parece improvável que exista apenas um tipo de mecanismo, mas possivelmente haja muita coisa em comum entre as propriedades dos filtros "construídos", que mediam as discriminações aprendidas e as daqueles, cujo desenvolvimento é controlado por genes. Embora a determinação genética dos comportamentos seja extremamente complexa, dado que sua manifestação é bastante afastada de sua caracterização no genótipo, componentes da escolha de habitat como temperatura, luz, umidade e preferência alimentar, são passíveis de análise isolada para a determinação de sua base genética [4].

Quase todos os comportamentos, que observamos nos animais são adaptativos, respondendo aos estímulos apropriados de maneira eficiente e os erros observados são, em geral, observados apenas em animais colocados em ambientes artificiais, que não mimetizam condições naturais adequadas. Já para o ser humano os ambientes artificiais são o seu meio natural, dessa forma, a sua gênese adquire uma multiplicidade de matizes, os quais são impregnados pelo contexto sociocultural em que se desenvolveram. A organização estrutural das populações humanas é certamente a mais elevada do reino animal, acarretando um intercâmbio e interdependência entre populações muito maior do que o observável para outras espécies. Contudo, todos estes matizes possuem pontos em comum a partir dos padrões biológicos dos quais dependem.

Como discuti anteriormente, nascemos “prematuros” em termos de desenvolvimento físico em geral e neurológico em particular. A maior parte do nosso sistema nervoso se desenvolve em contato com um ambiente muito mais rico do que o intra-uterino, em termos de interações possíveis. Como conseqüência, nosso comportamento apresenta uma acentuada plasticidade, que se traduz por uma ampla capacidade de adaptação aos ambientes culturais muito variáveis, sempre se levando em conta que os esquemas cognitivos dependem das coordenações nervosas e são solidários com a organização vital no seu conjunto.

A plasticidade se caracteriza pela necessidade de mudarmos, estruturando e complexificando nosso comportamento a partir de “saberes” hereditários elementares como sugar, tocar e olhar até alcançar o conhecimento lógico matemático, através de etapas intermediárias, que demonstram a existência de um processo evolutivo ligando esses pontos extremos do desenvolvimento intelectual do ser humano.

Mais do que para qualquer outra espécie animal, a mudança é requisito básico para a sobrevivência do ser humano. Desse modo, a capacidade cerebral para possibilitar um comportamento complexo deve ser herdada, porém o resultado final é menos dirigido por informações inatas e mais orientado pelo conhecimento adquirido.

Devido à sua constituição biológica, não só é verdade que o ser humano está mais apto a controlar o seu comportamento do que qualquer outra criatura, como também que o seu comportamento deve trazer a marca daquilo que aprendeu. Os padrões de comportamento de uma criança não só podem como devem evoluir muito por meio da aprendizagem, se é que a criança pretende sobreviver [5].

De certo modo, quando se trata de “saber viver” é mais fácil ser como os insetos. Um bom exemplo é a vespa escavadora Philanthus triangulum, que emerge de sua pupa na primavera, quando seus pais já estão mortos desde o verão anterior. Ela precisa se acasalar com um macho e depois desenvolver uma série de comportamentos complexos como escavar buracos para os ninhos e construir células no seu interior, caçar presas tais como lagartas para abastecer as células, colocar ovos e fechar as células. Tudo isso precisa ser completado em algumas semanas antes que morra. Certamente, a vespa escavadora não poderia sobreviver se tivesse que aprender tudo isto por tentativa e erro. Assim, já "nasce sabendo", herdando, sem precisar aprender, todo um conhecimento necessário à sua sobrevivência.

Embora as vespas escavadoras precisem aprender muitas coisas durante sua breve vida como, por exemplo, a localização exata de cada um de seus ninhos, de forma a voltar a eles após as caçadas, não precisam descobrir o que é ser uma vespa escavadora ou o que podem ou não comer. Seu comportamento de caça é desencadeado pela simples presença da presa, embora os "detalhes" desse comportamento sejam estabelecidos no próprio ato da caça de acordo com as reações específicas da presa, ou seja, sua modulação se dará a partir da interação do organismo com seu meio. Do mesmo modo, machos e fêmeas da vespa escavadora são perfeitamente capazes de se reconhecerem e estabelecerem comportamentos de acasalamento, os quais se ajustam à medida que são executados em parceria.

A seleção natural favoreceu uma resposta herdada ou instintiva nos casos em que a lentidão do aprendizado poderia ser fatal, mas o aprendizado é a característica básica de organismos mais complexos como os mamíferos e apresenta como principal vantagem sobre o instinto seu potencial maior para modificar o comportamento de modo a adaptá-lo às circunstâncias novas.

Se considerarmos um filhote de leão, veremos que nasce indefeso, recebe abrigo e alimento de sua mãe até que possa deslocar-se pelas proximidades. É acostumado gradativamente com alimentos sólidos e adquire agilidade nas brincadeiras com seus companheiros de ninhada. Pode observar e imitar os membros adultos do grupo e é capaz de caçar sua primeira presa aos seis meses de idade, atingindo seu desenvolvimento completo aos dois anos ou mais. O leão jovem possui algumas tendências predatórias que são certamente instintivas, embora precise aprender a dirigi-las.

Vespa escavadora [7]
A vespa escavadora, que já nasce sabendo e o filhote de leão, que pode aprender com relativa facilidade exemplificam a dualidade entre os instintivos e as aprendizagens.

O instinto envolve respostas corretas, “pré-formadas” no sistema nervoso como parte de sua estrutura herdada, as quais são aprimoradas com o uso. O aprendizado envolve a capacidade de modificação do comportamento em virtude das experiências ao longo do desenvolvimento, no sentido de obterem-se os melhores resultados adaptativos.

A principal vantagem do instinto sobre o aprendizado é a prontidão das respostas, enquanto a principal vantagem do aprendizado sobre o instinto é seu maior potencial para modificar o comportamento de modo a adaptá-lo às circunstâncias novas. Este último caso é mais importante para um animal de vida longa do que para um inseto que vive apenas poucos dias ou semanas.

Os instintos refletem a história evolutiva da espécie, seu desenvolvimento filogenético, enquanto o aprendizado reflete mais a história do indivíduo ou seu desenvolvimento ontogenético. Tanto um quanto o outro resultam de pressões seletivas, decorrentes das interações organismo/meio, dos desequilíbrios e reequilibrações característicos de qualquer processo construtivo.

A seleção natural pode produzir diferentes graus de capacidade para aprender em função das peculiaridades da vida de cada espécie. No nosso caso particular, essa capacidade, é quase ilimitada, fazendo com que o homem possa distanciar-se infinitamente do homem biológico, de forma a sufocar completamente, até mesmo, seu instinto de sobrevivência. Lembremos os casos de terroristas fundamentalistas, que são capazes de explodirem-se com bombas presas aos seus corpos em nome de suas causas, na perspectiva de com isto conquistarem um paraíso não visitado, apenas imaginado.

A nossa capacidade de aprendizado nos conferiu uma espécie de natureza mutável, que nos capacita por conseqüência a ampliar do modo fantástico nosso Umwelt. Temos inúmeras opções de ser, pois além de uma quase ilimitada capacidade de modificação via comportamento adquirido, nossa via biológica é também bastante permissiva. Temos capacidade de obter alimento de uma gama enorme de fontes, suportamos uma quantidade muito grande de climas, construímos uma quantidade impressionante de ferramentas e artefatos e somos capazes de modificar o ambiente à nossa volta de uma forma impensável para qualquer outra espécie de ser vivo, criando um círculo vicioso gerador de contínuas mudanças.

Referências e Notas:
[1]- PIAGET, Jean. [1976]. Comportamento, motriz da evolução Porto/Portugal : RÉS ed, 1976.
[2]- MANNING, Aubrey. Introdução ao comportamento animal. 1ed. Rio de Janeiro : Livros Técnicos e Científicos, 1977.
[3] - VENTURA, Dora F. ; MENZEL, Randolf. A visão de cores das abelhas. Ciência Hoje São Paulo, v. 12, n. 67, p. 36 - 45, 1990.
[4]- SAAVEDRA, Carmen C. R. Heterogeneidade Ambiental e variabilidade isoenzimática de populações de Drosophila maculifrons em comunidades dinamicamente diferenciadas, Porto Alegre : UFRGS, 1992. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal da Rio Grande do Sul. Instituto de Biociências. Curso de Pós-Graduação em Genética.
[5]- ELIAS, Norbert. [1970] Introdução à sociologia. Lisboa : Edições 70, 1980.
[6] - Inusitatus: Como os insetos vêem as flores. 
[7] - Fão Natural Insectos

Um comentário:

  1. Anônimo22/6/12

    Muita encheção de linguiça, eu não entendi nada!

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