A síntese do povo brasileiro: um povo sem história, mas um “[...] país do futuro; segundo aquela idéia de Stefan Zweig. E porque ‘no Brasil é mais fácil fazer uma história do futuro do que do passado’, nos falava Padre Antônio Vieira”. (GUIMARÃES, 2006, p.5). No entanto, o culto à história do futuro não impede a escravidão ao passado, não como escolha soberana e consciente, mas por negação e esquecimento da história, que enseja a repetição de velhos vícios.
Além de inventar o futuro, o Brasil também inventou um passado conveniente, por intermédio da pena de Francisco Adolfo de Varnhagen:
O passado é como uma sombra constante que ronda cada nova época. Cada presente seleciona um passado que deseja e lhe interessa conhecer. A ‘apropriação’ do passado segundo os interesses das classes detentoras do poder é algo muitíssimo importante, pois é sobre ele que se erguem presente e futuro. Assim sendo, deturpações, omissões, manipulações e falsificações não faltam para que se alcance o objetivo de forjar a ‘verdade’ dos dominadores como sendo verdade geral. No caso brasileiro, o projeto de nação recém-"independente" necessitava de um passado do qual pudesse se orgulhar, um passado de grandes feitos executados por homens nobres. Era preciso que o novo país se auto-identificasse geográfica e historicamente, sua natureza, suas riquezas, seus limites e fronteiras e também os fatos memoráveis de seus melhores filhos, os luso-brasileiros. O esquecimento não podia apagar as glórias vividas, elas deveriam constituir o quadro de nossa memória. Dessa forma, construiu-se a narrativa histórica conforme os interesses da monarquia, a história dos vencedores. E não faltaram os documentos que a sustentasse... (ALMEIDA, 2007, p.1)
Mas a história esquecida persiste na base da formulação ética forjada no processo de colonização, não por obra das ordenações manuelinas, e sim na recôndita admissão do não escrito, não pensado, no furo das leis, e no jeitinho consagrado de tirar vantagem em tudo. Enquadrar a Sociedade Civil, em conflito interminável com um Estado vocacionadamente extrativista, em uma das correntes clássicas da filosofia ocidental é tarefa complexa porque “afinal, os caminhos e descaminhos da formação histórica brasileira, particularmente no espaço cultural, criaram uma intelligentsia que não pôde trazer ‘no sangue’ a grande cultura clássica e humanista, base de toda especulação filosófica sobre o mundo” (NOGUEIRA, 1987, p.2).
Diante do descobrimento de alguns elementos históricos remanescentes na cultura contemporânea, cabe destacar a figura imponente do príncipe. O tipo de regime presidencialista consagrado no Brasil é um forte indicativo de que a carga anímica aposta ao cargo de chefe do executivo transcende em muito as limitações formais intrínsecas ao posto, contrariamente ao que acontece nas democracias ocidentais. Tradicionalmente no Brasil, tal figura tem se revestido da metafísica de “salvador da pátria”. Talvez como resultante da herança do absolutismo monárquico, persiste a crença que o presidente “cuide” do país e aja de acordo com uma esperável virtuosidade sobre-humana. Porém, a frustração sucede à euforia, que se personifica através da diabolização do Príncipe almejado. Das alcunhas de “Pedro Banana” de Dom Pedro II, à dos “Marechais Loucos” da república, o círculo vicioso da pérfida transformação de príncipe a sapo não tem impedido que os anseios populares permaneçam inabaláveis: sempre esperando que o próximo Príncipe resolva todos os problemas, comungando um ufanismo positivista no futuro.
Podem as ações dos príncipes em carne e osso serem objeto da história e ciências sociais, mas o conceito entronizado pertence à filosofia, porque é um dos valores arcaicos suprassumidos no processo dialético brasileiro. Mas, a confirmar as nossas peculiaridades, o nosso príncipe conceitual não se enquadra nem totalmente no modelo maquiaveliano, nem no hegeliano, quiçá o brasileiro esteja eqüidistantemente situado entre os dois. Aproxima-se de Maquiavel, quanto ao utilitarismo do poder a serviço do completo descolamento entre política e moral, pois ele “[...] não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, uma vez que, freqüentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião” (MAQUIAVEL, 2006, p.33), e de Hegel, pela totalidade histórica consolidante do Estado ético, mas não como “um Estado ético necessariamente bom, e sim, aquele que corresponde ao ethos”. (GUIMARÃES, 1987, p.7).
Construir paralelos entre o Estado idealizado de Hegel e o daqui de origens antropofágicas se justifica diante da coerência histórica, marcada pela eternização dos costumes extrativistas. Justapor um Estado conceitual inspirando na emergência prussiana do século XIX, àquele efetivado diretamente do Estado hobbesiano de natureza, encontra similitudes no exercício monolítico do poder. Numa terra selvagem, cuja promessa era a fortuna que possibilitaria o usufruto de uma vida de rei no além mar, o passado se dissolve e a miragem do devir é a única realidade. O resgate da história oculta sob a mistificação, aquela que dá sentido às implicitudes mergulhadas no inconsciente coletivo, forneceria à contemporaneidade algumas relações de causalidade entre a sucessão de escândalos e a realidade por traz do mito. É provável que das entrelinhas da história negada, apagada, remendada ou omitida, surja a visão da imanência política-historicidade, trazendo nova luz às velhas pautas da corrupção, impunidade e concentração do poder político.
A história para Hegel é essencialmente história política. E a idéia é a totalidade onde estão suprassumidos o conceito e a objetividade; é a efetividade só é enquanto existe e para sua existência exige sua exposição. A chamada “substância ética” é siminultaneamente família, Sociedade Civil e Estado. E, segundo T. Weber (1993), nas palavras de Hegel, a eticidade, quando “minha vontade seja posta como adequada ao conceito e com isso superada e guardada sua subjetividade. (GUIMARÃES, 1987, p.6)
O príncipe brasileiro, além das características imediatas maquiavelianas, tem se reproduzido ao logo da história obedecendo ao movimento dialético do universal à singularidade na subjetividade do governante supremo. A superação tem sido no sentido de adaptação às configurações históricas que, por mudarem, levam a casta do poder a se adaptar, porém sem perder sua configuração essencial. É como se em terras tupiniquins a dialética hegeliana fosse aplicada antiteticamente às elocubrações germânicas, mas que mesmo divergindo quanto à intencionalidade, na efetivação cumpre simultaneamente a função de conservação e avanço; se por um lado atualiza o sistema em resposta às demandas dos novos tempos, por outro conserva a essência arcaica do Estado:
O conceito hegeliano de aufheben (ou aufhebung) traduzido por P. Meneses como “suprassumir” (ou “suprassunção”) é um pensar em três momentos: universal, particular e singular. E não deve ser entendido como a famosa tríade (marxiana): tese, antítese e síntese. Uma vez que o pensar dialético hegeliano é simultâneo. O movimento do universal é negado e restringido pelo particular, o qual por sua vez é suprassumido no singular. Este é um “universal concreto”, em que a generalidade do primeiro universal se enriquece com as determinidades do segundo momento, alcançando realização autêntica, onde a unidade está enriquecida pelas diferenças e as diferenças reconduzidas à unidade. É, segundo Hegel, negar-conservar-elevar; descobrir o universal no particular e ambos no singular. E isso se estende à totalidade do real. Daí a necessidade do pensamento harmonizar-se com a “própria coisa”, de captar o ritmo do todo e o dinamismo da realidade em sua efetividade. (GUIMARÃES, 1987, p.6)
O artifício da síntese dos príncipes maquiveliano e hegeliano, é um esforço destinado a dar conta do conceito do monarca subsumido no seio da ética brasileira, visando lançar luz sobre possíveis mecanismos que se ocultam nos bastidores da história inventada. Genuinamente tido como mais um feito da capacidade brasileira de fabricar aparências, ao fantasiar uma história épica desvinculada da realidade histórica, eternizou princípios que de outra forma já teriam se extinguido.
4º Capitulo: "Tensionamentos Filosóficos sobre Distinções entre Ética e Moral na Política Brasileira."
Autor: Isaias Malta da Cunha
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.
BibliografiaTrabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.
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