12 dezembro, 2008

3- O Pensamento Brasileiro e a Aporia Ética.

Encontrar literatura concernente ao assunto ética na política é uma tarefa difícil diante da raridade das obras, acrescida da dificuldade de encontrar neste campo produção que não se deixe enredar na tentação do reducionismo moral. O pensamento mais amiúde encontrável são verberações panfletárias contra a corrupção, a impunidade e o descalabro que exibem embaralhamento conceitual entre moral e ética. Destarte, depois de muitos anos de produção intelectual focada na moral cotidiana, a ineficiência desta linha de abordagem é palpável pelo seu efeito quase nulo na ação política. Não obstante o combate aos corruptos, a corrupção remanesce no sistema. O agente público que cai é apenas uma peça perdida no complexo tabuleiro do xadrez político, que será substituída por outra figura, entrementes submetida às mesmas tentações, pois são as facilitações do cargo as reais causadoras dos recorrentes desvios morais.



A melhor metáfora para descrever a situação política brasileira é a do cachorro tentando morder o próprio rabo, uma simbologia das ações que, por não envolverem uma reflexão profunda sobre o Estado, se vaporizam na provisoriedade das emergências cotidianas. Paralelamente à pontualidade da ação das instituições, o não pensamento sobre o Estado tem as suas raízes na não existência de uma filosofia brasileira. Nossos autores jamais desenvolveram uma textura conceitual própria “[...] nossa reflexão sobre a política é ainda pobre e imatura [...] não temos qualquer tradição consolidada de trabalho no campo da teoria geral da política ou mesmo da história das idéias políticas, e ainda capengamos no terreno da filosofia política”. (NOGUEIRA, 1987, p.1). A dificuldade adicional é que as correntes universais do pensamento moderno, no post-mortem dos sistemas filosóficos a partir de Hegel, se engalfinharam em áridas análises da linguagem e renunciaram ao utopismo de uma ética vinculante voltada para ao gênero humano.

A grande filosofia, enredada em aporias e particularismos, abandonou a tematização ética e se omitiu do processo de pensamento sobre o animal social. Resultado: seus objetos mais caros têm sido abocanhados por outras ciências:

A formação das ciências significa, ao mesmo tempo, a sua emancipação da filosofia e a sua conseqüente auto-suficiência. Este acontecimento faz parte do acabamento da filosofia e o seu desenvolvimento está hoje em pleno auge em todos os âmbitos do ente. Parece a pura e simples desintegração da filosofia, quando é na realidade, justamente o seu acabamento. É bastante ressaltar a independência da psicologia, sociologia e da antropologia como antropologia cultural, o papel da lógica como logística e semântica. A filosofia se transforma em ciência empírica do homem, de tudo o que possa se converter em objeto experimental da sua técnica, graças a qual se instala no mundo, mediante diversas formas de atuar e criar. (HEIDEGGER, 2007, p.2)

Como corolário da extenuação filosófica, a debilidade em lidar com o problema ético oportunizou às ciências sociais e antropológicas a ocupação do vácuo epistemológico, quando passaram a ditar novos arcabouços, porém limitadas pelos particularismos das suas especificidades e tolhidas pela estreiteza dos seus ferramentais teóricos, cedem amiúde ao apelo da facilidade utilitarista. O produto da derrocada do pensamento filosófico sistêmico foi a perda da visão global, que se reflete sobre a crítica política, onde paralelamente aos debates exaustivos sobre a falta de virtuosidade dos governantes, a perspectiva dos vícios embutidos nas instituições é esquecida:

A questão das relações entre ética e política se transformou na questão número um do debate nacional a partir das denúncias de corrupção no ano passado [episódio que ficou conhecido como mensalão]. Este debate tem certamente méritos e é de fundamental importância para a vida nacional, mas é marcado por uma visão muito unilateral do fenômeno político. Ele dá a entender que tudo seria maravilhoso se nossos governantes possuíssem um conjunto de virtudes que atestassem seu bom caráter do qual dependeriam a paz e a ordem social. Perde-se assim uma das intuições fundamentais do pensamento político ocidental desde seus primórdios: o que é decisivo para a ética na política não são simplesmente as virtudes privadas dos governantes, mas o ordenamento institucional, porque é dele que depende se os cidadãos têm acesso ou não a seus direitos universais. (OLIVEIRA, 2006, p.1)

O Brasil, à margem das aporias éticas, por não ter construído sua própria estrutura de pensamento, tem adotado desde o século XIX as concepções do pensamento positivista do tipo comteano. As marcas indeléveis deixadas pelo positivismo, não pela transitória passagem por um período do pensamento filosófico, mas pela continuidade da sua vigência, são o culto ao ufanismo e a crença quase religiosa no futuro. Portanto, a aversão ao debate advindo da inépcia em conviver com a tensão dos pensamentos contraditórios, são sintomas denunciadores da perduração do movimento filosófico, que embora extinto, permanece vivo no, talvez, único país positivista comteano do mundo:

O positivismo, principalmente de tipo comteano, é caracterizado pela confiança acrítica na estabilidade e no crescimento progressivo da ciência. O positivismo científico (dissidência do positivismo ‘puro’ de cunho político-religioso) reivindica o primado da ciência no que diz respeito ao conhecimento humano: ciência, logo previsão; previsão, logo ação. O método das ciências naturais (identificação das leis causais e seu domínio sobre os fatos) e o primado desse método como instrumento cognoscitivo, afirma o positivismo, seria capaz de resolver, ao longo do tempo, todos os problemas. Mas a interpretação marxista vê no positivismo a ideologia da burguesia da segunda metade do século XIX. As concepções positivistas ‘divinizam’ os fatos e acabam, ao contrário do que pretendem, por converterem-se em metafísicas igualmente dogmáticas. O positivismo é para si mesmo anacrônico. O Estado Positivo que era pra ser definitivo tornou-se, tão somente, mais um momento da ‘Filosofia da História’. A ausência do pensamento dialético faz do positivismo ‘um morador perdido em sua própria casa. (GUIMARÃES, 2006, p.5).

Mesmo que tenha se convertido à doutrina positivista mediante a impressão na sua bandeira da máxima apregoadora da “Ordem e Progresso”, nem por isso houve unanimidade do aceite do Estado pela sociedade e nem o progresso científico alavancou definitivamente o “país do futuro”. Talvez, potencializada pela característica positiva refratária ao debate, a radical herança de dissociação entre Estado e nação tenha se aprofundado ainda mais, contrariando a concepção do Estado definitivo, que não conseguiu ser alcançado pela adoção da “metafísica do empirismo” de Auguste Comte:

[...] a concepção prospectiva consegue explicar bem esse nosso ‘produto nacional’: o positivismo eclético; que nos deixou de herança esta mania de esperar, de saudade do futuro, de ordem e progresso, de ‘ame-o ou deixe-o’, de lei de Gérson... De escutar na geração da minha avó: “aqui em casa não se desmente ninguém”. Este ‘otimismo positivista’ brasileiro de que amanhã tudo vai melhorar é surpreendente. (GUIMARÃES, 2006, p.5)

A recepção da sociedade sobre o fenômeno da não aceitação plena do Estado tem seguido o caminho tradicional da sua culpabilização, transformando-o no malévolo leviatã hobbesiano. Contudo, a transcender os ódios seculares ao Estado opressor, está a questão ética terminantemente negligenciada. Porventura, como nefasto efeito da precariedade dos debates mormente focados na subjetividade da conduta moral, é refutada a discussão ética sobre os princípios inculcados no seio da Sociedade Civil. Ao recusar o debate ético, o Brasil acompanha a tendência mundial da perda ética, porém perdendo duplamente, pois além de sofrer coadjuvantemente o fim da ética vinculante, nem chegou a experimentar a extenuação do seu próprio sistema, por não tê-lo concebido. A filosofia não foi capaz de oferecer um sucedâneo depois do desmantelamento da ética política clássica teleológica, em virtude do problema da não validação que será visto mais adiante. Como resultado do vazio ético proporcionado pelo esgotamento das últimas tentativas de instauração de uma ética universal em Kant e Hegel tem-se que:

Com a negação do Absoluto, brotaram racionalidades separadas de uma razão superior unificadora: difundiu-se o relativismo, e nesse contexto se desenvolvem tanto o pluralismo ético quanto o ceticismo com relação à possibilidade da existência de uma ética de caráter uni­versalizante. (CUNHA, 2007, p.2).

Configura-se assim uma das razões possíveis para as confusões estabelecidas nos estudos sobre a política brasileira, cujas conseqüências são sentidas na forma como as análises misturam conceitualmente ética, moral, corrupção, política e outras mazelas de domínio público. A distorção conceitual e a escassez de contextualização histórica determinam o emendar de uma crise política na outra, num círculo vicioso em que as causas já poderiam ter sido diagnosticadas, não fosse a miopia sistêmica. Sob o ponto de vista do ataque usual às causas das crises políticas brasileiras, como resultantes da prevaricação dos seus atores, ou o Brasil é recordista mundial de políticos corruptos per capita, ou as estruturas legitimadoras das condutas imorais estão sendo ignoradas. Partindo-se do pressuposto de que não há provas estatísticas de que a população brasileira seja proporcionalmente mais desonesta do que as dos outros países, é justificada a hipótese postulante da causalidade ética das crises crônicas, ao invés da percepção de senso comum que a identifica na desonestidade de políticos e burocratas.


Apesar de que “[...] a ética, embora pertença ao mundo dos valores e dos hábitos, pode ser verificada e ser colhida de modo não subjetivo.” (ROMANO, 2007, p.5), a hipótese aqui desenvolvida pretende ir além da visibilidade do fenômeno ético social, e propõe o reconhecimento sobre a parte ocultada dentro do sistema ético sob a forma de certas nuances sutis entronizadas por conjugações históricas na forma de princípios éticos subsumidos. Tal pressuposto enseja a questão: onde jazem tais princípios? Tanto a hipótese como a pergunta suscitadora somente têm sentido na era pós-Freud, porque se apropriam do conceito de inconsciente coletivo, que é um recurso tomado ao ferramental das ciências da mente.

Justifica-se usar um conceito emprestado à psicanálise pela necessidade de trabalhar ao nível das crenças, um subterfúgio para dar conta do não explicitado, não explicado e não admitido. Como explicar a persistência de um príncipe subjacente ao sistema presidencialista e uma nobreza hereditária legitimada no seio do Estado democrático? Resistente a revoluções, reformas constitucionais e pressões externas, o Brasil traz ao presente a ambiguidade da sua dialética de contraditoriamente reformar e manter, modernizar só o suficiente para “inglês ver”. Tal processo foi cunhado como “modernização incompleta”: “Se modernização é um processo de transição de valores e práticas arcaicas para valores e práticas modernas, então é um processo que permanece incompleto e está em perigo atualmente no Brasil”. (BRESSER-PEREIRA, 1995, p.5)

À filosofia cabe reassumir o seu objeto surripiado pelas ciências humanas, para que transcenda os particularismos próprios das especificidades das disciplinas, fragmentadoras e excludentes da ética à subjetividade moral, à luta de classes, ou à distorções estruturais. Contemporaneamente diante da inviabilidade do retorno ao finalismo virtuoso grego e à ontologia teológica medieval, procura-se superar a renúncia aos universais que absolutizou a não validação ética. Diante do vácuo resultante do relativismo alastrante gerador da aporia ética, e em face do fenômeno do esgotamento dos paradigmas modernos, é possível promover a ruptura das rupturas?

Ora, talvez não haja uma ‘consciência pós-moderna’ por não poder corresponder ainda uma ‘realidade pós-moderna’; apesar do que foi dito acima. A pós-modernidade recusa o confronto com os problemas da modernidade e declara que sua atitude é de ruptura. Mas, nada mais moderno do que querer ser ‘ruptura’. E não é o caso de transgressão de princípios, mas, da ausência (recusa) deles. O ‘sujeito’ agoniza. E numa terra sem lei, nesse ‘vácuo civilizatório’, pode surgir a barbárie. A ‘desconstrução’ pós-moderna opera a troca de uma ‘transcendência’ por uma ‘ontologia’ em que o fundamento é abismo (abgrund). Numa palavra, a desconstrução ‘nos dá asas para depois nos tirar o céu’. (GUIMARÃES, 2006, p.2)

A volta à baila das questões caras a Hegel prova que há buscas insistentes para evitar a barbárie iminente em face da perda, sem sucedâneo, dos objetos da ética política clássica. A dicotomização temática deste capítulo, ao oscilar entre o momento global da instância ética e a particularização do caso brasileiro, tem o objetivo de propor intersecções entre a crise brasileira e a situação de acabamento filosófico mundial, a fim de enfatizar a ética imanente ao exercício do poder político, soterrada sob o peso da não validação científica. As dificuldades interpostas ante as tentativas de recomposição de uma ética universalizante são formidáveis e provém da “tecnificação” operada pela ciência, pois “se a racionalidade não valorativa da ciência é o paradigma da racionalidade filosófica, então a demanda de uma ética universalmente vinculante não poderá ser satisfeita”. (BECCHI, 2002, p.5). A interface entre os dois problemas pode fornecer explicações sobre a miopia que o pensamento brasileiro apresenta em relação ao sistema ético.

3º Capitulo: "Tensionamentos Filosóficos sobre Distinções entre Ética e Moral na Política Brasileira."
Autor; Isaias Malta da Cunha
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.

Bibliografia

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