O cenário inicial deste trabalho foi determinar abordagem da questão da crise política no Brasil sem cair no ódio das paixões e na reprovação das condutas dos agentes públicos. A maneira de fazê-lo também açodou Carlos Haag:
Como analisar a ética da política sem se perder no moralismo, ou como analisar a política sem cair no nojo? “Todo político é ladrão”, é a frase mais ouvida na nossa não tão sereníssima república e o “nojo” pela política parece ter se transformado em virtude, sem falar nos que, como nota o psicanalista Jurandir Freire Costa, preconizam que “num país em que a lei foi posta em descrédito, qualquer promessa de lei, por mais draconiana que seja, pode comportar um poder de sedução irresistível, trazendo a ilusão do ‘eu era feliz e não sabia’”.
Para Freire Costa, o pecado capital da questão ética na política é fruto da própria modernidade, com sua “ideologia do bem-estar, que se opõe, quase ponto por ponto, à cultura humanista, democrática e pluralista”. Acima de tudo, ela é antipolítica. O modo de vida burguês, nota, sempre definiu o culto do privado como superior ao compromisso público. O político era desprezado por não produzir riqueza: políticos eram os que queriam ter dinheiro sem trabalhar e viviam no terreno da mentira, da falta de valores éticos. Esses estariam trancados no mundo privado, berço dos sentimentos honrados, da honestidade. “Mas a atividade política, menosprezada por razões que os agentes consideravam moralmente elevadas, não atingia o núcleo da idéia do sujeito moral.
Mesmo a hipocrisia tinha compromissos com a decência”, escreve Freire. O apoliticismo do ethos atual é de outra lavra, já que não se cultivam mais virtudes públicas ou privadas. “Na ideologia do bem-estar, o que conta não é a virtude, mas o sucesso. Não se pede mais que se pense em qual é a melhor escolha para ele e para outro, pede-se que calcule qual a melhor tática para ser bem-sucedido.” O psicanalista lembra que, em sociedades subdesenvolvidas como a nossa, a apatia política, normalmente exigida nos sistemas capitalistas, se acentua. “Na estabilidade, o apoliticismo da sociedade é compensado pela adesão à ordem existente e pela crença na autoridade dominante. Nas crises, estes pilares desmoronam e o homem comum, habituado a delegar à classe dirigente o poder e a iniciativa de decidir, perde a confiança na Justiça, na política e nas instituições.” Reduzido ao “mínimo-eu”, nas palavras de Christopher Lasch, é o indivíduo que pensa apenas no seu bem-estar, gerando a chamada “razão cínica”. (HAAG, 2006, p.1)
Tal foi o desafio lançado e o arregaçar de mangas para fazer frente ao trabalho de superação da densa cortina de moralidade que obstaculiza a visão do maquinário ético.
Acrescida às dificuldades normais do enfrentamento teórico de assunto tão infiltrado por ideologias, há a carência de conhecimentos de base no campo da filosofia pura, compartilhada por uma parte dos integrantes do curso de “Filosofia e Ética política”, não oriundos de graduação em filosofia. Tais dificuldades se substancializam em alguns eixos principais:
1 - manipulação de conceitos - a tendência natural do texto político é discursividade amparada em metáforas, abstraída das necessárias justificações filosoficamente exigíveis. Em outras palavras, o texto convencional deriva inapelavelmente para a “doxa”, na tentativa de proclamá-la como verdade absoluta;
2 - dificuldade de acesso às obras originais - um exemplo é Hegel, cuja obra é hieroglífica sem a concorrência das facilitações dos comentadores, assim como outros autores são igualmente inacessíveis sem a recorrência às pré-digestações, que criam por sua parte um novo problema; o risco das deformações introduzidas no pensamento original do autor pelo comentador. Porém, sob todos os riscos, foi o caminho possível de trilhar frente à deficiência do cabedal teórico necessário para manipular os conceitos dos autores expostos nas suas obras originais;
3 – a ocorrência de vários “APUDS” a Hegel ao longo do texto, ao invés da escolha direta de uma das traduções da obra em português, aparentemente pode ser vista como negligência deixar de citar a obra original do autor principal, mas a obra da autora escolhida se reveste de características tão sui generis, que merece um detalhamento. Tendo em vista as dificuldades de entendimento contidas nas atuais traduções disponíveis no mercado editorial, Hegel que por si só apresenta consideráveis percalços à compreensão, se forem adicionadas as dificuldades lingüísticas impostas pelas traduções existentes, tende a superar os recursos heurísticos dos neófitos filosóficos. Perante as dificuldades expostas, felizmente descobri na Internet um trabalho memorável feito pela educadora chilena Carla Cordua que apresenta uma versão em catelhano dos “Principios da Filosofia do Direito”. Trata-se de uma obra autônoma publicada não como uma mera tradução, sob o título “Explicación Sucinta de La Filosofía Del Derecho de Hegel”. Assim, a sua escolha tornou imperioso o uso de “APUDS” na maioria das citações a Hegel:
O propósito deste livro é ajudar o leitor de fala espanhola no estudo dos Princípios da Filosofia do direito de Hegel. Trata-se em primeiro lugar, de tornar mais acessível o texto desta obra, que é difícil também para quem domina o alemão, sem pretender substituí-lo. Contém paráfrases da versão de 1821, que é, ao mesmo tempo, uma seleção de seus principais assuntos. Inserimos breves explicações da terminologia usada pelo filósofo e alguma orientação sobre os problemas que se discutem e indicações sobre a conexão entre os principais assuntos expostos. Este livro está destinado a ser usado em estreita relação com o texto de Hegel, seja no original, seja em uma das suas versões em castelhano. (CORDUA, 1992, PRÓLOGO)
4 – frente à exigüidade do tempo de curso e à exigibilidade de escrever um trabalho final sobre filosofia, a escolha natural recaiu sobre uma questão de filosofia prática, onde o ferramental filosófico pode ser usado para estabelecer distinções na nebulosidade existente entre ética e moral perdurantes na crítica política.
A inspiração da questão inicial se deu sob a assertiva do prof. Paviani, que numa das aulas iniciais proferiu: “O Brasil permanecerá mergulhado em crises morais, enquanto não mergulhar numa crise ética.”
Para a consecução do empreendimento, alguns aprioris foram estabelecidos:
- a ética compreendida como um fenômeno mais amplo do que o finalismo para o bem, uma vez que seja vista em sua imanência social, complementando a hipótese aristotélica do ser humano compreendido em sua dimensão de animal naturalmente social;
– para o enfrentamento da questão da existência de uma ética além do bem e do mal, o texto se socorre de um viés neutro optando por situá-la ao nível de sistema imanente, ou seja, como valor intrínseco ao agir social;
- a escolha de Hegel se deu em função da sua recepção tradicionalmente rotuladora dos epitáfios “absolutista”, “totalitário” corroboradores da idéia de um “Estado Forte”. Ora, os dados sociais do Estado brasileiro mostram a continuidade do fosso entre pobres e ricos e as discrepâncias históricas de acesso aos avanços modernos por parte das maiorias raciais não brancas/ricas. O continuísmo de um forte estado ético e a percepção unânime do Estado moralmente fraco sugerem um Estado dominado pelas elites. Mas isto não chega a ser a explicação inteira, já que é fato permeador em 500 anos de história, portanto as causas devem ser buscadas em algo mais profundo do que o natural impulso perpetuador das elites. Como Hegel pensa as totalidades, e o Brasil se revela como uma totalidade coesa de transmissão do poder dentro da continuidade histórica, o sistema hegeliano se presta para fornecer as bases das distinções entre moral e ética e do fornecimento do arcabouço explicativo da mediação não democrática entre sociedade civil e estado, preconizada por Hegel e tão engenhosamente implantada no Brasil;
- a escolha da dialética: O texto apresenta ambigüidade no tocante ao uso da dialética, ora denominando-a como insidiosa, ora a legitimando, ressalvando a necessidade do movimento de retorno, suposto desencadeador de mudanças éticas. A opção pela base teórica do mecanismo dialético hegeliano é fundamento por contemplar os conceitos de movimento histórico e a ubíqua coexistência entre conservadorismo e modernização do estado. O mecanismo dialético brasileiro tem na contradição do seu impulso conservador e reformador a razão da chegada à contemporaneidade de um estado formalmente moderno, mas efetivamente padecedor de males centenários, tais como o escravagismo, a exploração do trabalho infantil e a petrificação dos extratos sociais. O clamor recorrente por reformas no Estado, é a tentativa de superar a dialética da conservação que reproduz sistematicamente um Estado arcaico, imiscuído no Estado efetivado, aparentemente democrático e de direito. Assim, a ambigüidade do texto oscila entre a constatação do funcionamento do mecanismo ímpio de perpetuação dialética e o utopismo do desejo de que o movimento reformador em direção aos princípios éticos possa produzir a instabilidade necessária para superar o impulso conservador da ética colonialista.
Para a consecução do estabelecimento de tensionamentos filosóficos sobre a situação política brasileira, houve o deslocamento do foco da visibilidade moral cotidiana para os traços da ética subsumida, vislumbrada na continuidade histórica. O texto começa se debruçando sobre planos gerais, depois se mune de contextualizações históricas, e finalmente aborda a especificidade do caso brasileiro.
Síntese dos Capítulos.
1- Introdução.
2 – Do naturalismo social à conveniência política.
Para ilustrar a separação entre política e moral é lançado mão de Maquiavel, mas a seguir é defendida a hipótese da inseparabilidade entre política e ética, esta vista como fenômeno da sociedade sob o viés do impulso gregário do animal social de Aristóteles.
3 – O pensamento brasileiro e a aporia ética.
A dificuldade do pensamento brasileiro pensar o seu próprio Estado advém, além do próprio esgotamento filosófico em lidar com uma ética vinculante, do vazio de não ter criado um sistema próprio. O pretexto da abordagem filosófica é a focalização do problema do positivismo comteano, tão prosperante no Brasil, cuja máxima está estampada na bandeira. Muito do que se conhece como genuinamente brasileiro, é o resultado do positivismo arraigado que explica em grande parte a aversão ao debate.
4 – A síntese dos dois príncipes.
Um misto de príncipe maquiaveliano unido ao soberano hegeliano é a metáfora usada para simbolizar os anseios persistentes no imaginário popular de que as urnas unjam o “salvador da pátria”.
5 – Heranças coloniais.
O lançar mão da história brasileira busca contextualizar a genealogia de princípios, que segundo as hipóteses aqui argumentadas, são vigentes até hoje. A atribuição a fatores históricos as causas do problema de mediação entre Estado e Sociedade, tem sido a tônica do pensamento mais sociológico, porém o debate deve se estender a outras dimensões, porque se for a história pela história, todos os países da América tiveram histórias semelhantes, mas há heterogeneidade na efetivação do Estado em cada um deles.
6 – Subsunção ética da aristocracia.
O mergulho na história se aprofunda sob a hipótese de haver no presente uma espécie de aristocracia travestida de classes políticas e extratos sociais, mas desfrutadora dos mesmos privilégios herdados das antigas “criaturas do rei”.
7 – A formação da sociedade civil brasileira.
Sob a hipótese da imposição do Estado implantado pronto numa terra de ninguém e sem povo, surge a questão sobre a motivação da tradicional desconfiança que cerca a figura do estado. Arrazoamentos históricos, em que é evocado o estado de natureza de Hobbes, são feitos para justificar o nascimento do Estado não como idéia da sociedade civil, mas da Sociedade surgida decorrência da criação do estado.
8 – O Estado.
Eis o núcleo deste texto e o motivo de todas as preocupações. Constituindo o ápice da argumentação, é no Estado que repousam todas as expectativas e é de onde emanam todos os receios. Continuando com algumas perspectivas históricas que remetem a um Estado ilegítimo englobando uma Sociedade Civil incipiente formada por criminosos em conflito interminável contra as instituições. O escopo deste capítulo busca inquirir as causas da insaciável sede de poder político, focado em abastecer as burras públicas com espólios extorquidos legalmente da sociedade civil.
9 – Os mecanismos de controle social.
A novidade na maquinaria dialética do Brasil se estabelece quando da institucionalização dos mecanismos de controle social criados na constituição de 1988. O texto os elege para orquestrar o utopismo da reforma do estado, que de espoliador se converte em prestador de serviços.
Contrapondo a tradição positivista de aversão ao debate, a concorrência dos mecanismos de fiscalização e controle, requerem debates e mais debates. Chamam os agentes públicos à prestação de contas e exigem recuos e reprocedimentos das suas ações. Com isto se instaura um clima de provisoriedade insustentável para aqueles que acham que o calor das discussões representa o caos, consubstancializada na máxima de senso comum de cunho positivista: “Nunca a situação esteve tão pior do que agora”.
10 – Considerações finais.
Reenfatização da hipótese vinculante entre política e ética e da continuidade histórica de certos princípios éticos. Confrontações entre as naturezas do Estado eticamente forte e do moralmente fraco e a justificação para a escolha da mediação teórica hegeliana. Enquanto o idealismo de Hegel propugna o impulso consciente do estado para o bem, a efetivação do estado brasileiro se dá pelo impulso inercial de perpetuação do esquema de apropriação do poder político pela aristocracia transfigurada.
Fatalmente a conclusão envereda pela constatação de que uma faceta do Brasil pode ser lida como um estado hegeliano do “mal”, por ser império totalitário em termos de imobilismo das suas diferenças sociais.
Apesar da extratificação social em castas, dos poderes superlativizados do presidente, e da impunidade estrutural ser legitimadas pela camada de direito abstrato, não é a legislação infraconstitucional a referendadora destes institutos, mas uma vontade que se contrapôs às oportunidades de mudança.
Na tentativa de minimizar o fatalismo da reprodução do modelo, fruto da dialética insidiosa, o texto tenta descortinar no seu final uma janela de luz para os momentos históricos que o Brasil atravessa. Da aparente desordem por conta dos sucessivos escândalos políticos, talvez contrariamente à percepção geral de que nunca tudo esteve tão ruim, a negação por parte da sociedade civil de hábitos tradicionais de apropriação do público pelo privado, seja a luz no fim do túnel.
Isaias Malta da Cunha
Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Ética e filosofia Política
Universidade de Caxias do Sul
Campus Universitário da Região dos Vinhedos
Curso de Especialização em Ética e Filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Köche
Bento Gonçalves, agosto de 2007.Bibliografia
Ilustração: How Write a Code of Ethics for Business
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