A capacidade para linguagem demandou um desenvolvimento cerebral complexo, a fim de fornecer as bases neurológicas, para este tipo de comportamento. Na concepção piagetiana do desenvolvimento cognitivo podemos destacar o advento da linguagem como resultado de várias construções e reconstruções desencadeadas desde o período sensório-motor até o surgimento da função simbólica, enquanto do ponto de vista filogenético, a linguagem se insere como uma das adaptações ao meio que possibilitaram a sobrevivência e evolução do ser humano.
Segundo Piaget[1], a vida precede o conhecimento, mas este, retendo os traços essenciais da organização vital, ultrapassa-a prolongando-a, a fim de conquistar um meio mais vasto do que o das trocas fisiológicas imediatas.
O sistema nervoso é um instrumento orgânico e cognitivo da conquista funcional do meio e, embora os esquemas conceituais estejam mais ou menos intimamente ligados a uma linguagem, esta não intervém em nada nos esquemas de comportamentos anteriores à função semiótica ou simbólica e menos ainda nos ciclos orgânicos.
Segundo a Teoria Piagetiana, o desenvolvimento cognitivo não é linear, cumulativo ou aditivo, envolvendo uma série de patamares. Cada novo patamar começa por uma reconstrução de estruturas já adquiridas no nível precedente, reelaborando-as para poder integrar-se às novas construções, que as enriquecerão e prolongarão. A construção de novos patamares depende de uma interação contínua entre o sujeito e o meio
Essas reconstruções sucessivas de uma estrutura em um novo patamar com alargamentos e inovações, implicam a exclusão de todo começo absoluto, assim sendo, as estruturas sensório-motoras são reconstruções de estruturas herdadas como conhecimento inato ou instintivo e servem como ponto de partida para as construções seguintes.
As condições necessárias e suficientes para o desenvolvimento cognitivo supõem sempre uma componente biológica, quer a título de ponto de partida, quer a título de funcionamento necessário e contínuo, fora do qual nenhuma estruturação é possível.
O surgimento de organismos capazes de desenvolver uma linguagem simbólica demandou intrincados processos de adaptação vital, entre as muitas alterações morfológicas que caracterizaram o surgimento do ser humano a partir dos mamíferos.
Supõe-se que a postura bípede surgiu nos hominídeos da África, quando este continente era fresco e seco, há uns quatro milhões de anos. Todavia, a expansão do cérebro humano não começou até o surgimento da idade do gelo, há uns dois e meio milhões de anos, quando florestas inteiras desapareceram devido às drásticas quedas de temperatura e às chuvas, reduzindo, drasticamente, a oferta de alimentos e abrigo.
Neste contexto de baixas temperaturas e pouca oferta de alimentos, uma das habilidades, que possibilitou a sobrevivência de nossos ancestrais foi sua capacidade para linguagem, pois a formação de grupos sociais cooperativos ampliou bastante sua eficiência na obtenção de alimentos.
O Homo erectus, considerado nosso ascendente mais direto, era um caçador que abatia presas grandes, o que implicava acentuada cooperação entre os indivíduos e posterior repartição do alimento. Os sítios arqueológicos ligados a esta espécie são grandes, o que sugere um estado social já em nível de bando, incluindo uma regulação social, tipicamente humana, embora rudimentar [2].
Como salientam Maturana e Varela[3], toda vez que há um fenômeno social, independentemente da espécie considerada, deve haver um acoplamento estrutural entre os indivíduos, promovendo uma coordenação recíproca entre eles. A comunicação é o resultado dessa necessidade de acoplamento social e pode assumir várias formas, sendo regulada pelo sistema nervoso de cada espécie. Por exemplo, em insetos sociais, como formigas e cupins, a comunicação envolve, essencialmente, trocas químicas. Em várias espécies de pássaros o canto é essencial para comunicação. Nos babuínos há uma contínua e múltipla interação gestual, postural e tátil entre todos os indivíduos do grupo. Enquanto no ser humano a linguagem é a forma principal de comunicação social.
Ao compararmos o ser humano com outros primatas observa-se que há no cérebro humano uma região crítica para a linguagem, localizada logo acima do ouvido esquerdo, enquanto os chimpanzés, por exemplo, não possuem esta área. Comparativamente, os chimpanzés usam três dúzias diferentes de vocalizações para transmitir cerca de três dúzias de diferentes significados, enquanto o ser humano, usando cerca de três dúzias de vocalizações ou fonemas, combinados na forma de linguagem, pode expressar inúmeros significados [4].
A linguagem humana não apenas amplia consideravelmente nossa capacidade comunicativa, como também, representa um grande incremento à inteligência humana, possibilitando a proposição de situações futuras, além de toda uma interpretação nova do mundo.
Sobre a evolução da linguagem Calvin[4] sustenta que a coordenação neurológica dos movimentos balísticos possibilitou a linguagem, enfatizando que ao se tornarem hábeis em utilizar uma lança, os hominídeos não apenas melhoraram sua possibilidade de sobreviver ao inverno de zonas temperadas, mas podem ter promovido o surgimento das estruturas neurológicas da linguagem.
Os movimentos balísticos estão relacionados com a manufatura e uso de ferramentas e armas, as quais foram fundamentais à sobrevivência dos hominídeos. Alguns exemplos desse tipo de movimentos são o martelar, atirar, rebater uma bola num jogo de tênis ou basebol, entre outros. A hipótese de Calvin sustenta que tais movimentos foram essenciais para o desenvolvimento da linguagem, porque são ações extremamente rápidas, que, uma vez iniciadas, não podem ser modificados, necessitando uma quantidade surpreendente de planejamento, pois não deixam tempo para improvisações ou correções e, por tais motivos, necessitam de redes neurais complexas para sua coordenação.
As relações entre movimentos e linguagem podem ser observáveis em alguns casos. Por exemplo, verificou-se que pacientes que apresentam problemas de linguagem, ou afasia, decorrente de danos no lóbulo lateral esquerdo do cérebro, também são portadores de apraxia que é uma considerável dificuldade em executar seqüências pouco conhecidas de movimentos da mão e braço, indicando que a aprendizagem de novos movimentos depende de regiões cerebrais justapostas às regiões relacionadas com a fala.
No centro da região cerebral especializada em linguagem situa-se uma região especializada em discernir seqüências de sons e produzir seqüências de movimentos faciais e orais. Isto revela que o chamado “córtex da linguagem” apresenta várias funções especializadas e a coordenação de certos movimentos, da audição e da linguagem é realizada por neurônios de regiões cerebrais justapostas, sugerindo um desenvolvimento interligado.
Essa interligação entre movimento e fala é compatível com a teoria piagetiana de que o desenvolvimento da linguagem, assim como da inteligência como um todo, parte de estruturas construídas num estágio sensório-motor, que servem de base para construções e reconstruções mais complexas.
Outro fator relevante da hipótese de Calvin sobre o desenvolvimento do cérebro humano que vem ao encontro da teoria piagetiana é a questão da formação de grupos sociais. Para esse autor, a existência de estruturas cerebrais nas quais estão relacionados movimentos balísticos e fala, sugerem um desenvolvimento integrado do ser humano num ambiente em que precisou caçar em grupo e, portanto, estabelecer vínculos sociais.
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William H. Calvin |
Na perspectiva interacionista, o indivíduo não é um elemento autônomo, pois resulta de interações múltiplas, que dependem da população inteira. Não há, pois, nem indivíduos nem grupos, mas interações coordenadas, supondo aspectos programados com certa liberdade e aspectos programáveis em função da adaptação cognitiva. Assim, ao atribuir o surgimento da lógica e da matemática às coordenações gerais das ações do sujeito, ressaltamos que a eficácia do seu pensamento depende do fato dele não ser independente do meio, mas, antes, viver, atuar e pensar em interação [1].
Como salientam Maturana e Varela, a identidade dos sistemas sociais humanos dependeu da conservação da adaptação dos indivíduos, não só como organismos, no sentido geral, mas também como componentes dos domínios lingüísticos que constituem. A história evolutiva do ser humano está associada às suas condutas lingüísticas e, portanto, sociais, onde cada indivíduo, para se adaptar, deve operar em tais domínios.
Apesar da necessidade de nos tornarmos sociais, não nascemos assim, nem mesmo possuímos uma linguagem inata. Ao contrário, tanto as relações sociais, quanto a linguagem devem ser construídas a partir de comportamentos inatos bastante simples como sugar e a apreender objetos. Porém, a dependência dos bebês humanos, em grande medida, caracteriza o desenvolvimento infantil como um evento social, pois nascemos muito prematuros se comparados às outras espécies de mamíferos.
Desse modo, para nos tornarmos aptos a sobreviver é preciso “herdarmos”, também, um ambiente social, com o qual possamos interagir de forma a desenvolver uma função semiótica que nos capacite a comunicação essencialmente simbólica como é a linguagem.
A maior parte do sistema nervoso humano se forma fora do útero materno, num ambiente com necessárias interações ambientais e sociais, que propiciam adequações específicas a cada contexto, garantindo uma ampla gama de adaptações ao meio.
A riqueza plástica do sistema nervoso humano não reside em sua produção de representações das coisas do mundo, mas em sua contínua transformação, que permanece congruente com as transformações do meio, como resultado de cada interação que efetua. Desse modo, toda experiência nos modifica, ainda que estas mudanças não sejam visíveis.
Ao analisar o caso das meninas-lobo encontradas na Índia, Maturana e Varela enfatizam que por elas não terem vivido as interações sociais como todas as crianças, a conduta de correr sobre os dois pés, por exemplo, não se desenvolveu completamente nelas, pois quando estavam assustadas, corriam agachadas como os lobos [3]. Esse caso das meninas-lobo indica que até para algo, aparentemente, tão elementar como correr, dependemos do contexto humano que nos cerca. Ou seja, mesmo herdando a potencialidade para o deslocamento bípede, seu desenvolvimento depende da história particular de interações de cada indivíduo.
De acordo com a teoria piagetiana, a aquisição da linguagem, que é um processo bem mais complexo do que o andar bípede, envolve sucessivas fenocópias cognitivas, ou seja, muitas construções, desequilíbrios e reequilibrações, decorrentes de um processo interativo, no qual, as ações do sujeito constituem as raízes.
Piaget enfatiza que as relações entre indivíduos e populações têm isomorfismos parciais com as relações do ser humano e as sociedades. Em ambos os casos, a unidade fundamental é a população ou sociedade, mas cada indivíduo compreende em si próprio um nó inextrincável de interferências sociais e, constitui assim, um microcosmo, que reflete um setor mais ou menos amplo do grupo no seu conjunto.
Ele destaca ainda que as adaptações próprias do pensamento e das funções cognitivas superiores são um caso particular das adaptações do organismo ao meio. O critério é sempre o sucesso, quer signifique sobrevivência ou compreensão. Assim, entre o sucesso de uma teoria compreensiva e um organismo adaptado existem mecanismos comuns, porque a sobrevivência da melhor teoria se liga às escolhas ditadas pela experiência, que mantêm certas relações com as seleções impostas pelo meio. Todavia, as formas de pensamento retêm seu próprio passado e adquirem uma continuidade, uma mobilidade reversível e estabilidade dinâmica inacessível à organização biológica, constituindo um meio infinitamente mais alargado e estável [1].
As interpretações piagetianas dos processos adaptativos desencadeiam uma definição de evolução, a partir da qual, Piaget buscou compreender o que a moveria, pois ao responder esta questão chegaria, também, às causas do desenvolvimento cognitivo. O critério é sempre o sucesso da sobrevivência ou adapatação e, para Piaget, o “motor da evolução”, é o que ele chama de “reforço interno”. É esse reforço interno que impulsiona o ser humano em direção às suas conquistas e adaptação ao meio, num processo contínuo [nota 1]. Esta pode ser uma das formas de descrever as diferenças entre as espécies atuais e as extintas segundo a visão piagetiana, pois o ambiente terrestre mudou muito desde o surgimento da vida e somente sobreviveram as espécies que obtiveram um reforço interno adequado às novas necessidades impostas pelo meio.
Fazendo uma tradução para o desenvolvimento cognitivo (sujeito) e os processos educativos (meio) pode-se concluir que se os estudantes não forem capazes de realizar este reforço interno, não serão capazes de compreender as novas informações. Para realizar o reforço interno eles necessitam um certo nível de assimilação às estruturas prévias, pois sem haver qualquer grau de assimilação não haverá o reforço interno de acomodação para uma assimilação efetiva, de forma que as novas informações não serão, efetivamente, aprendidas.
Nota:
[1]- Este texto publicado em 2008 está sendo editado em 2016, em função de esclarecimentos da Dra. Zélia Ramozzi-Chiarottino, comunicação pessoal.
Referências:
[1] PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978.
[2] NEVES, Walter A. Assim caminhou a humanidade. Ciência Hoje. São Paulo, v. 8, n. 47, p. 46-54, 1988.
[3] MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995.
[4] CALVIN, William H. The emergence of Intelligence. Scientific American. New York, v. 271, n. 4 p. 79-85, Oct., 1994.
ilustração O Globo
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