30 junho, 2008

É POSSÍVEL ENCONTRAR BASES GENÉTICAS PARA A TEORIA DA FENOCÓPIA DE PIAGET?

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Ao pesquisar a inteligência humana Piaget concluiu que o exercício e a própria construção dos esquemas supunham uma interação contínua entre o sujeito e os objetos. Se considerarmos a inteligência como uma forma de “comportamento” da espécie humana verificamos que há nele um acoplamento harmônico entre organismo e meio, já que o conteúdo ou detalhes das reações aos estímulos significativos ou atos consumatórios dependem, em cada momento, do meio. A harmonia desse acoplamento levou Piaget a questionar seu surgimento, pois não aceitava que o mesmo tivesse se desenvolvido, por acaso, sem informações provenientes do meio. A solução teórica, que apresentou a esta questão, envolveu a elaboração de sua metáfora sobre fenocópia, para qual busquei uma base genética.


Em todos os animais pode-se constatar a presença de uma inteligência inata ou comportamento instintivo, fundamental à adaptação dos indivíduos e à sobrevivência da espécie, portanto, ele deve estar codificado na molécula de DNA. Logo, o instinto é uma estrutura fenotípica, que, como todas as outras, resultou de uma interação entre o meio e a informação hereditária.

No que se refere às relações entre organismo e meio, observam-se dois tipos gerais de interação com efeitos visíveis no nível dos cromossomos. Há espécies com grande plasticidade fenotípica e outras com grande plasticidade genotípica. No primeiro caso, um mesmo genótipo, dependendo da interação com o meio produziria diferentes fenótipos, no segundo, uma espécie apresentaria diferentes arranjos no genótipo para se adaptar aos diferentes ambientes. De acordo com a teoria Piagetiana, teríamos, em relação ao genoma, a predominância de homeostase, no primeiro caso, e de homeorrese, no segundo.

Algumas espécies do gênero Drosophila, apresentam uma grande plasticidade genotípica, evidenciada pela presença de inversões cromossômicas, facilmente identificáveis nos seus cromossomos politênicos. As inversões cromossômicas permitem que blocos de genes segreguem juntos, impedindo a recombinação durante a formação dos gametas, gerando, em algumas espécies, um grande polimorfismo cromossômico (abaixo inversões do cromossomo 5 da D.nappe).

Inversões do cromossomo 5 de D. nappae

Se partirmos do pressuposto que os genes não funcionam como entidades isoladas e independentes, cujo efeito depende do contexto genético em que estão inseridos, as inversões cromossômicas, ao manterem juntos grupos de genes, garantem a manutenção de associações vantajosas.

O caráter adaptativo das inversões cromossômicas observadas em espécies do gênero Drosophila é sugerido pelas associações estabelecidas entre determinadas inversões com a escolha de sítios de alimentação e procriação, fatores climáticos, locais de coleta, entre outros[1]. Vários estudos com diferentes espécies têm documentado o papel adaptativo do polimorfismo cromossômico, bem como sua regulação por fatores seletivos não aleatórios.

Sua relação com a adaptação das espécies tornou razoável supor que seu surgimento possa refletir uma resposta adequada às pressões do meio.
A espécie Drosophila willistoni, por exemplo, apresenta um rico polimorfismo cromossômico, que atraiu a atenção de vários geneticistas, os quais a estudaram numa perspectiva da genética evolutiva e ecológica. Esta espécie é encontrada desde a Flórida até o sul do Brasil, a longitude de sua distribuição vai do Atlântico ao Pacífico, sendo a espécie mais abundante nas florestas da América do Sul. Isto significa que consegue sobreviver numa variedade muito grande de ambientes. Sua capacidade de formar inversões parece ser determinante para seu sucesso adaptativo.

Houve um período em que os estudos genéticos descreveram várias inversões em diferentes espécies, sempre evidenciando sua relação com a adaptação da espécie às diversas condições ambientais. Quando essa constatação se tornou de domínio público no meio científico, tais estudos perderam um pouco de seu interesse, todavia retornaram à cena quando a investigação sobre elementos de transposição da família P assumiu uma abordagem evolutiva.

Aos elementos de transposição são atribuídos efeitos como a alteração da estrutura e função do genoma porque promovem mutações e rearranjos, afetam a regulação gênica e codificam produtos que interagem com os processos celulares. Ao se moverem dentro do DNA hospedeiro, eles possibilitam o surgimento de inversões cromossômicas, representando uma importante fonte de variabilidade genética e conferindo ao genoma uma maior plasticidade[2]. Por esse motivo, alguns autores consideram os elementos de transposição como ferramentas naturais de engenharia genética.

Em pesquisa realizada no Departamento de Genética da UFRGS, sob a coordenação da Drª. Vera L.S. Valente, foram comparados dois estoques da D.willistoni mantidos em laboratório. Verificou-se que no estoque mantido por um período muito curto de tempo nas condições estáveis do laboratório os elementos P estavam presentes na ativa dos cromossomos, enquanto que no estoque mantido há mais de 30 anos nesta condição estável, os elementos P foram encontrados na região inativa do cromossomo. O cruzamento entre indivíduos destas duas populações produziu híbridos com baixa viabilidade. As pesquisadoras sugeriram, como um dos agentes causais dessa baixa viabilidade, a inserção diferenciada dos elementos P, uma vez que diferentes estudos apoiavam suas conclusões.

O quê teria causado a mobilidade dos elementos de transposição nas populações mantidas em laboratório? Como o ciclo de vida destas moscas é cerca de 15 dias, um período de 30 anos possibilitou a existência de muitas gerações num ambiente com alimentação abundante onde temperatura e umidades foram mantidas constantes, portanto onde o surgimento de novas inversões cromossômicas não representava mais uma vantagem adaptativa. Assim, a mudança dos elementos de transposição para regiões inativas do DNA poderia ser explicada como um resultado de uma relação estável entre organismo e meio, sem ocorrência de pressões seletivas.

Estas pesquisas sugerem que há mecanismos moleculares capazes de reequilibrar ou reestruturar o genoma a partir de uma estrutura precedente.

Nos mamíferos, ao contrário do que ocorre com as espécies do gênero Drosophila, as inversões cromossômicas são, geralmente, deletérias, pois afetam a formação de gametas, propiciando o surgimento de anomalias nos descendentes. Todavia, há a ocorrência de elementos de transposição em seus genomas, os quais, como se sabe, podem alterar de diferentes formas a regulação gênica. Além disso, os mamíferos dispõem de outros mecanismos reguladores como o controle hormonal, capaz de alterar o funcionamento de genes, modificando o fenótipo em função das diferentes condições ambientais.

O trabalho de Taddei, Matic e Radman [3] evidenciou mecanismos moleculares a partir de sistemas de reparo do DNA, os quais podem induzir processos de especiação em bactérias como resposta às pressões seletivas em situações de estresse ambiental. Estes pesquisadores sugerem que tais mecanismos podem estar presentes em organismos eucariotos, indicando que a evolução a partir da pressão ambiental é possível e as interpretações de Lamarck não são totalmente desprovidas de sentido.

Diferentes mecanismos como a movimentação de elementos de transposição, o controle hormonal e a alteração no funcionamento de sistemas de reparo do DNA são compatíveis com a proposição piagetiana de que, em parte, a evolução pode resultar da adaptação fenotípica dos organismos ao meio.

Não se pode atribuir todo processo evolutivo a um único tipo de evento, as pesquisas em biologia indicam que a vida busca múltiplas soluções para seus problemas. Todavia, as diferentes soluções apresentam uma lógica comum, que é a busca da adaptação, para que a vida mantenha-se, como sistema autopoiético.

Nesse sentido, a teoria piagetiana também preconiza uma mesma lógica não só para as fenocópias biológicas ou cognitivas, como também para a abstração reflexionante. Essa lógica apresenta os seguintes mecanismos: primeiro, uma equilibração por reconstrução endógena; segundo, uma superação mediante reorganização com novas combinações, cujos elementos são extraídos do sistema anterior.

Piaget[4] enfatizava que, do mais simples ao mais complexo destes processos, o papel do acaso não é desprezível, porém, modesto, pois não é possível pensar que a maçã caída junto a Newton, pudesse ser a fonte de suas teorias sobre gravitação, uma vez que foi graças a todo um trabalho anterior e à sua capacidade de assimilação que um evento casual desencadeou todo um processo cognitivo.

Ele argumentava ainda que todo seu ensaio sobre adaptação vital e a psicologia da inteligência podia ser resumido a esta observação sobre a maçã de Newton, já que, em cada uma das suas abordagens, tratou sempre de encontrar as condições prévias, não fortuitas, e, inclusive, necessárias, das novidades aparentemente aleatórias.

Para Piaget, em todos os níveis, os esquemas de ação do sujeito diferenciam-se, incessantemente, por acomodação contínua aos dados novos. Assim, a adaptação resulta do equilíbrio entre assimilação e acomodação. Desse modo, a condição prévia de uma adaptação nova é uma adaptação precedente, mais sua capacidade de reestruturação, num processo de fenocópias sucessivas.

Em resposta à questão que intitula este texto, é possível encontrar nas mudanças produzidas no DNA pela movimentação dos elementos transponíveis em resposta às pressões ambientais algumas bases genéticas que, em certa medida, apóiam a teoria da fenocópia de Piaget. Contudo, devemos lembrar que o caráter dessas alterações do DNA é aleatório e não direcionado, podendo redundar em mudanças prejudiciais ou benéficas. Mas tudo indica que se ocorrerem diferentes alterações numa mesma população, vários indivíduos podem se tornar mais adaptados que os demais, sendo selecionados favoravelmente pelo ambiente. Ou seja, a capacidade de mudar é uma grande vantagem evolutiva num ambiente instável, portanto é presumível que as mudanças genéticas resultem da interação produzindo resultados casuais que serão selecionados pelo meio.

Segundo a teoria da fenocópia de Piaget[4], a própria adaptação dos organismos ao meio poderia gerar uma pressão “ambiental” no genoma desencadeando mudanças que favorecessem a manutenção de um fenótipo mais eficiente, nesse caso, elas seriam mais direcionadas e menos casuais. Mas, pensar num direcionamento das mutações não é a melhor opção a partir das evidências experimentais de que dispomos.

Por outro lado, pensar que as mudanças genéticas surgem de forma totalmente independente dos processos de adaptação dos organismos ao meio é uma opção pior. Nesse sentido, a principal contribuição do estudo das teorias piagetianas é nos levar ao rompimento do paradigma de independência entre organismo e meio, compreendendo a evolução biológica como um resultado da interação e estendendo essa concepção a todos os processos de evolução cognitiva.

Em outras palavras, sem interação não ocorre o processo educativo e não são construídos conhecimentos.

Referências e Notas:
[1] - Ampla revisão sobre o tema pode ser encontrada em:
VALENTE-GAIESKY, Vera L. S. Dinâmica das comunidades de Drosophila e aspectos particulares da ecologia e variabilidade cromossômica da espécie willistoni Sturtevan, Porto Alegre : UFRGS, 1984. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Biociências. Curso de Pós- Graduação em Gnética.
(Valente ; Araújo, 1985 e 1986).

VALENTE, Vera L. S. e ARAÚJO, Aldo M. Chromosomal polymorphism, climatic factors, and variation in populations size of Drosophila willistoni in Southern Brazil. Heredity n. 57, p. 149-159, 1986.

VALENTE, Vera L. S. ; ARAÚJO, Aldo M. Observations on the chromosomal polymorphism of natural populations of Drosophila willistoni and its association with the choice of feeding and breeding sites. Rev. Bras. Genetica. São Bernardo do Campo, v. 8, n. 2, p. 271-284, 1985.

VALENTE, Vera L. S. ; MORALES, Nena B. New inversions and qualitative description of inversion heterozygotes in natural populations of Drosophila willistoni inhabiting two different regions in the State of Rio Grande do Sul, Brazil. Rev. Bras. Genetica, São Benardo do Campo, v. 8, n. 1, p. 167-173, 1985.

[2]- Estudos sobre elementos de transposição podem ser encontrados em:
HICKEY, D. A. Evolutionary dynamics of transposable elements in prokaryotes and eukaryotes. Genetica Kluwer, n. 86, p. 269-274, 1992.

PURUGGANAN, Michael D. Transposable Elements as introns: Evolutionary Connections. Trends in Ecology & Evolution. Elsevier, v. 8, n. 7, p. 239-243, July, 1993.

REGNER, Luciana P. et al. Genomic Distribution of P Elements in Drosphila willistoni and a Search for Their Relationship With Chromosomal inversions. Journal of Heredity. Cory, v. 87, p. 191-198, 1996.

[3]- TADDEI, François ; MATIC, Ivan ; RADMAN, Miroslav. Origem das espécies: o que há de novo? Ciência Hoje São Paulo, v. 21, n. 126, p. 48-57, 1997.

[4]- PIAGET, Jean. [1976] Comportamento, motriz da evolução Porto/Portugal : RÉS Ed., 1976.



Ilustração por Clube Paineiras

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