12 maio, 2008

Genes, interação, adaptação vital e evolução!

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Toda a evolução é o resultado de um processo de adaptação e envolve a interação dos organismos com o meio ao longo do tempo. Nesse contexto, a ontogenia dos seres vivos dotados de reprodução sexual e a filogenia das diferentes linhagens reprodutivas se entrelaçam numa gigantesca e variada rede histórica.
Shiva


O desenvolvimento do genótipo, do ponto de vista filogenético, reflete essa história de interações, que resulta numa comunicação entre genoma e meio para formação do fenótipo, que é semelhante ao comportamento de diferentes instrumentos de uma orquestra, estabelecendo diálogos complementares para construção de uma peça musical. Exemplos desse diálogo são citados por Gilbert [1], quando descreve casos de controle ambiental sobre a forma e as funções das larvas de diferentes espécies de invertebrados.

Um caso interessante descrito por Gilbert é o das ostras da baía de Chesapeak, em Baltimore (EUA). Nessa baía, as ostras haviam sido coletadas por décadas, quando, em 1980, começaram a desaparecer. O embriologista William Brooks da Universidade de Johns Hopkins descobriu que a causa do desaparecimento das ostras era a retirada das conchas do fundo da baía, pois era necessário um substrato duro para que as larvas sofressem metamorfose, assim, ao recolocarem as conchas no fundo da baía, as ostras voltaram a produzir descendência [2].

Este caso demonstrou que são exigidas determinadas condições ambientais para o desenvolvimento larval se completar e haver a metamorfose para o estado adulto. A metamorfose é um evento biológico complexo no qual atuam vários genes, coordenados por hormônios, mas se o ambiente não oferecer algumas condições alguns desses genes permanecerão inativos.

Podemos comparar a ação dos hormônios na ativação dos genes estruturais com a atuação de um Maestro numa orquestra, coordenando os diferentes instrumentos, o ritmo da execução e a intensidade das diferentes vozes. Por outro lado, a atividade hormonal é uma das respostas do organismo aos desequilíbrios decorrentes da interação com o meio, assim como o Maestro escolhe o repertório sob certa influência do contexto social em que está inserido. Porém, a influência não significa determinação e os resultados de uma interação dependerão das possibilidades dos elementos envolvidos.

Em síntese, os genes estruturais são os responsáveis pela produção de proteínas que definirão a forma e o funcionamento corporal; a ativação dos genes estruturais é controlada pela quantidade e as combinações de diferentes hormônios e a produção de alguns desses hormônios depende da presença de certas condições ambientais.

A metamorfose dos invertebrados é um bom exemplo de uma forma de homeorrese ou equilíbrio dinâmico, já que ela se dá por uma modificação do organismo a partir de estruturas anteriores. Nesse processo, os hormônios induzem certas células a morrer, enquanto outras são ‘instruídas’ a formar novos órgãos, através da ativação de genes específicos.



De certa forma, podemos dizer que todo o desenvolvimento biológico ocorre através de desequilíbrios e conseqüentes reequilibrações, em conseqüência da interação entre organismo e meio.

Gilbert também relata outros casos interessantes como o das larvas de duas espécies de ouriço do mar (Arbacia punctulata e Lytechinus pictus), que, para completarem sua metamorfose, precisam se fixar no fundo do aquário. Para tanto, o aquário onde se desenvolvem precisa ter uma película de bactérias, as quais produzem uma substância que induz a fixação das larvas de ouriço-do-mar. Nos aquários sem a película de bactérias, as larvas flutuam cerca de dois meses e então deterioram. Neste caso, a presença de uma espécie é necessária para o desenvolvimento normal de outra.

Há também o exemplo do “dólar-da-areia”, Dendraster excentricus, cujos adultos auxiliam a metamorfose de suas larvas secretando uma substância química na areia. Esta substância atrai as larvas e induz sua metamorfose. Dessa forma, ocorrem agrupamentos de indivíduos em certas regiões da praia e especula-se que estes agrupamentos também aumentem a sobrevivência dos novos indivíduos, protegendo-os de um crustáceo predador.

Vários estudos sugerem que a sobrevivência dos invertebrados é sempre melhor se a metamorfose ocorrer em locais protegidos ou próximos aos recursos alimentares. Por exemplo, a maioria das larvas de nudibrânquios (lesmas do mar) só completam sua metamorfose se houver no ambiente algum sinal da presença de fontes alimentícias dos adultos, as quais variam de espécie para espécie.

Nos insetos, o tamanho da larva desempenha o papel principal na indução da metamorfose. Nas abelhas, o tamanho da célula aonde se desenvolve a larva vai definir se ela será rainha ou operária. As células maiores permitem um maior desenvolvimento das larvas, que se tornarão rainhas, já nas células menores, as larvas preenchem mais “cedo” o espaço e a metamorfose é desencadeada, produzindo apenas uma operária, uma vez que a larva não terá reservas de nutriente e energia suficientes para desenvolver as estruturas reprodutivas das rainhas.

Metamorfose em inseto


A metamorfose de insetos pode também ser influenciada por substâncias vegetais. Gilbert relata o caso do pesquisador checo Karel Sláma, que foi trabalhar em Harvard com seu material de pesquisa: a traça de papel Pyrrhocoris apterus. Para sua surpresa, as larvas criadas com papel americano não se transformavam em pupa ao final do quinto estágio, pelo contrário, iniciavam um sexto estágio larval, nunca antes observado na natureza ou em laboratório, após o qual morriam sem se tornarem adultos. Por outro lado, quando as larvas eram criadas com papéis europeus, nos mesmos laboratórios americanos, sofriam a metamorfose no tempo normal. Nesse caso, verificou-se que a matéria prima do papel americano era um árvore nativa do norte dos Estados Unidos, que produzia uma substância análoga ao hormônio juvenil de Pyrrhocoris apterus e na presença deste análogo as larvas não sofriam a metamorfose completa característica da passagem para o estado adulto e como o seu organismo não podia suportar um estado prolongadamente jovem, sobrevinha a morte dos indivíduos.

O papel americano, nesse caso, foi péssimo para as larvas, mas ele foi excelente para os pesquisadores, que tiveram a oportunidade de fazer uma descoberta inusitada!

Além deste exemplo, há muitos tipos de relações entre insetos e vegetais, nos quais, o crescimento e o desenvolvimento de larvas são impedidos devido à antecipação da metamorfose para a forma adulta. Nestes casos, os vegetais produzem substâncias que inibem o desenvolvimento normal das larvas porque destroem sua glândula corpora allata, a qual produz o hormônio juvenil. Sem este hormônio as larvas iniciam a metamorfose muito cedo, tornando-se inviáveis ou resultando em adultos estéreis.

Em outros casos, a morfologia da larva depende de substâncias produzidas pela planta, indicando que plantas e animais podem ajustar seus ciclos de vida de várias maneiras. A este processo geral denomina-se “co-evolução”.

Para Gilbert, um dos exemplos mais intrigantes de co-evolução é o da mariposa Nemoria arizonaria. As larvas desta espécie se desenvolvem a partir do início da primavera, alimentando-se das flores jovens do carvalho. Sua metamorfose se completa ao final da primavera. Os adultos cruzam no verão e novos ovos são postos nos troncos do carvalho. As larvas que emergem destes ovos se alimentam das folhas do carvalho, se tornam adultos, cruzam e colocam ovos, que ficam latentes durante o inverno e produzem novas larvas no início da primavera, quando não existem mais adultos da geração anterior.

As larvas da Nemoria arizonaria, que eclodem na primavera são marrom-amareladas, rugosas e aljofradas, parecendo não mais do que um amentilho de carvalho. Dessa forma ficam magnificamente camufladas e protegidas de predadores. As larvas que eclodem no verão desenvolvem formas diferentes e parecem raminhos secos. O controle destas duas morfologias distintas se deve às substâncias concentradas nas folhas do carvalho. Assim, de acordo com a dieta das larvas, os sistemas regulatórios devem modificar seu funcionamento ativando de forma diferente os genes estruturais. Dessa forma, a dieta das larvas da Nemoria arizonaria altera o fenótipo, garantindo a proteção dos indivíduos.

Em relação a esta espécie, também se verificou em laboratório que a forma da primavera podia ser transformada na forma de verão, mas o inverso não acontecia, ou seja, as alterações sofridas na regulação gênica para produção da forma de verão são irreversíveis.

Um caso semelhante pode ser observado em organismos microscópicos como os rotíferos que podem ter sua morfologia alterada em presença de substâncias químicas produzidas por seus predadores, tornando mais difícil a sua captura. Também aqui, o ambiente fornece sinais que alteram a ação dos sistemas reguladores e conseqüentemente a dos genes estruturais.

Em síntese, pela ação dos sistemas regulatórios, o funcionamento dos genes estruturais pode ser alterado de várias maneiras, eles podem ser ativados ou inativados ou, ainda, ampliar ou reduzir a produção de certas proteínas, em conseqüência da identificação de sinais que indicam as condições ambientais. Há, dessa forma, um constante diálogo entre organismo e genoma e entre organismo e meio.

Convém lembrarmos que a informação genética de uma proteína determina a seqüência de aminoácidos da sua cadeia primária e a sua forma final resultará das interações químicas entre estes aminoácidos. Assim, toda modificação de proteínas é um processo delicado, uma vez que elas dependem muito da sua forma para funcionar e a substituição de um único aminoácido na sua estrutura poderia a inativá-las. Por isso a vida encontrou uma opção mais segura ao alterar o fenótipo pela simples modificação da quantidade e combinação de certas proteínas, sem haver a necessidade de alterar elas em si. Do mesmo modo que a Arquitetura inventa possibilidades de construção combinando de diferentes maneiras e quantidades os materiais disponíveis, para criar formas diversificadas a partir dos mesmos tipos de tijolos, por exemplo. Nesse sentido, os sistemas de regulação gênica agem como arquitetos biológicos que exploram de forma diversificada os materiais disponibilizados pelos genes reguladores.

Os casos em que a regulação gênica é feita por hormônios produzidos nas glândulas endócrinas do organismo exemplificam que ele está envolvido nestes processos como um todo. Assim, ao ser afetado integralmente, o organismo pode produzir respostas em nível molecular, as quais modificarão todo o conjunto.

A complexidade da regulação biológica se manifesta de forma grandiosa durante o desenvolvimento embrionário já que os seres multicelulares se desenvolvem a partir de uma única célula-ovo que passa por muitos ciclos de divisão, produzindo milhões de células embrionárias. Durante esses processos, diferentes hormônios fornecem diferentes informações para tecidos indiferenciados e após uma fantástica rota de auto-organização, as células embrionárias comporão um organismo completo com milhões de células diferentes.

Assim, folhas, galhos, raízes, troncos, flores e frutos ou ossos, músculos, cérebro, pele e demais órgãos, por exemplo, se integrarão num conjunto harmonioso. Este processo fundamental dá origem uma ampla gama de projetos corporais como: árvores, ervas, trepadeiras, orquídeas, homens, camundongos, moscas e vermes.

Em resumo, o desenvolvimento envolve uma série de eventos interligados, cuja origem não pode ser atribuída exclusivamente ao acaso. Estudos sobre a ordem linear dos genes nos cromossomos evidenciaram que o próprio conjunto da informação genética representa um meio em si mesmo, pois a posição dos genes em determinado cromossomo não é casual [3] e eles interagem entre si e com o organismo no seu conjunto, produzindo fenótipos ou resultados diferenciados.

No caso do Reino Animal, a investigação de alguns dos sistemas moleculares que moldam a forma dos organismos revelou que há muita semelhança entre os sistemas presentes em vermes, insetos e mamíferos, de forma que alguns genes de humanos poderiam ser utilizados para guiar o desenvolvimento de embriões das moscas da fruta, por exemplo. Isto pode soar como argumento para um filme de ficção científica, mas demonstra que há mecanismos moleculares praticamente idênticos para definir a forma corporal de todos os animais [3].

Estes sistemas de regulação gênica envolvem complexos de genes homeóticos extremamente conservados, pois suas mutações são geralmente fatais. A sua função básica é informar às células que elas fazem parte de determinada região do corpo, a fim de guiar sua diferenciação. Em experimentos controlados, determinadas mutações em genes homeóticos produziram moscas com patas no lugar das antenas.

Sabe-se que a informação sobre a diferenciação de certos tipos de células é dada por uma concentração ou gradiente de determinadas substâncias químicas, produzidas por genes homeóticos ativos no embrião. A reação a estas substâncias químicas é dessemelhante em diferentes contextos, assim um mesmo gene homeótico, informa certas células de que fazem parte do tórax, tanto na fase de larva quanto na fase de pupa, mas as estruturas morfológicas, que se desenvolverão durante estas duas fases, serão diferentes.

A pergunta que surge, então, é: como eles podem estar ativos em certas partes do embrião e não em outras, produzindo estes gradientes químicos diferenciados?

Sabe-se que o óvulo já armazena, de forma regionalizada, determinadas substâncias no seu citoplasma. À medida que as divisões do zigoto [4] vão ocorrendo, tais substâncias vão sendo segregadas em quantidades diferentes nas células embrionárias e, consequentemente, elas vão ativando de forma diferenciada os genes homeóticos.

De modo que os diferentes contextos dos citoplasmas das células embrionárias se configuram num meio interno, que desencadeará a atividade de certos genes, os quais permanecerão inativos em outras células, cujos citoplasmas não contenham as mesmas substâncias. Estes fenômenos fazem parte do chamado desenvolvimento epigenético, pois dependem do ambiente químico fornecido pelo óvulo e não da informação genética em si.

O citoplasma do óvulo possui muitas informações necessárias ao desencadeamento do processo de desenvolvimento embrionário. Em genética se estudam alguns casos extremos denominados de herança materna, nos quais, o fenótipo vai depender mais do citoplasma do óvulo do que da informação dos genes nucleares.

Houve um tempo em que a cultura humana atribuiu às mulheres um papel secundário na reprodução, tendo sido, inclusive, consideradas apenas uma espécie de “incubadora” da “semente” depositada pelos homens. Atualmente, sabemos que há uma herança especificamente materna. Certas estruturas celulares como as mitocôndrias, por exemplo, são herdadas exclusivamente das nossas mães.

Interessa ressaltar que, nos organismos multicelulares, o meio interno influencia o desenvolvimento e funcionamento das diferentes células que os compõem, pois, embora todas as células do organismo possuam os mesmos genes, organizados em conjuntos iguais de cromossomos, a sua atividade varia muito de célula para célula e tecido para tecido. Além disso, o desencadeamento de atividade gênica, em muitos casos está evidentemente integrado a um determinado ambiente externo ao organismo, de forma a garantir uma maior sobrevivência dos indivíduos, sugerindo de forma contundente que a evolução do genoma, não apenas garante, como também resulta da adaptação dos organismos ao meio.

Por tudo que já se sabe a respeito da organização do material genético, não é mais possível tomar os genes como entidades discretas e independentes, como se o cromossomo fosse apenas um colar de contas, pois há um intrincado conjunto de interações que dependem do meio interno ou externo para a produção de um resultado final, chamado organismo.

Tais complexidades de interações internas e externas só são possíveis porque há uma organização biológica para coordená-las através de sistemas regulatórios, os quais por sua vez objetivam a adaptação aos diversificados ambientes naturais e, portanto, dependem da interação entre organismo e meio. Por tais motivos, Piaget interpretava a vida como interação e auto-regulação, salientando que o desenvolvimento da inteligência seguia os mesmos princípios básicos, pois dependia dessa base biológica para ocorrer.

A reunião dos conhecimentos sobre as bases biológicas da inteligência com a teoria piagetiana possibilita uma compreensão mais profunda do ato de educar, assim como o conhecimento sobre as características físicas dos diferentes materiais permite aos engenheiros um melhor desenvolvimento de seus projetos construtivos.

A construção do conhecimento é uma forma especial de adaptação vital dos seres humanos e resulta na evolução da inteligência como um todo. Nesse contexto cabe aos educadores a criação de ambientes que propiciem a interação dos sujeitos e causem desequilíbrios que levem a busca de reequilibrações através da construção de novos conhecimentos, num processo contínuo. Tais ambientes não se limitam ao espaço físico ou experiências concretas e também envolvem o diálogo e a proposição de questões desafiadoras que instiguem a interação constante entre sujeito e objeto.

Referâncias e Notas:
[1] - GILBERT, Scott F. Biologia do Desenvolvimento, São Paulo : Sociedade Brasileira de Genética, 1994.
GILBERT, Scott F. Developmental Biology, Massachusetts : Sinauer Associates, Inc, 1994.
[2] – Essa retirada de conchas estava sendo realizada por uma fábrica de cimento.
[3] - Mais informações podem ser obtidas em: McGINNIS, William e KUZIORA, Michael. The Molecular Architects of Body Design. Scientific American. New York, v. 270, n. 2, p. 36-42, 1994.
[4] - Zigoto é a célula-ovo fecundada.



Imagem de Shiva: Budha Museum

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