Toda mudança estrutural de um ser vivo está limitada à manutenção da sua viabilidade. Essas mudanças estruturais são contínuas e variadas, em decorrência da necessidade do constante funcionamento ou pulsar da vida.

O objetivo da homeostase é preservar os sistemas biológicos, mantendo um estado de equilíbrio constante, no qual as variações ocorrem dentro de determinados limites, na sua relação com o ambiente; nas relações internas entre os vários sistemas que os compõem; e entre os componentes destes.
Observa-se que a atividade gênica, necessária aos processos homeostáticos, responde às informações provenientes da interação entre organismo e meio. Assim, a regulação da atividade dos genes não se restringe apenas aos processos de desenvolvimento dos organismos, já que grande parte da informação genética é usada para a sua manutenção, ou seja, para a sua homeostase.
Por exemplo, em mamíferos, o desenvolvimento das glândulas mamárias pode ser dividido em quatro estágios: embrionário, adolescência, gravidez e lactação. Os produtos da glândula mamária - caseína e outras proteínas lácteas - são produzidas somente no último estágio. Ou seja, através desse exemplo descobriu-se que certos genes estruturais só são ativados em determinadas circunstâncias, permanecendo “calados” sempre que algum contexto específico não estiver ocorrendo.
O desenvolvimento das glândulas mamárias dos camundongos machos é idêntico ao das fêmeas nos primeiros 13 a 15 dias de gestação. Porém, quando os níveis de testosterona aumentam, a maioria das células que formarão a glândula adulta degenera nos machos. Há uma síndrome em camundongos e humanos, chamada de síndrome da insensibilidade androgênica, cujos portadores não possuem receptores para a testosterona nos cromossomos e, embora produzam taxas normais desse hormônio, não são capazes de responder a ele, desenvolvendo mamas [1].
A manutenção dos sistemas biológicos, não significa imutabilidade, mas sim adaptação vital. Logicamente, a adaptação a um meio que apresenta mudanças cíclicas envolve flutuações, ou seja, uma organização temporal dos sistemas biológicos ou ritmos da vida.
Marques e colaboradores[3] enfatizam que todos os processos vitais, que se oferecem aos nossos olhos, do acasalamento dos animais à floração das plantas, exibem uma regularidade cíclica. O ritmo interno de cada organismo se ajusta ao ritmo externo da natureza, por meio de verdadeiros relógios biológicos, estudados pela cronobiologia.
Formas de expressão rítmica são exibidas por todas as espécies vivas, desde organismos unicelulares até o homem, sugerindo que as flutuações regulares são uma característica fundamental da matéria viva. Estas flutuações estão ajustadas às oscilações ambientais e são indispensáveis à adaptação ao meio e, portanto, à sobrevivência.
Em resumo, os organismos estão organizados no espaço-tempo. Ao longo do processo evolutivo eles se adaptaram, através de modificações anatômicas e bioquímicas, não só à dimensão espacial, mas também à dimensão temporal do ambiente. Sempre que uma sucessão de transformações da matéria viva, em qualquer nível de sua organização, apresenta recorrência periódica, caracteriza-se um ritmo biológico.
Os seres vivos se preparam para a mudança de estações. Ao receber sinais da entrada do inverno, como a diminuição da insolação, alguns animais recorrem à hibernação, enquanto outros migram. Plantas e animais se valem de inúmeras estratégias para se adaptar às estações adversas. Hormônios corticoesteróides adrenais, necessários aos estados de vigília, começam a ser secretados ainda durante o sono. Ajustes desse tipo, que precedem a ocorrência de mudanças no ambiente externo ou no meio interno, demonstram que os organismos possuem estruturas biológicas marcadoras de tempo, desenvolvidas como resultado de um processo interativo com uma história.
A sincronia entre os ritmos internos e externos é indispensável a uma convivência harmoniosa dos organismos com o meio, uma vez que o próprio ambiente comporta vários fatores cíclicos, de diversas ordens. Existem, por exemplo, espécies de hábitos diurnos que dividem seu abrigo com espécies de hábitos noturnos. O relógio biológico, neste caso, serve para ampliar a capacidade ambiental de convivência interespecífica.
O desenvolvimento de relógios biológicos exemplifica a complexa rede histórica de interações dos organismos entre si e com o ambiente. Para sobreviverem, os seres vivos tornaram-se capazes, entre outras coisas, de antecipar mudanças ambientais cíclicas, alterando o seu metabolismo, ou mesmo sua morfologia. Por exemplo, é muito comum as pessoas reclamarem de uma excessiva queda de cabelos durante o outono, mas, se observarmos outros mamíferos, veremos que este fenômeno é normal em várias espécies que vivem em regiões com invernos frios. Gatos e cães, entre outros, trocam o pelagem de verão pela de inverno durante o outono. No caso humano, a queda de cabelos não é um evento fundamental à nossa sobrevivência no inverno, mas pode continuar apresentando resíduos deste tipo de ciclo.
Como enfatizam Maturana e Varela, desde que uma unidade não entre numa interação destrutiva com seu meio, se observa, necessariamente, uma compatibilidade ou comensurabilidade entre eles. “Existindo compatibilidade, meio e unidade atuam como fontes mútuas de perturbações e desencadeiam mudanças mútuas de estado num processo contínuo” [2]. Processo este que os autores denominam de acoplamento estrutural.
Em situações de “livre-curso”, onde não recebem informações ambientais sobre dia e noite, como, por exemplo, em uma sala fechada e permanentemente iluminada, animais de hábitos diurnos, incluindo o homem, atrasam o relógio biológico em relação ao tempo solar, passando a apresentar um “dia” com 25 horas. Este fenômeno é chamado arrastamento e, exemplifica como uma característica biológica “interna” necessita das informações ambientais para funcionar devidamente.
Nas mesmas condições, animais de hábitos noturnos tendem a se adiantar e exibem uma periodicidade de 23 horas. No entanto, em contato com o meio, os osciladores internos voltam a se sincronizar pelos ciclos ambientais e os “dias” voltam a ter 24 horas, em ambos os casos.
Como explicam Marques e colaboradores, os diversos ciclos ambientais capazes de regular o período e a fase dos osciladores internos são chamados de Zeitgebers, neologismo alemão que significa “doador de tempo”. Os vários seres vivos respondem de maneira própria ao conjunto de fatores ambientais, sendo diferentemente sensíveis a eles: o que constitui um Zeitgeber para o relógio de uma espécie não afeta necessariamente o de outra.
Cada espécie está sujeita à ação simultânea de vários Zeitgebers, e muitos ritmos, com diferentes periodicidades, convivem em cada organismo. A interação desses vários ritmos constitui o padrão temporal da espécie, que lhes confere uma ordenação temporal dos habitats.
Na ritmicidade humana, o ciclo de iluminação é um importante Zeitgeber, mas fatores cíclicos decorrentes da organização social do trabalho e do lazer, além de costumes culturais, também o são. Estes fenômenos demonstram que, além dos ciclos geofísicos, as influências que os seres vivos exercem uns sobre os outros não podem deixar de ser incluídas entre os fatores ambientais capazes de afetar os ritmos biológicos. Portanto, o meio não é apenas um lugar ou espaço físico, pois apresenta uma dimensão temporal e relacional, às quais os seres vivos necessitam se adaptar.
Em contrapartida, o meio físico também muda em função dos seres vivos. A atmosfera primitiva do planeta se transformou muito com o advento da vida, o mesmo pode ser dito sobre a constituição química da crosta planetária. Como conseqüência destas transformações do planeta, os seres vivos voltaram a ter que mudar.
Embora as transformações sejam sempre mútuas, organismo e meio permanecem operacionalmente independentes e a adaptação pode ser interpretada como a manutenção de sistemas dinâmicos, independentes e compatíveis com seu meio.
O organismo perde sua adaptação quando suas interações com o meio tornam-se destrutivas ocasionando sua desestruturação. “[...]a ontogenia de um indivíduo é a deriva de mudanças estruturais com conservação da organização e adaptação”, ou seja, “ a mudança estrutural ontogênica de um ser vivo no seu meio será sempre uma deriva estrutural congruente entre o ser vivo e o meio. Ao observador, essa deriva parecerá ‘selecionada’ pelo meio ao longo da história de interações do ser vivo, enquanto estiver vivo”[4].
Para Piaget, a adaptação é todo processo desencadeado pela modificação do meio e apresenta dois pólos: assimilação e acomodação. Há apenas assimilação quando um novo elemento é integrado a um sistema sem desorganizar a estrutura, que o integrou.
Contudo, quando ao ser integrado, se este elemento desequilibrar o ciclo de organização ele necessitará de uma acomodação. Esta acomodação se dá através de uma reestruturação da organização a partir do estado precedente, num processo de sucessivos encaixes.
Na realidade, estes dois pólos são inseparáveis e sempre haverá certo nível de acomodação quando houver assimilação e de assimilação quando houver acomodação. O que pode ocorrer é um desequilíbrio entre assimilação e acomodação.
Voltando à questão das perturbações mútuas entre organismo e meio, que também ocorrem nas interações entre sujeito e objeto, podemos interpretar o desenvolvimento do conhecimento como um resultado da retomada do estado de equilíbrio ou de reequilibração, como define Piaget.
Para Lino de Macedo[5], interagir implica um agir em direção a, de “determinado modo” como um aspecto positivo complementar ao aspecto negativo de não agir de “outro modo” - “ou isto ou aquilo” (como diz um poema de Cecília Meireles). Ou seja, aplicar um esquema de ação é, ao mesmo tempo, não aplicação de outros.
Macedo salienta ainda que, a correspondência entre as afirmações e as negações é, para Piaget, um aspecto fundamental nos processos de equilibração majorante e a necessidade de equilibração supõe que, ao interagir com os objetos, os esquemas de que o sujeito dispõe não sejam suficientes, de forma que são criadas lacunas, as quais perturbam o sujeito. Nesse sentido, os desequilíbrios representam um papel de desencadeamento de uma superação e a fonte real do progresso do conhecimento deve ser buscada na reequilibração.
Portanto, a reequilibração não significa um retorno ao estado anterior, já que o esquema mostrou-se insuficiente, mas, sim, um melhoramento da forma precedente.
A teoria piagetiana preconiza que os desequilíbrios ou contradições que perturbam o sujeito não resultam de um fator interno, inerente a ele, nem de um fator externo, contingencial, como supõe todo o desenrolar histórico. As contradições ou desequilíbrios residem, principalmente, na não correspondência exata entre as afirmações e as negações, que são muito freqüentes no início do desenvolvimento.
Nos primeiros anos de vida, os sujeitos não conseguem diferenciar muito claramente entre o que é e o que não é e isto se constitui numa lacuna. De forma que, o progresso do conhecimento consiste na busca incessante da eliminação das contradições.
Segundo Piaget, a assimilação de um objeto a um esquema de ação ou de comportamento é apenas o prolongamento direto e natural das assimilações biológicas. A adaptação cognitiva própria do pensamento é um caso particular das adaptações do organismo ao meio. Nesse sentido, o sucesso da adaptação biológica é a sobrevivência enquanto que o da adaptação cognitiva é a compreensão.
Assim como não ocorre assimilação biológica sem uma estrutura capaz de realizá-la, o desequilíbrio cognitivo indica que o sujeito não possui uma estrutura adequada para assimilar o objeto perturbador. A retomada do equilíbrio envolverá regulações e construções de novos esquemas. Em todos os níveis estes esquemas diferenciam-se incessantemente por acomodação contínua aos dados novos, resultando na adaptação e no reequilíbrio entre assimilação e acomodação.
Para Piaget[6], as formas de pensamento retêm seu próprio passado e adquirem uma estabilidade dinâmica que ultrapassa em muito a organização biológica, constituindo um meio infinitamente mais alargado e estável. Havendo, portanto, entre o sucesso de uma teoria e um organismo adaptado, mecanismos comuns, porque a sobrevivência da melhor teoria se liga às escolhas ditadas pela experiência, mantendo semelhanças com as seleções impostas pelo meio.
Dessa forma, a compreensão adequada sobre os mecanismos históricos de transformação estrutural, decorrentes da evolução orgânica contribui para o entendimento do fenômeno da cognição.
As pesquisas biológicas atestam o caráter adaptado dos diferentes organismos ao seu meio. Por outro lado, os registros fósseis de que dispomos indicam que muitas linhagens perderam seu caráter adaptado e suas interações com o meio tornaram-se destrutivas levando-as à extinção. Nesse caso, a conservação da adaptação terminou porque tais linhagens produziram indivíduos incapazes de se reproduzir no meio em que precisam viver.
Não há a sobrevivência do mais capaz, há apenas a sobrevivência do capaz.
A deriva natural ocorre, seguindo os cursos que são possíveis a cada instante, muitas vezes sem grandes variações nos organismos e outras com múltiplas ramificações.
Organismos e meio variam de forma independente. Do encontro dessas duas variações surgirão a estabilização ou a diversificação fenotípica.
A constância, a variação ou a extinção das linhagens dependerão tanto das condições históricas em que as linhagens ocorrerem quanto das propriedades intrínsecas dos indivíduos que as constituem. Há apenas conservação da adaptação e da autopoiese, num processo em que organismo e meio permanecem em contínuo acoplamento estrutural.
Um dos aspectos mais interessantes da evolução é a maneira como a coerência interna de um grupo de seres vivos compensa uma determinada perturbação. Nesse sentido, a evolução pode ser interpretada como um produto natural das interações entre organismo e meio.
Ao longo da história adaptativa dos seres vivos algumas características se mostraram essenciais em quaisquer circunstâncias e, por isso, foram conservadas, como o caso dos genes homeóticos e a seqüência de eventos do desenvolvimento embriológico. Por outro lado, certas estruturas devem ter plasticidade adaptativa, ou seja, devem mudar. Assim, as estruturas das proteínas variaram muito durante a história evolutiva dos seres vivos, enquanto a organização dos genes e a síntese protéica permaneceram inalteradas.
Da mesma forma, o desenvolvimento cognitivo, apresenta um aspecto conservado, onde a ordem e a sucessão dos estágios de desenvolvimento são regulares, mas a velocidade do desenvolvimento pode variar de um a outro indivíduo ou de um meio social a outro.
Segundo Piaget[8], uma criança pode avançar mais rapidamente do que outra, mas a ordem de sucessão dos estágios por que passam não muda.
Ao lembrar que os organismos multicelulares, como nós, constituímos um sistema autopoiético com múltiplas interdependências, é preciso ter em conta que no momento em que uma dimensão do sistema é modificada o organismo como um todo passa por mudanças correlativas em muitas dimensões ao mesmo tempo.
Como decorrência deste fato, a característica básica dos estágios iniciais do desenvolvimento é a conservação e não a mudança. Do contrário, seria inviável a manutenção da identidade e mesmo da própria estrutura do organismo, pois, nestas fases iniciais, a adaptação ao meio é mais crítica.
As interações sempre geram perturbações mútuas. O sistema genético precisa ser constantemente “curado” das agressões ambientais pelos sistemas de reparo do DNA. O equilíbrio biológico tem que ser continuamente reajustado, por processos de correção ou moderação dos erros. Por outro lado, os sistemas conceituais podem permanecer estáveis por anos.
Segundo Piaget, a assimilação conceitual é muito mais conservante porque, embora a regulação operatória seja elaborada a partir de explorações sucessivas e tateantes, depois de estabelecida, consegue evitar erros. Com o desenvolvimento da inteligência nos tornamos capazes de pensar, ou seja, de fazer previsões antes de agir. Esse ‘pensar antes de agir’ se torna possível pela extensão do meio do conhecimento, que é o conjunto de objetos exteriores a que a inteligência se refere, e pela crescente dissociação de formas e conteúdos do sistema conceitual, que nos concedem uma capacidade muito ampla de pré-correção.
Esta capacidade de pré-correção faz com que do ponto de vista da adaptação, a inteligência atinja formas de equilíbrio entre assimilação e acomodação, muito mais avançadas do que as orgânicas. Neste sentido, a vida precede o conhecimento e este retém os traços essenciais da organização vital, mas ultrapassa-a, prolongando-a para conquistar um meio mais vasto do que as simples trocas fisiológicas imediatas permitem.
A partir de uma base de comportamentos inatos de sucção e apreensão, através da interação entre sujeito e objeto, desde o nascimento até a idade adulta, o ser humano vai desenvolvendo a inteligência. Este desenvolvimento não é simplesmente linear, cumulativo ou aditivo, pois envolve a construção de patamares, os quais são uma reconstrução, num nível mais elevado, de estruturas novas a partir de outras já adquiridas num nível precedente.
Segundo Piaget, essas reconstruções de uma estrutura de um patamar para outro, com alargamentos e inovações, implicam a exclusão de todo começo absoluto. Dessa forma, as estruturas sensório-motoras só representam um nível de partida em relação às seguintes, constituindo, por outro lado, a reconstrução de estruturas anteriores inscritas de forma inata nas coordenações nervosas.
Referências:
[1] GILBERT, Scott F. Developmental Biology, Massachusetts : Sinauer Associates, Inc, 1994.
[2] MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995, (p. 133).
[3] MARQUES, Mirian D. et al.. Ritmos da vida. Ciência Hoje. São Paulo, v.10, n. 58, p. 42-49, 1989.
[4]. MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995, (p. 137).
[5] MACEDO, Lino de. Os processos da equilibração majorante. Ciência e Cultura. São Paulo, v. 31, n. 10, p.1125-1128, out., 1979. (1979)
[6] PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978b.
[8] PIAGET, Jean. Intellectual Evolution from Adolescence to Adulthood Human Development, Basel, v.15, p. 1-12, 1972.
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