Se questionarmos o acaso como único responsável pelo surgimento da vida temos que considerar a ideia de contingência. Neste caso, o surgimento dos seres humanos pode ser atribuído mais a uma necessidade do que a um acaso na evolução dos seres vivos.
Para Albert Jacquard[1], não importa se a natureza criou o homem por acaso ou necessidade, pois o homem tornou-se apto a construir, como ser livre e capaz de premeditação, a sua própria humanidade.
A idéia de sermos necessários ao planeta se contrapõe a uma visão equivocada, que muitas pessoas têm de ecologia. De uma maneira geral, é muito grande a falta de entendimento das pessoas sobre o que é efetivamente o meio ambiente. Infelizmente, este desconhecimento cria mitos e idéias erradas, muito difundidas e sempre repetidas (JORDAN, 1992)[2]. Neste contexto, as questões ambientais são tratadas de forma ingênua e o ser humano relegado ao papel de um completo “vilão”, destruidor de árvores e animais.
Tais idéias equivocadas fazem parte do nosso cotidiano escolar e podem gerar posicionamentos antagônicos, como foi expressado em declarações que obtive de alunos do Ensino Fundamental, durante um debate sobre as relações entre o ser humano e a natureza [3]:
JAIR (13;0) disse que: “O meio ambiente não depende do homem para existir!”
Ao ouvir isto, SILVANA (10;0), reagiu dizendo: “Claro que depende! Quem é que vai cuidar dele?”
Para um garoto de 13 anos somos totalmente dispensáveis, enquanto uma garota de 10 anos manifesta a idéia de que somos os “Reis da Criação”. Todavia, não podemos sair do papel de “Rei” para o de “Vilão”, pois continuamos, desse modo, preservando a indesejável idéia de dicotomia entre o ser humano e a natureza.
A partir da idéia de inevitabilidade dos sistemas autopoiéticos de Maturana e Varela [4], é plausível pensar que podemos ser mais do que apenas um acidente na história da vida na Terra: uma espécie de contingência da própria vida. Ou seja, recolocando a idéia destes autores para o caso humano, poder-se-ia dizer que, quando, na história da vida na Terra, apareceram as condições suficientes, os seres humanos surgiram de forma inevitável.
Um fato que apóia esta idéia foi a existência de outras tentativas ou ensaios de seres humanos, capazes de desenvolver cultura como o caso do Homem de Neanderthal, que não faz parte da linhagem evolutiva, que deu origem ao atual Homo sapiens sapiens.
Erik Trinkaus [5], da Universidade do México, um dos maiores especialistas em neandertais, afirma que eles eram muito especializados morfologicamente para darem origem a qualquer forma de Homo sapiens sapiens.
O esqueleto dos neandertais era extremamente reforçado, capaz de sustentar atividades cotidianas muito pesadas. Seu aparelho mastigador, sobretudo os dentes anteriores, certamente daria conta de triturar alimentos bastante rígidos. Os seios maxilares desenvolvidos permitiam o aquecimento de grandes quantidades de ar inaladas por narinas também muito grandes. Um arco superciliar reforçado protegia a parte frontal do cérebro. Todavia, perfumado e barbeado, ele poderia passar incógnito numa metrópole como São Paulo.
Embora extintos, a partir de escavações em Saint Cesaire, na França, uma camada datada de trinta mil anos, revelou que esqueletos de morfologia tipicamente neandertal, apareceram associados a uma indústria lítica também atribuída à nossa espécie. Estes achados apontam para uma possível convivência entre as duas formas, durante algum período, podendo ter ocorrido entre elas, inclusive, certo grau de aculturação (Neves, 1988).
A África teria sido, há cerca de 120 mil anos, o mais provável berço do homem moderno. Sabe-se que, por volta de 50 mil anos atrás, nossa espécie já tinha colonizado uma grande quantidade de ambientes terrestres, chegando mesmo às regiões desérticas, geladas e periféricas como a Austrália, mas os mecanismos que poderiam ter dado origem e selecionado a morfologia do Homo sapiens sapiens permanecem desconhecidos.
A construção da nossa própria humanidade necessita de ações e de tomada de consciência destas ações, que se realizam através dos processos interativos com o meio e o conhecimento sobre nós mesmos faz parte dessa construção, pois a nossa maneira particular de agir sobre o meio e sobre nós mesmos, depende da consciência que temos desses processos.
Ao contrário dos outros seres vivos, podemos, como lembrou Silvana, cuidar do meio ambiente, mas para isto necessitamos nos transformar, entre outras coisas em seres sociais, pois o “cuidado” com o ambiente, o qual pode nos possibilitar uma vida mais digna, envolve o conceito de sustentabilidade para o qual necessitamos “adquirir um novo comportamento”, ou seja, como nos diria Norbert Elias [6] nos civilizarmos para isso. Este aprendizado ou processo civilizador se realiza no contexto do grupo social e a Escola pode se constituir num espaço privilegiado para isso.
Autores como Maturana e Varela denominam as configurações comportamentais adquiridas na dinâmica comunicativa de um meio social e mantidas estáveis através de gerações, como condutas culturais, pois se referem a todo um conjunto de interações comunicativas, que permitem uma certa invariância do grupo, indo além da história particular dos indivíduos.
Não é apenas no ser humano que desenvolve tais condutas. Em diferentes espécies, a formação do grupo social amplia a capacidade de sobrevivência da espécie, pois possibilita que indivíduos distintos cumpram papéis distintos, permitindo que os membros do grupo relacionem-se em atividades que não lhes seriam possíveis como indivíduos isolados.
Todos os mamíferos necessitam de um certo período de convivência e apresentam uma certa porcentagem de condutas culturais. Nas espécies capazes de formar grupos sociais por toda a vida a porcentagem de condutas culturais é bem mais elevada, que nas espécies de vida tipicamente isolada.
Dessa forma, a plasticidade de condutas será sempre maior nas espécies sociais e a potencialidade para um aprendizado maior pode ser sempre interpretada como adaptativamente vantajosa.
Rolf Behncke[7] salienta que dispomos de um formidável poder de transformação do próprio mundo, graças à nossa colossal faculdade que é a reflexão consciente. Para tanto, é fundamental mergulhar no entendimento biológico do ser humano em sua convivência, como parte essencial do processo que conforma a própria origem de nossa consciência.
As reflexões sobre o ser humano não comportam abordagens reducionistas. A teoria piagetiana sobre as bases biológicas do conhecimento está fundamentada em interpretações, as quais, embora se apóiem em evidências experimentais [8], vão além delas continuamente.
O objetivo de Piaget ao fazer sua incursão pela Biologia do Conhecimento em 1967 foi estabelecer a comunicação entre biólogos, psicólogos e epistemologistas por entender que: “Só por um trabalho interdisciplinar se tornará possível a epistemologia científica. Esta cooperação é ainda demasiado rara para responder aos problemas que surgem. Foi com a esperança de a favorecer que tentamos lançar as idéias contidas neste volume.” [9].
A abordagem que eu tenho proposto a partir de minha Tese de Doutoramento é ampliar a discussão sobre as bases biológicas do conhecimento humano, relacionando as hipóteses piagetianas sobre as relações entre a organização biológica básica e o desenvolvimento cognitivo com os “novos fatos” ou evidências do campo biológico, aos quais o desenvolvimento científico das três últimas décadas possibilitou-nos acesso.
O objetivo pretendido com esta abordagem é contribuir com as bases teóricas da Educação, questionando o significado de interação a partir das análises de Piaget sobre as relações organismo/meio e sujeito/objeto e desenvolvendo uma argumentação teórica, a qual interprete a interação do ser humano com seu meio como uma filtragem do mundo.
NOTAS:
[1] - JACQUARD, Albert. A herança da liberdade: da animalidade à humanitude. 1ed. Lisboa : Publlicações Dom Quixote, 1988.
[2]- JORDAN, Ingo. Visão Ecológica. Ethera: Revista de Educação Ambiental. Porto Alegre, Ano V, n. 5, p. 61, 1992.
[3]- CUNHA, Gladis Franck da. Interação e meio: a filtragem do Mundo. Porto Alegre : UFRGS, 1999. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. (Orientadora: Analice Dutra Pillar; Co-orientadora: Vera Lúcia da Silva Valente).
[4] MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995.
[5] – Autor referido por: NEVES, Walter A. Assim caminhou a humanidade. Ciência Hoje São Paulo, v. 8, n. 47, p. 46-54, 1988.
[6] – ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história de costumes. Rio de Janeiro : Zahar, v. 1, 1989.
[7] - BEHNCKE, Rolf. Ao pé da árvore. In : MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano, Campinas : Editorial Psy II, 1995.
[8] - Como salienta GILBERT, Scott F. Biologia do Desenvolvimento, São Paulo : Sociedade Brasileira de Genética, 1994: “A biologia, como qualquer outra ciência, não lida com fatos, mas com evidências”(p.43).
[9] - PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978 (p. 345).
Imagens by Randolph E. Schmid “Is human evolution speeding up?”
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