Mesmo que possamos decifrar toda a informação contida no nosso material genético, nossa vida permanecerá um grande mistério, pois ela é muito mais do que uma informação herdada, ela é o resultado das possibilidades biológicas, que estão em permanente interação com o meio e uma coisa não pode ser simplesmente redutível à outra.
Quando batemos as palmas das mãos produzimos um som, mas não sabemos o som que cada mão produziu, porque o efeito de um processo interativo não é o simples resultado de uma soma dos efeitos de cada elemento tomado separadamente, é mais do que isso. Da mesma forma, a música não pode ser redutível apenas ao instrumento ou ao intérprete, pois da interação entre ambos surge uma terceira entidade: o som, que não está contido nem em um nem no outro, mas em ambos simultaneamente.
O todo, também, nunca se reduz à simples soma do conjunto de componentes considerados isoladamente. Por mais essencial que seja um determinado componente num sistema, ele, sozinho, não define o conjunto.
Maturana e Varela (1995) [1] enfatizam que embora seja muito freqüente ouvir dizer que os genes constituem a informação, que especifica todo o ser vivo, isso é um erro porque se está confundindo o fenômeno da hereditariedade com o mecanismo de réplica de certos componentes celulares de grande estabilidade.
Não herdamos apenas nossos cromossomos. Recebemos da geração paterna uma célula completa inserida num contexto apropriado para seu desenvolvimento. O DNA não contém toda informação necessária para especificar um ser vivo, já que é a rede de interações em sua totalidade, que constitui e especifica as características da célula. “O erro, consiste portanto em confundir a participação essencial com a responsabilidade única” (Maturana e Varela, 1995 p.107).
De fato, herdamos da geração paterna não apenas as moléculas de DNA, mas uma célula completa, a partir da qual iniciamos todos os processos interativos que redundarão na formação do nosso organismo. Além disso, “herdamos” também um mundo já constituído, com o qual interagiremos para constituir nosso próprio Umwelt[2].
Maturana e Varela (1995) trabalham com a idéia de que há uma continuidade entre o social e o humano e suas bases biológicas, assim como Piaget. Para eles, o fenômeno de conhecer não pode ser equiparado à existência de ‘fatos’ ou objetos lá fora, que podemos captar e armazenar na cabeça. A experiência de qualquer coisa ‘lá de fora’ é validada pela estrutura humana que a torna possível.
Há uma circularidade entre ação e experiência, de forma que todo ato de conhecer produz um mundo. Ou seja, toda reflexão produz um mundo, pois se constitui numa ação humana, realizada por alguém em particular, num determinado contexto. Em outras palavras, a cognição se constitui numa “ação efetiva”, que permite a um ser vivo continuar sua existência, em determinado meio, produzindo aí seu mundo.
Segundo a teoria piagetiana, a conquista dos objetos ou conhecimento dos dados ambientes, não é de forma alguma uma cópia do real, uma vez que envolve ações e suas coordenações. Interagir implica, do ponto de vista do sujeito, poder assimilar o objeto a suas estruturas, ou seja, significa que “existe um esquema qualquer por meio do qual um elemento exterior pode ser incorporado a este sujeito” (Macedo, 1979, p. 1125)[3].
Como enfatizam Maturana e Varela, nossa forma particular de sermos humanos e estarmos no fazer humano é a linguagem. E, como demonstra Piaget, a linguagem necessita da função simbólica. Quando nos tornamos simbólicos, nos tornamos capazes de compreender o próprio conhecer.
A produção do mundo é o cerne pulsante do conhecimento, e está associada às raízes mais profundas do nosso ser cognitivo. Estas raízes se estendem até a base biológica e se manifestam em todas as nossas ações e em todo o nosso ser.
O fenômeno do conhecer é um todo integrado, e todos os seus aspectos estão fundados sobre a mesma base. Todo o conhecer depende das estruturas daquele que conhece e, as bases biológicas do conhecer não podem ser entendidas somente pelo exame do sistema nervoso, pois estão enraizados no organismo como um todo (Maturana ; Varela, 1995).
As interações entre sujeito e objeto, partem de atividades espontâneas dos organismos, desencadeadas por estímulos externos. Segundo Piaget, a partir de tais interações, os conhecimentos se orientam em duas direções complementares: a conquista dos objetos ou dados ambientais pelas ações e suas coordenações; e a tomada de consciência das condições internas dessas coordenações.
Para Piaget, o conhecimento envolve processos de ajustes, que propiciam o desenvolvimento de novos esquemas de ação, como reflexo da sua organização.
Qualquer ação é uma forma de assimilar e, em maior ou menor grau, a assimilação implica ajustar a ação às características do objeto. Este ajustamento ou acomodação, como diz Piaget, é, portanto, um processo complementar ao da assimilação. De forma que o sujeito ao incorporar o objeto às suas estruturas faz com que estas se ajustem às características do objeto modificando-as. Sem este ajustamento a assimilação seria impossível (Macedo, 1979).
Segundo Lino de Macedo, as estruturas são conjuntos de esquemas, cujas relações entre os elementos se caracterizam por estabilidade, mobilidade e auto-regulação. Todo esquema é uma coordenação de ação, ou seja, um “saber fazer” por meio do qual o sujeito assimila os objetos às suas estruturas (Macedo, 1979).
As estruturas que compõe os sistemas cognitivos estão submetidas às características essenciais dos sistemas biológicos, os quais são abertos, no sentido de trocas que efetuam com o meio, e, ao mesmo tempo, fechados, pois todos os seus processos se organizam como ciclos.
Os esquemas de ação são formas funcionais de organização vital. A razão se elabora através de uma seqüência de construções operatórias criadoras de novidades e precedidas por uma série ininterrupta de construções pré-operatórias, relativas à coordenação das ações, que remontam, eventualmente, à organização biológica em geral (Piaget, 1978)[4].
Todas as manifestações da vida testemunham a existência de organizações[5] como: ciclos metabólicos, macromoléculas, células, sistemas fisiológicos, processos de diferenciação e multiplicação, entre outros.
A organização vital em forma de ciclos é necessária para a adaptação aos diferentes ciclos do planeta, dia e noite, estações do ano, água e energia. Ou seja, a organização biológica é o reflexo do processo histórico de interações entre organismos e meio ao longo do tempo.
A organização biológica é essencialmente dinâmica e acaba por integrar, em formas permanentes, um fluxo contínuo de objetos e acontecimentos variáveis. De forma que, para Piaget, a organização ou a função de organização pode ser confundida com a própria vida.
Ao falar de seres vivos, estamos pressupondo algo comum entre eles. Qual é então a organização que os define como classe?
A resposta é que os seres vivos se caracterizam, literalmente, por produzirem continuamente a si mesmos. De forma, que a organização que os define pode ser chamada de organização autopoiética.
Para Maturana e Varela, a característica mais marcante de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como distinto do meio circundante mediante sua própria dinâmica, de modo que ambas as coisas são inseparáveis.
Uma imagem marcante para ilustrar esta idéia de sistema autopoiético pode ser vista em uma cena do filme “As aventuras do Barão Munchausen”, do diretor Terry Gilliam, onde o personagem do Barão, vivido pelo ator John Neville, sai do fundo do mar, montado em seu cavalo se puxando pelos próprios cabelos.
Maturana e Varela trabalham com a hipótese, segundo a qual, quando surgiram na história da Terra as condições suficientes, a formação de sistemas autopoiéticos ocorreu de modo inevitável.
Volta-se aqui a questionar a vida como essencialmente obra do acaso e surge a idéia de contingência, que pode contrapor a visão dicotômica entre os seres humanos e a natureza, nos posicionando, talvez, mais como uma necessidade do que como um acaso na história evolutiva dos seres vivos.
Referências e Notas:
[1] MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995.
[2] Umwelt- é uma palavra alemã que significa: “o mundo que está ao nosso redor”.
[3] MACEDO, Lino de. Os processos da equilibração majorante. Ciência e Cultura. São Paulo, v. 31, n. 10, p.1125-1128, out., 1979.
[4] PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978.
[5] Entende-se por organização o conjunto das relações que devem se dar entre os componentes de um sistema para que este seja reconhecido como membro de uma classe específica.
Ilustração: Tereaz
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