Apesar das muitas interpretações, o primeiro prelúdio do cravo bem temperado de Bach encerra mistérios que poucos pianistas exploram. Não é com os excessos de articulação de Glenn Gould, nem com a dinâmica pianissíssimo de J.C. Martins que se pode vislumbrar a ressonância dos harmônicos resgatando a melodia perdida.
![]() |
Glend Gould |
Hoje, para a minha felicidade, brotou na memória a interpretação chave, que na minha sensibilidade supera Glenn Gould, João Carlos Martins, Wanda Landowska, etc. Por ser uma música de fácil execução, os pianistas com exuberância de recursos tendem a exagerar na velocidade, ou carregar demasiadamente na dinâmica, ou afundar demasiadamente o pedal deixando a reverberação passar do ponto. A opção pela dinâmica "ppp" torna a interpretação de João Carlos Martins quase inaudível nas gravações, enquanto que o "stacatto" de Glenn Gould e o excesso de velocidade escamoteiam do ouvinte o deleite das reverberações harmônicas – a chave da peça.
Quando o gênio de J.S. Bach concebeu a monumental pela arquitetônica da harmônica denominada cravo temperado, consagrador da nova forma de afinar os instrumentos que consistia em distribuir igualmente pelas oitavas uma ligeira desafinação que compensava as deficiências da escala pitagórica - imprestável para conjunto de instrumentos de diapasões diferentes, pensou para o seu primeiro prelúdio a simplicidade de uma sequência arpegiada para a introdução ao Dó Maior.
A longa seqüência de arpejos provoca simultaneamente a inquetação no intérprete, e o apaziguamento do ouvinte O francês Charles Gounod, não exprimeur seus êxtase tentou extravasar o fruto das suas visões místicas diante de tão singelo conjunto de arpejos, compondo a sua famosíssima Ave Maria em cima da linha harmônica, que seria um resgate explícito da melodia negaciada por Bach.
Não se pode garantir que Gounod tenha obtido êxito, porém se pode asseverar que Bach, apesar de não ter expressamente escrito a melodia, a concebeu para existir enquanto as notas de base são tocadas. Isto justifica a minha busca para encontrar entre dezenas de interpretações a que melhor resgatasse aquilo que Bach deixou subentendido sob uma simplicidade desconcertante.
Quando Gould recorre ao destacamente excessivo, inviabiliza qualquer possibilidade da melodia possa surgir, também Martins liquida com a chance da melodia oculta assomar, ao tocar a peça quase ao nível do silêncio absoluto. Outros intérpretes estragam o prelúdio de diversas maneiras impedindo a emergência da transcendência meditativa pensada em Dó Maior.
A melodia perdida está na ressonância reverberante entre as duas notinhas entregues à mão esquerda e as outras destinadas à direita, através do correto dosamento do pedal. O executante deve sempre tocar a segunda nota da mão esquerda como se eco fosse da primeira, então a ressonância deste intervalo tocado contra o arpegio de três notas da mão direita recriam no ouvido a melodia perdida, que é oração, próximo daquilo que foi visualizado por Gounod.
Poucos intérpretes têm conseguido recriar aquilo que a indulgência de Bach ocultou e uma gravação achada na minha discoteca de LP´s, sob a maestria de Sviatoslav Richter solucionou a questão sob o ponto de vista intepretativo. A velocidade certa, o pedal justo e a dinâmica econômica arrancam aquilo que Bach ousou destinar ao discernimento do intérprete no prelúdio de abertura do primeiro livro do seu cravo bem temperado.
Dados técnicos da gravação:
LP lançado em 1970 pela Deutsch Grammophon em gravação ao vivo na turnê de Richter pela Itália.
Por: Isaias Malta
Olá, gostei muito de seu parecer. Mas uma coisa que sempre, SEMPRE me dá raiva, é quando toco este fácil porém majestoso prelúdio, todo mundo fala que é Ave Maria. Só sabem isso, nem que é de Gounod. Gostaria de saber por quê Gounod usou este como referência para sua obra prima.
ResponderExcluirA tentativa de Gounod foi justamente restaurar para os seus contemporâneos a melodia implícita que Bach omitiu genialmente. Desta maneira, a sutiliza se desmoronou e a versão escancaradamente melodiosa da Ave Maria sobrepuja aos ouvidos comuns o jogo de ressonâncias pensado por Bach.
ResponderExcluirCharles Gounod: na falta de "tempero",
ResponderExcluircedeu à maria-eclesiástica as notas do
luterano que o Papai do Céu inspirou.