Aquela que simultaneamente resgatou a dignidade da interpretação tecladística de Bach e reabilitou o cravo no século XX, foi sem dúvida a polonesa Wanda Landowska, que soube como ninguém revigorar as concepções que se tinha até então de Bach, considerado austero, metronômico, excelente para os alunos de piano, mas impensável como peças de concerto e prazer destinadas ao público leigo - Download MP3 abaixo.
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Wanda Landowska |
Considere por um momento as várias opiniões contraditórias de como interpretar o Bach:
"Os trabalhos do grande Kantor são como uma catedral majestosa. O intérprete tem que se dedicar principalmente ao contorno contrapontístico principal, sem a preocupação imediata com os detalhes,lembram um valioso colar, de cuja apreciação estética deve ser subraída a precisão científica”.
"Os trabalhos do Kantor são construídos em granito, de maneira hercúlea. Para permanecer fiel a um estilo tão grandioso, e não deixar-se cair na inflexibilidade e frieza, a pessoa não deve ser influenciada por qualquer outro sentimento, senão o desejo de ser completamente impessoal”.
“Mas por que não respirar a vida fresca ostentada por estas severas belezas? Se Bach estivesse vivendo hoje, talvez ele fosse mais emocional. Se ele estivesse munido com nossos instrumentos modernos, modificaria muitas coisas indubitavelmente. Considerando que ele está morto, nós deveríamos dar para à sua música o máximo de sonoridade e a intensidade emocional do nosso temperamento moderno. Deveria haver efeito mais dramático. Mais oitavas na linha do baixo e intensidade mais trágica de interpretação."
"Preservar as características da época", dizem os sóbrios virtuosos, "Nós não devemos empregar os pedais que não existiam naqueles dias." "Os velhos instrumentos tinham mais pedais do que os de hoje."
E assim por diante. Seria impossível citar todos os preconceitos incutidos nos conservatórios, nos corredores dos concertos e entre os críticos. Uma idéia amplamente difundida é aquela de que Bach foi o Czerny do século XVII. Um Czerny cordial que escreveu para piano, e exercícios para órgão, que eram muito difíceis e sumamente úteis para desenvolver a mão esquerda e o quarto dedo. Mas muitos músicos prestam pouca atenção às idéias contraditórias sobre Bach. Eles consideram a pergunta resolvida há muito tempo, porque seguem a melhor tradição dos grandes pianistas, especialmente Rubinstein. [2] Talvez possa ser interessante conhecer a atitude daquele virtuoso e mestre neste assunto.
A Atitude de Rubinstein em relação a Bach
"Todos os grandes compositores até Haydn". diz Rubinstein, nos "deixaram em escuridão completa sobre suas intenções quanto aos detalhes interpretativos dos seus trabalhos; e não há nenhum meio de saber qualquer coisa definitiva sobre isto. Hoje você não achará dois músicos que concordam até mesmo como os ornamentos devem ser tocados. Philip Emanuel Bach escreveu um livro sobre este assunto; mas ele teve em mente só os instrumentos do seu tempo. Infelizmente nós não podemos ter uma idéia precisa dos clavicórdios, clavicembalos e espinetas, porque não sabemos como tocá-los, o que seria um conhecimento indispensável à compreensão."
Mas Rubinstein não ousa tanto quanto Saint-Saëns, que nos aconselha que nos contentemos em ler as partituras e abandonemos a expressão de trabalhos dos quais podemos ter somente uma falsa ou ineficiente idéia de interpretação. Pelo contrário, com as melhores intenções, ele busca um remédio para o mal e especialmente tenta obter as sonoridades delicadas do passado em nosso piano contemporâneo. "Eu não posso ajudar acreditando", disse ele, que aquele piano de "Bach tivesse arranjos especiais para produzir efeitos diferentes de sonoridade. Sempre sou tentado a variar as "registrações" dos efeitos dinâmicos em diferentes estilos de execução, combinado ao uso inteligente dos pedais."
Saint-Saëns escreveu dois livros sobre o Cravo bem temperado com figuras de expressão e comentários feitas por Rubinstein para a série dos seus concertos históricos. Lado a lado com algumas picantes avaliações, às vezes surreais, como no comentário sobre a fuga em si bemol menor (Livro 2) para a qual Rubinstein imaginou "a canção de um moujik (camponês), no seu carro no meio das estepes" nós achamos algumas instruções muito vagas quanto a execução. É evidente que o método dele de "registração" não era exato: era dependente das suas escolhas intuitivas. Em todo o seu texto pode-se depreender a importância que ele deu ao conhecimento sobre os instrumentos antigos.
"Não", ele disse que "O piano moderno não é um instrumento que se adeque aos velhos clássicos. Como os trabalhos daquela época foram concebidos para os instrumentos daquele tempos, somente por intermédio deles poderiam ser reproduzidos fielmente, posso concluir que há perdas quando se toca nos pianos de hoje. Caso Philip Emanuel Bach tivesse escrito um método sobre a expressividade do cravo, teria se cingido então às possibilidades expressivas possíveis nos instrumentos de então."[3]
Rubinstein buscou em vão, mas não encontrou qualquer informação mais detalhada sobre os instrumentos antigos. Mesmo que possuamos peças em bom estado de conservação, "mas", diz Rubinstein, os instrumentos remanescentes que se encontram nos museus de Londres ou Bruxelas não nos podem dar uma idéia exata das suas qualidades, porque o tempo altera a sonoridade de um piano de tal forma, que o torna irreconhecível”. Isso é verdade, mas os antigos fabricantes nos deixaram especificações precisas para a construção dos seus instrumentos e até mesmo, instruções detalhadas para afiná-los. Geralmente Rubinstein radicaliza ao afirmar que não temos nenhum meio de saber qualquer coisa objetiva sobre a música antiga. A época deles não é tão remota para nós; os séculos XVII e XVIII se distinguiram não só por seu número de compositores geniais, mas também pelos seus notáveis teóricos, e de qualquer maneira, não deveríamos reclamar do número de documentos disponíveis, já quem nem uma vida inteira seria suficiente para conhecer a metade deles. Felizmente esta tarefa foi facilitada para nós por peritos como Spitta, Dannreuther, Pirro, Seiffert, Fuller-Maitland, Shedlock e muitos outros. [4] Se às vezes ficamos em dúvida sobre a execução deste ou daquele ornamento, na música mais recente é provável que a dúvida persista em um ou outro detalhe. Porém em Bach, ele nos deixou indicações claras e precisas de como os ornamentos deveriam ser tocados. Nos exemplos dados na primeira página do Clavierbüchlein (Pequeno caderno para Piano), escrito para o seu filho Wilhelm Friedemann Bach e Clavierbüchlein para Anna Magdalena Bach, o sistema é do baixo cifrado, como também um trabalho teórico sobre este assunto, onde o tratou com maior amplitude e detalhamento sob o título: "Regras e Princípios para tocar Baixo Cifrado a quatro vozes, ou um Acompanhamento para Alunos por Johann Sebastian Bach, Compositor do Tribunal Real e Capellmeister, também Diretor de Música e Kantor da Escola de St. Thomas em Leipzig”.
A atmosfera do período de Bach
Não pretendo afirmar que o conhecimento dos instrumentos antigos e da escrita exata dos ornamentos do baixo cifrado baste para executar a música barroca, longe disto. Há obstáculos mais sérios que Rubinstein não levou em conta. Para começar, é geral a nossa ignorância sobre os modos, costumes e desejos, enfim sobre a atitude mental prevalecente na atmosfera da época. Muito raramente ouvimos a música genuína do Kantor de Leipzig. Somos compelidos a escutar um Bach modernizado, adaptado ao modo musical de hoje, aproximado às condições de nosso tempo. Estamos dois séculos distantes de Bach, não obstante, a época dele é história vaga e totalmente diferente do tempo em que vivemos, diferente na vida, arte, impressões e idéias. O que buscamos avidamente, o que gostamos e o que admiramos, freqüentemente não tem similitude naqueles tempos.
Intensidade de expressão e amplitude de sonoridade são qualidades mais buscadas agora, as mais valorizadas em todo desempenho musical. Não entanto, os ideais da arte contemporânea não estavam tão em alta há dois séculos atrás. Nos prefácios dos seus trabalhos ou em seus tratados de execução ao cravo, recomendam os autores acima de tudo, graça, sutileza e precisão. "A experiência me ensinou", diz François Couperin, “que mãos mais fortes e capazes de tocar passagens mais rápidas, não são as mesmas que têm melhor sucesso em expressar sentimentos mais ternos”.
O Ideal de Bach comparado ao atual
Na sua procura pela perfeição, Bach não imaginou um instrumento com grande sonoridade, mas com um tom tão maleável e flexível quanto possível. No seu prefácio de 1723, para as "Invenções", Bach disse que eles foram escritos para ensinar a tocar corretamente e ajudar o aluno a adquirir o “cantabile”; ele desprezava os compositores que só pensavam em ginástica de dedos e os chamou de "Clavier-Husaren" (em nossa gíria, "Cavaleiros da Távola do Teclado.") Ele insistiu que os três princípios que guiaram os retóricos romanos são necessários para uma interpretação acurada: clareza e graça. Quando Bach é tocado hoje, intensidade, baixos tonitroantes, dinâmicas contrastantes e exageradas são as qualidades mais notáveis. Graça, inteligência, fé e sublimidade, apesar de terem perdido importância na nossa vida rude e mercantilizada, são necessárias para a interpretação dos trabalhos do gênio.
A música se democratizou e cresceu em popularidade. Nas palavras de Wagner, “a música deixou de ser o prazer ministrado por criados a algumas pessoas seletas e refinadas”. Tornou-se o prazer de todo mundo e "todo mundo" prefere efeitos ruidosos, sensações que aturdem, e acima de tudo sonoridade, tremenda sonoridade. Deve haver explosões virtuais, torrentes de som e exibições elétricas para que o ouvinte cansado não durma!
Uma comparação entre os instrumentos dos séculos XVII e XVIII
A exagerada ênfase dada para intensidade e o barulho foi um fator preponderante nas melhorias introduzidas nos instrumentos modernos. Por exemplo, tenha em conta o órgão moderno e as imensas construções que funcionam por água ou eletricidade. No livro de Albert Schweitzer sobre Bach, organista notável e uma autoridade competente em tudo relacionado ao órgão dedica um capítulo inteiro a esta mesma pergunta. [5] os trabalhos de Bach não são beneficiados pela sonoridade do órgão moderno; as registrações fundamentais têm papel mais importante do que o todo sonoro, elas são muito numerosos e ao mesmo tempo têm um volume muito grande de som. Ao tempo de Bach a equalização não só nivelava as registrações básicas, como também elas eram muito mais eufônicas que o nosso múltiplo espectro timbrístico moderno e tinham um tom que era intenso e sutil e que reproduzia maravilhosamente a sutileza da escritura de uma fuga. Estas fugas, de acordo com Mr. Schweitzer, tocadas no órgão de hoje, se tornam pesadas e massivas como gravuras desenhadas a carvão. Em relação aos nossos pianos orquestrais, estas máquinas são capazes de ensurdecer uma audiência inteira, compare suas pernas volumosas com as linhas sutis e frágeis dos clavicórdios e você descobrirá a diferença resumida de gosto entre as duas épocas.
Por Isaías Malta
Notas e referências:
[1] este estudo foi publicado originalmente na Revista de Música de Estudo (1906 de setembro): 562-3. A seguinte introdução foi produzida pelos editores do Estudo: "Alguns meses atrás O Estudo estampou um artigo sobre os recitais de clavicórido de Mme. Landowska que despertam bastante entusiasmo em certos centros musicais da Europa. Ela fez estudos minuciosos dos períodos da música do clavicórdio e espineta, como também sobre os próprios instrumentos, o que fez dela uma autoridade nestes assuntos. Embora os intérpretes de hoje tenham que tocar as composições de Bach em instrumentos diferente daqueles para o qual foram originalmente escritos, eles compreenderão muito mais facilmente o espírito da música barroca se eles tiverem uma idéia das suas características especiais. O artigo presente e outra seção dele que aparecerá em O Estudo durante outubro ajudarão na formação uma estimativa do teclado de Bach trabalha e o estilo no qual eles deveriam ser tocados." [Os editores].
[2]. Qual texto Landowska não especifica nem cita. As escritas de Anton Rubinstein (1829-1894) incluem: "Die Componisten Russland’s, für de Blätter Musik Teatro und Kunst, 29 (11 1855 de maio); 33 (25 1855 de maio); 37 (8 1855 de junho); Istoriya literaturd fortepy'yannoy muzdki ", Muzdkal'noye obozreniye (St Petersburg, 1888–9; Trans alemão., 1899, como Dado des de Meister Klaviers); Vospominaniya de Avtobiograficheskiye (1829–1889) (St Petersburg, 1889; Eng. trans., 1890, como Autobiografia de Anton Rubinstein (1829–1889)); Muzdka i yeyo predstaviteli (Moscou, 1891; Eng. trans., 1891, como UMA Conversação em Música: Música e seus Mestres). Veja Dicionário de Arvoredo Novo de Música e Músicos On-line, ed. L. Macy
[3]. Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788) publicou Die Kunst das clavier zu spielen [Ensaio sobre a verdadeira arte de tocar Instrumentos de teclado] em 1750 em Marpurg. Tradução inglesa editada por W.J. Mitchell (Nova Iorque, 1949).
[4]. Philipp Spitta (1841-1894) era um historiador de música; ele escreveu sobre Bach, Palestrina, entre outros assuntos, e editou trabalhos completos de Schutz. Edward Dannreuther (1844-1905) era pianista inglês e crítico de música, autor de Ornamentação Musical (Londres, 1893). Andre Pirro (1869-1943) era organista francês e estudante, o autor de uma história da música dos séculos XIV-XVI. Max Seiffert (1868-1948) era um musicólogo alemão especializado em música Barroca; ele publicou edições de Scheidt, Sweelinck, Buxtehude e outros. J.L. Fuller-Maitland (1856-1936) era um musicólogo inglês, enquanto escrevendo em alemão a música inglesa dos séculos XV e XIX. Ele editou música por Byrd, Purcell, Fitzwilliam Livro Virginal e outras fontes. J.S. Shedlock (1843-1919) era escritor de música inglês, o autor de uma história da sonata e estudos de Beethoven.
[5]. Albert Schweitzer (1875-1965) era organista alsaciano, musicólogo e doutor. Ativo no Paris Bach Sociedade, ele publicou em música entre 1905 e 1913. Seu estudo de J. S. Bach, apareceu em 1905 e foi traduzido para numerosos idiomas. J.S. Bach, le musicien-pocte (Leipzig, 1905; Ger. trans., aumentado 1908; Eng. trans., 1911). Em 1913 fundou um hospital para leprosos em Gabão, África onde ele residiu até a morte.
Imagem por Britannica
Wanda Landowska interpreta a cravo o Prelúdio e Fuga e Allegro em mi menor, de Johann Sebastian Bach
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