A produção pianística de Ravel envolve personagens e enredos da comédia de l'arte. O conteúdo programático subjacente à textura musical foi estudado exaustivamente pela pianista Gwendoly Mok, que para recriar os efeitos reclamados por Vlad, o último discípulo remanescente de Ravel, teve que se socorrer de um velho piano Erard de 1875 de cordas retas, na busca da obtenção da vibração mais nítida possível que ressaltasse a estrutura quase mozartiana.
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Gwendoly Mok |
Thad: O mesmo que você tocou na Casa de Ravel?
Gwendolyn: Sim, uma das qualidades mais admiráveis daquele piano que eu poderia mencionar é principalmente a sua limpidez sonora. O Erard de 1875 que eu toquei tinhas as cordas retas. Se você olhar dentro do seu próprio piano, notará que as cordas são cruzadas em dois grupos, um em relação ao outro. Com o piano de cordas retas você pode obter várias combinações de registrações diferentes – ouvidas como se fosse um coro de vozes, diferenciadas as vozes de baixo, tenor, alto e soprano. É tudo muito nítido e não há mistura ou homogeinização do som. De certa forma, isto te dá incríveis oportunidades de experimentação de várias possibilidades de colorido.
Thad: Eu não estava ciente deste aspecto, talvez para a música de Rabel em particular, isso seja especialmente importante. Esse tipo de claridade oposto à mistura de tons, é algo, na sua opinião, particularmente importante na sua interpretação da música de Ravel?
Gwendolyn: Sim, penso que se você compara a sua escrita com a de Rachmaninoff, é uma estética completamente diferente. Ravel realmente admirava Mozart, portanto tanto a música de um como de outro requerem o mesmo tipo de disciplina e demandam as mesmas estratégias de abordagem. Caso você analise as obras Jeux d'eau, Sonatine, ou a Le tombeau de
Couperin, elas são classicamente estruturadas, então eu penso que a sua abordagem envolve necessariamente a nitidez.
Thad: Lembro-me de uma coisa interessante quanto à transcrição de Ravel do Le Tombeau de Couperin, em que ele conscientemente omitiu a Toccata. Ele pensava que ela era inseparável do instrumento e não poderia ser transcrita satisfatoriamente. Havendo decidido assim, mesmo tendo sido um dos maiores orquestradores, deu uma idéia do quanto séria foi a sua produção destinada ao teclado.
Você falou especificamente sobre a Alborada e numa peça como esta, onde as coisas vão além da formidável técnica exigida em termos de repetição de notas e coisas relacionadas a isso. Por outro lado, parece que é um tanto mais complicado resgatar as nuances, tons e cores que Ravel esteve explicitamente procurando.
Gwendolyn: Alborada é, para todos os efeitos, um teste de resistência. Como você disse, é um desafio técnico de respeito para qualquer pianista, bem como Ondine e Scarbo. Mas a Alborada conta uma história que envolve muitos outros personagens; na Ondine você está lidando com dois personagens, com a Ondine e o homem que ela está tentando seduzir. A peça Scarbo é sobre um “poltergeist” aterrorizando uma pessoa numa casa, de novo há dois protagonistas. Contudo, na Alborada, ouço uma grande peça teatral, onde você está lidando com cantores, percussionistas e palhaços tentando entreter um chefe insuportavelmente mal humorado.
Thad: Suponho que quando há que se ouvir e pensar simultaneamente no que está envolvido tecnicamente, fica difícil formular as questões. Mas naturalmente o que você está dizendo é que o trabalho dever ser feito por etapas, até que se chega ao momento de ir além, atacar a parte mais importante do trabalho, que é consolidar o todo fragmentado num cenário de vozes e personagens.
Gwendolyn: Sim, vamos considerar aquela seção que eu mencionei antes, no meio da Alborada onde toda a ação paralisa, remanescendo uma única linha. Esta única voz é um lamento e Vlado trabalhou nisso comigo durante dias, dizendo não, você não está obtendo a atenuação, você não está interpretando a voz; não está sendo suficientemente humana. A voz é então interrompida por uma banda de percursionistas posicionados atrás dela. Você pode se imaginar numa corte com o bobo cantando sua triste canção, tendo um pequeno grupo de percussionistas atrás dele, um homem com um pequeno tambor, alguém com um triângulo e outro com um tamborim. Isto tudo faz parte de uma textura que você não consegue expressar num piano moderno. No Erard especialmente, o baixo tem um som real de percussão. Classificamos o piano moderno como integrante da família das percussões – algumas vezes brinco dizendo aos meus alunos que há algo mais a ser considerado além da nossa abordagem tradicional – estamos batendo no piano ao invés de extrair melhores sons que ele poderia oferecer, o que é facilitado no Erard pelo seu encordoamento reto que proporciona maior clareza na vibração. As cordas agudas soam como carrilhão, assim você obtém efeitos de sinos e triângulos, especialmente evidentes na música La Vallee de Cloches.
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Referências
Título: Gwenlolyn Mok indo além do piano percussivo
Capítulo: Thad Carhart entrevista Gwenlolyn Mok-2
Fonte: http://www.gwendolynmok.com/interviews.html
Tradução: Isaias Malta
Ilustração: Music & Nightlife
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