Quem ouve uma velha gravação de Ravel tocando Ravel se surpreende com a maciez do timbre e a leveza do teclado. Diferentemente da gritaria de alguns pianos alemães e americanos, o Erard se presta à musica sutil de Debussy, não tanto aos rompantes de Liszt, nem à padronização heavy metal que foi consagrada nas intrepretações das peças do período romântico, talvez açodadas pela garganta metálica dos steinways orquestrais.
Por: Isaias Malta
Ilustração: Vienna Symphonic Library
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Ravel ao piano |
Há falta crônica de informações em língua português sobre afinação de pianos. Apesar de haver em inglês farto material sobre esta matéria, no Brasil até os locais que se vendem ferramentas e peças são escassos e escondidos. O livro "O Afinador de Pianos de Daniel Mason" traz este título apenas como alusão, pois a sua história não tem é sobre afinadores e muito menos sobre pianos. Contudo, numa determinada parte o protagonista se dedica a afinar um piano Erard de cauda mandado para a Birmânia pelo exército inglês para satisfazer os caprichos de um excêntrico oficial. É a referência mais extensa e direta sobre assunto do título. Então transcrevo aqui a passagem traduzida do espanhol:
Este é um piano de cauda completa Erard de 1840 construído no atelier de Sébastien Erard em Paris, o que o torna um raro exemplar, pois a maior parte dos que se encontram na Inglaterra procedem de um mesmo local em Londres. A caixa é de caoba e tem um mecanismo de duplo escape, um grupo de alavancas que impulsionam os martelos; que está desenhado de tal modo que depois de golpear as cordas, o martelo possa recuar com facilidade, ou “escapar”. É uma inovação introduzida por Erard, que foi incorporada aos outros pianos. Porém o dos Erards é um mecanismo muito estreito, resultando no porquê dos martelos se desajustarem tanto. As suas cabeças alternam coro e feltro, dificultando muito o trabalho em relação aos pianos de outras marcas, que usam feltro somente. Sem haver examinado, já imagino que este deve estar terrivelmente desafinado e não quero nem pensar nos danos provocados pela umidade.
Dois pedais “una corda”, os abafadores chegam até a tecla do segundo si acima da oitava média; uma configuração típica. No Erard estão localizados debaixo das teclas e fixados por uma mola, o que é pouco habitual: na maior parte dos pianos, eles se apóiam sobre as cordas. Já saberei quando olhar o interior, mas suponho que há barras de reforço entre o cepo e o bastidor. Isso era prática corrente em 1840, servia para suportar a tensão das cordas de aço, mais fortes, que eram empregadas porque com elas se obtinha um som mais intenso.
O equipamento básico: uma chave para afinar, e chaves de fenda normais, esta mais fina e o regulador de escape são para o mecanismo de percussão. Alicates para afrouxar as teclas e um espaçador de teclas, tenazes para encurvar, dois ferros para dobrar os abafadores, um gancho para ajustar as molas, pinças, o regulador do cabrestante especialmente fino, que se usa somente com os Erards (sem ele é impossível regular a altura dos martelos). Como vês, não há diapasão; tenho um ouvido excelente e não necessito. Há cunhas para regular as peças forradas em couro e vários rolos de arame de diversos calibres. Também há outros utensílios, estes mais específicos para harmonizar: um ferro, cola e vários alfinetes especiais, porque se entortam com facilidade.
Entonação do piano
Entonar significa trabalhar sobre o recobrimento dos martelos para uniformizar, ou harmonizar os seus impactos sobre as cordas. A cor do tom e a variação dinâmica é grandemente reduzida quando os martelos tornam-se compactados. A resilência(*) é uma característica do feltro, que aumenta a vida útil dos martelos. É responsável também pela diminuição da possibilidade de rompimento das cordas, e reduz grandemente a compactação do feltro, resultante do contato entre martelo e corda. Efetivamente, a entonação controla, entre outras coisas, o tempo de contato do martelo com as cordas durante a percussão. Diferentes resultados podem ser alcançados:
1) Agulhando diferentes posições do martelo.
2) Alterando o comprimento das agulhas ou o tanto que estas agulhas penetram no martelo.
Por exemplo, o agulhamento na parte inferior dos ombros irá aumentar o volume se os ombros estiverem duros e não resilentes. É também possível que o agulhamento nos ombrpos proporcione um efeito sonoro abafado. Quanto mais perto das pontas, mais abafado o som ficará. É necessário enfatizar que a entonação não pode ser ensinada por um manual, precisa ser praticada.
Faça sempre a entonação, mesmo que rapidamente e tenha consciência que uma entonação competente advém depois de milhares de horas de entonar e escutar as diferenças no resultado sonoro.
Cuidado: Quando agulhar, não fazê-lo na ponta dos martelos. Segure firme o cabinho para evitar o jogo nas boquetas.
*) Resilência: é a capacidade do feltro de permanecer fofo.
Regulagem – o alinhamento do mecanismo de modo que todos os martelos estejam na mesma altura e golpeiem as cordas com brio e retrocedam com suavidade para que se possa tocar novamente a mesma nota. Em geral este é o primeiro passo. No entanto, eu gosto de começar com uma afinação provisória. Normalmente o processo tem que ser repetido várias vezes, porque ao afinar uma corda, a dimensão da tábua harmônica sofre modificações, afetando as demais cordas.
Há maneiras de evitar que isto ocorra: afinar as notas um pouco mais altas, por exemplo, porém na minha opinião é impossível evitar as alterações. Ademais, as cordas tendem a voltar a sua forma original, assim é melhor deixar passar uma noite antes de se tentar os retoques. De modo que faço uma primeira afinação, regulo e logo volto a afinar; essa é a minha técnica, porém outros fazem de maneira diferente.
Os experts em Erards costumam ser bons harmonizadores, pois combinação de couro e feltro dificulta o trabalho. Também há outras tarefas de menor importância. Neste caso, tentarei buscar algum modo para impermeabilizar a tábua harmônica. Tudo isto, é claro, dependerá que tudo funcione bem.
CONTINUA...
Este é um piano de cauda completa Erard de 1840 construído no atelier de Sébastien Erard em Paris, o que o torna um raro exemplar, pois a maior parte dos que se encontram na Inglaterra procedem de um mesmo local em Londres. A caixa é de caoba e tem um mecanismo de duplo escape, um grupo de alavancas que impulsionam os martelos; que está desenhado de tal modo que depois de golpear as cordas, o martelo possa recuar com facilidade, ou “escapar”. É uma inovação introduzida por Erard, que foi incorporada aos outros pianos. Porém o dos Erards é um mecanismo muito estreito, resultando no porquê dos martelos se desajustarem tanto. As suas cabeças alternam coro e feltro, dificultando muito o trabalho em relação aos pianos de outras marcas, que usam feltro somente. Sem haver examinado, já imagino que este deve estar terrivelmente desafinado e não quero nem pensar nos danos provocados pela umidade.
Dois pedais “una corda”, os abafadores chegam até a tecla do segundo si acima da oitava média; uma configuração típica. No Erard estão localizados debaixo das teclas e fixados por uma mola, o que é pouco habitual: na maior parte dos pianos, eles se apóiam sobre as cordas. Já saberei quando olhar o interior, mas suponho que há barras de reforço entre o cepo e o bastidor. Isso era prática corrente em 1840, servia para suportar a tensão das cordas de aço, mais fortes, que eram empregadas porque com elas se obtinha um som mais intenso.
O equipamento básico: uma chave para afinar, e chaves de fenda normais, esta mais fina e o regulador de escape são para o mecanismo de percussão. Alicates para afrouxar as teclas e um espaçador de teclas, tenazes para encurvar, dois ferros para dobrar os abafadores, um gancho para ajustar as molas, pinças, o regulador do cabrestante especialmente fino, que se usa somente com os Erards (sem ele é impossível regular a altura dos martelos). Como vês, não há diapasão; tenho um ouvido excelente e não necessito. Há cunhas para regular as peças forradas em couro e vários rolos de arame de diversos calibres. Também há outros utensílios, estes mais específicos para harmonizar: um ferro, cola e vários alfinetes especiais, porque se entortam com facilidade.
Entonação do piano
Entonar significa trabalhar sobre o recobrimento dos martelos para uniformizar, ou harmonizar os seus impactos sobre as cordas. A cor do tom e a variação dinâmica é grandemente reduzida quando os martelos tornam-se compactados. A resilência(*) é uma característica do feltro, que aumenta a vida útil dos martelos. É responsável também pela diminuição da possibilidade de rompimento das cordas, e reduz grandemente a compactação do feltro, resultante do contato entre martelo e corda. Efetivamente, a entonação controla, entre outras coisas, o tempo de contato do martelo com as cordas durante a percussão. Diferentes resultados podem ser alcançados:
1) Agulhando diferentes posições do martelo.
2) Alterando o comprimento das agulhas ou o tanto que estas agulhas penetram no martelo.
Por exemplo, o agulhamento na parte inferior dos ombros irá aumentar o volume se os ombros estiverem duros e não resilentes. É também possível que o agulhamento nos ombrpos proporcione um efeito sonoro abafado. Quanto mais perto das pontas, mais abafado o som ficará. É necessário enfatizar que a entonação não pode ser ensinada por um manual, precisa ser praticada.
Faça sempre a entonação, mesmo que rapidamente e tenha consciência que uma entonação competente advém depois de milhares de horas de entonar e escutar as diferenças no resultado sonoro.
Cuidado: Quando agulhar, não fazê-lo na ponta dos martelos. Segure firme o cabinho para evitar o jogo nas boquetas.
*) Resilência: é a capacidade do feltro de permanecer fofo.
Regulagem – o alinhamento do mecanismo de modo que todos os martelos estejam na mesma altura e golpeiem as cordas com brio e retrocedam com suavidade para que se possa tocar novamente a mesma nota. Em geral este é o primeiro passo. No entanto, eu gosto de começar com uma afinação provisória. Normalmente o processo tem que ser repetido várias vezes, porque ao afinar uma corda, a dimensão da tábua harmônica sofre modificações, afetando as demais cordas.
Há maneiras de evitar que isto ocorra: afinar as notas um pouco mais altas, por exemplo, porém na minha opinião é impossível evitar as alterações. Ademais, as cordas tendem a voltar a sua forma original, assim é melhor deixar passar uma noite antes de se tentar os retoques. De modo que faço uma primeira afinação, regulo e logo volto a afinar; essa é a minha técnica, porém outros fazem de maneira diferente.
Os experts em Erards costumam ser bons harmonizadores, pois combinação de couro e feltro dificulta o trabalho. Também há outras tarefas de menor importância. Neste caso, tentarei buscar algum modo para impermeabilizar a tábua harmônica. Tudo isto, é claro, dependerá que tudo funcione bem.
CONTINUA...
Por: Isaias Malta
Ilustração: Vienna Symphonic Library
Resiliência é a propriedade caracterizada pela capacidade de devolver a energia mecânica recebida. É o efeito da mola. É às vezes confundida com elasticidade, que é propriedade do material de ser deformado sem se romper.
ResponderExcluirQueria indicação de um técnico brasileiro que tem um espírito europeu e não americano (se me entendem)
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