Um encontro casual com um estranho ser, termina mudando o curso de uma vida. A partir dali nada mais foi o mesmo, já que uma estranha obscessão se apoderou do personagem.
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Morfeu por Cadu |
Examina-me, Senhor e prova-me;
esquadrinha os meus rins e o meu coração.
Salmos 26,2
Num dia qualquer de uma cidade qualquer eu o vi. Antes, sempre imerso em meus próprios pensamentos e absorto em sonolência, devo ter esbarrado com ele inúmeras vezes, mas agora, estava ali o milagre da visão como que emergindo repentinamente da névoa. Um ser altivo, muito branco quase levitando no meio da multidão. Sua tez absolutamente alva e sem manchas se ressaltava perante nós outros.
Minha surpresa foi suficiente para que os meus desígnios anteriores fossem esquecidos; passei a seguir o sujeito, obcecado pelo brusco irrompimento havido na minha percepção. De que valiam os meus compromissos, se o sentido da vida podia estar ali, branco quase translúcido. Enquanto o turbilhão de indagações me assaltava a cabeça, via que os transeuntes apenas desviavam da esbelta figura, sem desviarem os olhos do seus próprios pensamentos. Ora, seria pela sugestão do momento, ou eu estava percebendo uma mudança dos padrões de luminosidade ao redor da criatura?
Minha visão estava definitivamente descarrilando dos seus simples limites, quais sejam, o de me suprir de prosaicas imagens cotidianas capazes de me desviar de buracos e evitar objetos perigosos. Extrapolando suas funções sensório-motoras essenciais, ela me conduzia amarrado ao rastro de uma figura luminosa ao longo de ruas todas iguais. Ao parar, também parei numa distância respeitosa e segura, fazendo os trejeitos costumeiros de quem segue e não quer demonstrar que está seguindo, disfarçando para ser mais exato. Seus olhos claros, de um azul violáceo, contemplaram as redondezas e se depararam com os meus surpresos demais para se desviar daquele avassalamento, fui pego pela luz como saída da alta torre de farol devassando a névoa noturna.
E Jacó lhe perguntou, e disse: Dá-me,
Peço-te, a saber o teu nome. E disse:
Por que perguntas pelo meu nome?
E abençoou-o ali.
E chamou Jacó o nome daquele lugar
Peniel, porque dizia: Tenho visto a Deus
Face a face, e a minha alma foi salva.
Gênesis, 32,29-30
Sob o olhar me senti transportado a tempos imemoriais em que os imortais reinaram sobre a terra. Fui inundado pelo fogo perscrutador daquele olhar por imagens sem nome e sem nexo que reduziram a minha atual existência a um suspiro flutuante na imensidão do caos. Apesar do turbilhão humano persistir em sua monótona passagem ao nosso redor, eu estanquei abduzido pela sensação irrompida ante o ser vindo de uma outra realidade, onde permanecemos imóveis por tempo indefinido.
Emudecido, fui inundado por respostas a perguntas nunca buscadas, jorrando na minha mente sob a forma de um “tsunami” arrasador. Seu nome impronunciável conheci e também os desdobramentos de alguns aspectos da sua existência. Jamais saberei do significado daquela profusão de vivências em tão curto espaço de tempo. Nunca entendi se ele era um ser de outro planeta, ou um Deus perambulando entre as pessoas. A sua real estatura me escapuliu totalmente, assim como a maior parte da significação do mar de conhecimentos que se abateu sobre mim rugindo daqueles olhos, buracos violáceos de luz profunda que me arrancaram dos trilhos da vida ordinária e me deixaram flutuando até hoje longe das minhas antigas certezas.
Enquanto aquele mar de gente se acotovelava ao nosso redor, fui sorteado a contemplar uma janela para o infinito, ciceronado pelos “olhos de Deus”, porém logo depois largado à minha própria sorte sob a nulidade do pequeno viver. É justo acordar alguém para entregá-lo aos braços do vazio?
palavras-chave: contos, iluminação, realidade de ficção científica, vida ordinária, mudança de hábitos
Por: Isaias Malta
Desenho de Cadu
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