11 novembro, 2007

As Pesquisas Biológicas de Piaget

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A partir de seus dados empíricos, Piaget concluiu que poderiam ocorrer assimilações de modificações morfológicas pelo genoma, sugerindo que as investigações sobre os genes reguladores seriam essenciais para explicar a adaptação dos seres vivos ao meio.

Piaget (1978a) formulou uma hipótese de assimilação das alterações fenotípicas pelo genótipo que chamou de fenocópia. Ele partiu de experimentos com moluscos gastrópodes (Lymnaea stagnalis)[1], estudando as variações no tamanho da concha. Verificou que as raças que habitavam locais com águas tranqüilas possuíam uma concha mais alongada enquanto as que habitavam locais com águas agitadas possuíam conchas mais achatadas. Quando os descendentes dos indivíduos com conchas alongadas eram criados em locais de águas agitadas eles também desenvolviam conchas mais achatadas, pois faziam um maior esforço com a musculatura do pé para fixarem-se nas paredes rochosas dos lagos. Ao contrário, os descendentes de indivíduos com cochas achatadas, quando criados em águas tranqüilas, desenvolviam conchas alongadas.

Piaget concluiu que o esforço que os moluscos faziam para se fixarem nas paredes dos lagos deixava o seu corpo mais achatado e isso afetava o desenvolvimento da concha que se adequava à forma geral do corpo. Os moluscos de águas tranqüilas não necessitavam fazer muito esforço para fixação e desenvolviam conchas alongadas. Alguns animais que cresciam parte do tempo em locais de águas agitadas e outra parte em águas tranqüilas apresentavam conchas intermediárias. Desse modo, as alterações no formato das conchas são o resultado de um processo fisiológico desencadeado pelo comportamento de fixação às rochas. Para chegar a estas conclusões Piaget criou inúmeros indivíduos em aquários com o mesmo formato e alimentação, variando apenas a agitação da água.

Piaget estudou cinco a seis gerações de Lymnaea stagnalis, geradas a partir de espécimes coletados nas diferentes estações do ano e, através da razão (r) obtida dividindo-se a medida do comprimento pela medida da largura das conchas, determinou cinco raças, a partir da média dessa razão (rm) em mil indivíduos: I (subula)rm 1,85; II (tipo da espécie) rm 1,78; III (turgida) rm 1,68; IV (lacustris) rm 1,54 e V (bodamica) rm 1,43. Após muitas coletas Piaget verificou que as raças I a III eram encontradas tanto em locais com águas agitadas quanto calmas, variando a forma das conchas de acordo com o ambiente. Porém as raças IV e V somente eram encontradas em locais de águas agitadas. A partir da distribuição dos indivíduos atuais e de conchas fósseis, Piaget trabalhou com a hipótese de que as variedades IV e V são mais recentes e se originaram da raça II.

Em um lago de águas tranqüilas, que nunca havia apresentado esta espécie de molusco, Piaget depositou, em 1927, ovos da raça V (Lymnaea stagnalis bodamica), que só era encontrada em locais com águas agitadas. Após inúmeras coletas até 1943, quando o lago foi secado, Piaget verificou que todos os indivíduos apresentavam conchas achatadas. Concluiu a partir disso que havia ocorrido uma modificação no genótipo e esta raça havia fixado a forma achatada da concha a partir de uma adaptação fenotípica verificável em outras raças da mesma espécie. Ou seja, o genótipo havia “assimilado” uma alteração a partir do fenótipo, em outras palavras, o genótipo havia “copiado” um resultado de adaptação fenotípica perfeitamente observável nas raças I, II e III, por este motivo chamou o evento de FENOCÓPIA. Portanto, sua idéia de “fenocópia” interpreta o processo evolutivo a partir da interação, ou seja, da adaptação vital dos organismos.




Além dos moluscos, ele também estudou variedades do vegetal Sedum sediforme, uma Crassulaceae, que ocorre em diferentes altitudes, apresentando formas típicas para cada altitude. Neste caso também encontrou variedades, claramente aparentadas com as formas variáveis, que não variavam mais apesar de serem cultivadas em diferentes altitudes. Suas pesquisas estão divulgadas na obra “Adaptación vital y psicología de la inteligencia” escrita em 1974[2].




O tempo decorrido entre os experimentos e a publicação do livro sobre adaptação vital e psicologia da inteligência (de 1943 a 1974) pode ser explicado pela não objetividade dos dados empíricos de Piaget. Ele tentou provar, em nível biológico, suas conclusões obtidas através de investigação psicológica com milhares de crianças de várias idades. Ou seja, Piaget sabia que a inteligência necessitava de interação para se desenvolver, sabia também que ela estava sujeita a uma base biológica e, portanto, as leis que as regiam deveriam ser da mesma “natureza”. Assim, suas interpretações sobre os experimentos não se apoiaram exclusivamente nos dados empíricos, mas sim em toda a sua experiência prévia sobre o desenvolvimento da inteligência. Provavelmente, outros biólogos sem a sua vivência teriam buscado outras explicações e chegado a outras conclusões, mas as inovações do pensamento científico surgem através de pessoas revolucionárias, que conseguem propor novas formas de olharmos os dados, embora tais pesquisadores necessitem, por vezes serem redescobertos, muitos anos mais tarde por estarem à frente do seu tempo.

Quando realizou seus experimentos e escreveu sobre sua teoria de fenocópia, Piaget não dispunha de dados suficientes para pensar os possíveis mecanismos moleculares envolvidos neste processo. Já na década de 70 quando publicou seu livro já havia mais especulações sobre o papel dos genes reguladores. Assim ele sugeriu que, provavelmente, ao investigar os genes reguladores se poderiam encontrar muitas explicações para adaptação dos seres vivos ao meio, pois supunha que tais genes estariam intimamente ligados à auto-regulação do genótipo.

Atualmente foram desvendados vários processos moleculares de regulação gênica, que não se limitam apenas a genes e envolvem sistemas complexos, podendo apoiar o conceito de fenocópia proposto por Piaget. Sabe-se que os sistemas de regulação gênica são bastante complexos, diferindo num mesmo organismo e entre espécies. Algumas pesquisas sugerem que há mecanismos moleculares capazes de reequilibrar ou reestruturar o genoma a partir de uma estrutura precedente. Entre tais mecanismos podem-se citar os elementos de transposição ou transposons que se constituem em fragmentos de DNA capazes de se moveram dentro dos cromossomos.

De acordo com Hickey (1992)[3], todos os elementos de transposição estão sujeitos à seleção em nível molecular. A eles são atribuídos efeitos como a alteração da estrutura e função do genoma porque promovem mutações e rearranjos, afetam a regulação gênica e codificam produtos que interagem com os processos celulares, funcionando como ferramentas naturais de engenharia genética.

Ao se moverem dentro do DNA hospedeiro, os Elementos de Transposição possibilitam o surgimento de inversões cromossômicas, representando uma importante fonte de variabilidade genética e conferindo ao genoma uma maior plasticidade[4 e 5]. Isto nos sugere que há mecanismos moleculares capazes de reequilibrar ou reestruturar o genoma a partir de uma estrutura precedente.Para alguns autores, os elementos de transposição são considerados como ferramentas naturais de engenharia genética.[6]

Há vários mecanismos reguladores como o controle hormonal, capaz de alterar o funcionamento de genes, modificando o fenótipo em função das diferentes condições ambientais. Bem como já foram evidenciados mecanismos moleculares a partir de sistemas de reparo do DNA, os quais podem induzir processos de especiação em bactérias como resposta às pressões seletivas em situações de estresse ambiental. Estas evidências têm indicado que a evolução a partir da pressão ambiental é possível e as interpretações de Lamarck não são totalmente desprovidas de sentido.[7]

Diferentes mecanismos como a movimentação de elementos de transposição, o controle hormonal e a alteração no funcionamento de sistemas de reparo do DNA são compatíveis com a proposição piagetiana de que, em parte, a evolução pode resultar das alterações fenotípicas dos organismos ao meio, pois as diferentes soluções apresentam uma lógica comum que é a adaptação, para que a vida mantenha-se, como sistema autopoiético.


Não se pode atribuir todo processo evolutivo a um único tipo de evento, as pesquisas em biologia sugerem que a vida busca múltiplas soluções para seus problemas. Todavia, Piaget enfatiza que, do mais simples ao mais complexo destes processos, o papel do acaso não é desprezível, porém, modesto.

A teoria piagetiana preconiza uma mesma lógica tanto para as fenocópias biológicas quanto para as cognitivas. De forma que para ele a “equilibração majorante não é mais do que a expressão destes mecanismos gerais” (Piaget, 1978a, p. 188). Todavia, Piaget enfatiza que, embora haja um notável conjunto de convergências entre as funções cognitivas e orgânicas, há também um conjunto de diferenças, mostrando que o conhecimento desempenha funções que lhe são próprias.

Não é possível pensarmos que a maçã caída junto a Newton, pudesse ser a fonte de suas teorias sobre gravitação, uma vez que foi graças a todo um trabalho anterior e à sua capacidade de assimilação que um evento casual desencadeou todo um processo cognitivo. O ensaio piagetiano sobre adaptação vital e a psicologia da inteligência pode ser resumido a esta observação sobre a maçã de Newton, já que as condições prévias não fortuitas, mas necessárias para novidades aparentemente aleatórias.

Em todos os níveis, os esquemas de ação do sujeito diferenciam-se, incessantemente, por acomodação contínua aos dados novos. Toda adaptação resulta do equilíbrio entre assimilação e acomodação. Desse modo, para Piaget, a condição prévia de uma adaptação nova é uma adaptação precedente mais sua capacidade de reestruturação, num processo de fenocópias sucessivas.

Há muita similaridade entre a adaptação biológica e a cognitiva. Porém, embora a última prolongue a primeira, sua função é atingir formas irrealizáveis no domínio orgânico, tanto por sua riqueza, quanto pelo equilíbrio entre assimilação e acomodação.
Para ele, a realidade vital fundamental não é constituída nem por estruturas intemporais, nem pela sucessão histórica de acasos ou de crises, mas por processos contínuos de auto-regulações, que implicam desequilíbrios e um constante dinamismo de equilibração[8].

O critério é sempre o sucesso, quer signifique sobrevivência ou compreensão. Assim, existem mecanismos comuns entre o sucesso de uma teoria compreensiva e um organismo adaptado, porque a sobrevivência da melhor teoria se liga às escolhas ditadas pela experiência, que mantêm certas relações com as seleções impostas pelo meio.

No campo cognitivo, as trocas entre indivíduo e o meio estruturam e modificam o que se convencionou chamar de inteligência, ela se constitui como uma segunda natureza deste sujeito, fazendo com que um observador externo possa pensar que sempre esteve lá em algum lugar, pois os processos envolvidos são, em geral, invisíveis e quando se tornam visíveis se constituem numa totalidade que aparentemente “desabrochou”.


Notas e referências:
[1] - Lymnaea stagnalis é um molusco gastrópode que ocorre em lagos da Europa, Norte da Ásia e América do Norte. Sua concha apresenta um aspecto ovóide e alongado com 6 a 7 espiras nos adultos, tem uma altura de 45 mm a 65 mm e uma largura de 20 mm a 30 mm. ver mais detalhes em: http://www.lecalebuissonniere.eu/page147.html

[2] – PIAGET, Jean. Adaptación vital y psicología de la inteligencia Madrid : Siglo XXI de España ed., 1978a.

[3] - HICKEY, D. A. Evolutionary dynamics of transposable elements in prokaryotes and eukaryotes. Genetica Kluwer, n. 86, p. 269-274, 1992.

[4]- PURUGGANAN, Michael D. Transposable Elements as introns: Evolutionary Connections. Trends in Ecology & Evolution. Elsevier, v. 8, n. 7, p. 239-243, July, 1993.

[5]- REGNER , Luciana P. et al. Genomic Distribution of P Elements in Drosphila willistoni and a Search for Their Relationship With Chromosomal inversions. Journal of Heredity. Cory, v. 87, p. 191-198, 1996.

[6] - GARDNER, E. J. ; SIMMONS, M. J. ; SNUSTAD, D. P. ; Principles of genetics , 2 ed., New York : John Wiley, 1991.

[7] - TADDEI, François ; MATIC, Ivan ; RADMAN, Miroslav. Origem das espécies: o que há de novo? Ciência Hoje São Paulo, v. 21, n. 126, p. 48-57, 1997.

[8] - PIAGET, Jean. Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978b. 


Imagens: link 1 ; link 2 e link 3

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