
Qual é a diferença entre a fotografia da exposição e o registro luminoso do fato familiar banal? Porque um deles se reveste de significado, enquanto outro terá valor apenas associativo atribuído pelos atores participantes daquele restrito círculo? Não se pode dizer que as duas dimensões aprisionam luz, porque a fotografia assim o faz, enquanto o registro armazena a nulidade do olhar que não enquadrou o mundo.
Uma entrevista banal sobre fotografia envereda sobre as questões básicas do ser e atinge um clímax inusitado para o próprio entrevistador, pego de surpresa e vítima das artimanhas do enquadrador:
- Antigamente me chamavam de fotógrafo, mas depois que a fotografia rolou para a vala comum da instantaneidade digital, passei a encarnar o personagem que enquadra a realidade.
- Qual é a diferença do enquadrador para o fotógrafo de celular?
- Eu aprisiono a realidade dentro dos limites da lente, eu estipulo as dimensões do mundo cabíveis dentro de um esguio retângulo, enquanto a pessoa comum nada aprisiona. Ela se limita a provocar um furo entre o nada e o lugar nenhum, não como troca luminosa, mas como o vazio deslocado de lugar. Eu falando sobre isto é como se tivesse dando importância metafísica a uma transposição de não-ser e é uma pena que a vulgarização da fotografia não tenha nenhuma importância como produto, mas sim como um processo de nulificação.
- Você acha que os fotógrafos digitais se nulificam?
- De certa maneira eles já foram nulificados pela cultura de massa, pela produção em massa, pelo consumo em massa, pela artificialização do ser humano acabado em próteses. Então o ato nulificador das montanhas de fotos armazenadas em memórias de cartão e memórias USB são o produto de uma nulificação prévia que anomizou o fotógrafo antes mesmo dele apertar o botão.
- É uma coisificação?
- A tecnologia transferiu a importância dos fins para os meios. Com a consumação do fim último humano, as coisas necessárias para atingir o bem viver foram elevadas à divindade do significado da vida. Procura-se qualidade devida para viver bem, mas para quê? Ninguém sabe mais sobre o sentido da vida porque é mais importante comprar bens de consumo para viver bem do que responder à pergunta básica. Assim, um humano coisificado quando tenta enquadrar a realidade, engendra uma estranha alquimia que transferirá para a matriz digital o mosaico de pixels que lhe preenche o cérebro. O produto fotográfico em escala massiva reflete o achatamento que a realidade das pessoas experimentou a partir do momento em que as suas vidas perderam o sentido.
- O quê elas fotografam?
- A luz pode ser captada ativamente ou passivamente. As pessoas não enquadram, elas simplesmente anulam todo o resto fora dos limites do diafragma e guardam a luz sobrante. Mas tudo que carece de significado é muito pouco para ser guardado. Um rosto, um morro, ou uma rua, ou são personagens, ou não são nada. Sem a força simbólica, a luz trai o fotógrafo e se perde quando aprisionada. Aí a resposta mais adequada à pergunta é que as pessoas ao invés de enquadrarem, provocam um furo de luz na realidade onde os anti-personagens se movimentam em espaços de não-luz.
CONTINUA...
Por: Isaias Malta
Nenhum comentário:
Postar um comentário