A descoberta de que o mesmo eixo corporal de mamíferos e moscas pode ser explicado pelo mesmo conjunto de genes, equivale a uma revolução copernicana na biologia.
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Christiane Nüsslein-Volhard |
1- Como pode uma única célula dar origem a um ser multicelular extremamente complexo?
2- Especificando a questão para o caso humano se pode questionar: Como submetido aos ambientes tão diferenciados e possuidor de culturas ainda mais diferenciadas pode o ser humano continuar uma única espécie?
Através da utilização de técnicas da biologia molecular na embriologia, começamos a compreender, a fundo, alguns aspectos do desenvolvimento, que têm como funções principais gerar a diversidade celular, bem como a manutenção de uma estrutura básica dentro de cada geração assegurando a continuidade da vida. A constância da organização cerebral ao longo das gerações e de um indivíduo para o outro, a despeito das condições ambientais, sugere um determinismo genético muito poderoso dessa organização. Até mesmo o primeiro sorriso de um bebê prematuro não aparece na idade ‘legal’, mas mais tarde, na mesma idade biológica da criança nascida “a termo” [1].
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Fases iniciais do desenvolvimento embriológico |
O desenvolvimento embrionário é um feito notável de auto-organização e a questão de como os genes atuam em conjunto orquestrando este processo é um dos grandes enigmas da Biologia. Uma parte da resposta começou a ser obtida com estratégias experimentais, que permitem a identificação dos genes essenciais para o desenvolvimento embriológico a partir do conjunto total de genes de um organismo.
Tais estratégias foram desenvolvidas em pesquisas iniciadas no final dos anos 70 por Christiane Nüsslein-Volhard e Eric Wieschaus com embriões de Drosophila. Estes pesquisadores realizaram a árdua tarefa de provocar mutações para isolar e classificar o maior número possível de mutantes letais embrionários, ou seja, genes que afetam processos embriológicos específicos capazes de inviabilizar o embrião, revelando que não mais do que 120 genes são essenciais à construção de um embrião normal de Drosophila. Os mesmo autores utilizando a mesma metodologia com embriões de peixes ornamentais (Danio rerio) identificaram 500 genes essenciais à embriologia desse vertebrado, sendo 30 relacionados com a formação da notocorda e 40 com a formação dos arcos branquiais, que são estruturas inexistentes na Drosophila[2].
Sabemos hoje que vários genes com papel crucial na embriologia de Drosophila são muito semelhantes aos genes dos vertebrados, responsáveis por funções homólogas, indicando uma origem evolutiva comum, uma incrível conservação dos processos básicos e uma continuidade evolutiva nos processos vitais. Ao comparar os genes essenciais ao desenvolvimento embriológico de diferentes espécies, tem sido verificado que a vida encontrou algumas soluções básicas, as quais foram mantidas dos vermes ao ser humano, sendo ampliandas na medida necessária. Curiosamente, tais descobertas, que refletem processos de tentativas e erros, correções, aplicações e ampliação de “soluções básicas”, sugerem que o surgimento e a manutenção da vida não se deram de forma instantânea e fácil, mas foram os produtos de um longo e trabalhoso processo. De acordo com a tradição talmúdica, vinte e seis tentativas malogradas precederam a criação deste mundo. O Gênesis não teria sido aquele milagroso instante inaugural tão celebrado, nem a eclosão repentina de uma totalidade redonda saída do Nada através do Verbo, mas tentativa e erro, experimentação, fracasso, remontagens, recolagens[3].
Como salienta Gilbert[4], dispomos atualmente de dados precisos sobre o papel de determinados genes reguladores no desenvolvimento embrionário graças às pesquisas de Christiane Nüsslein-Volhard, que classificou conjuntos de genes produtores de morfógenos. Os morfógenos são substâncias necessárias à ativação ou repressão de genes estruturais que afetam a morfologia do organismo. A pesquisadora detectou um conjunto destes genes para a porção anterior do embrião, outro para a região abdominal e um terceiro conjunto que codifica morfógenos para região posterior do embrião de Drosophila. Estes três conjuntos de genes codificadores de morfógenos são necessários para definição dos eixos antero-posterior e dorso-ventral do embrião. Sem eles, as outras estruturas presentes nessas regiões, tais como pernas e asas, não se desenvolvem [5]. A determinação de eixos antero-posterior e dorso-ventral do embrião é essencial às fases iniciais do desenvolvimento embrionário de todos os organismos com simetria bilateral. Assim, estes genes do início do desenvolvimento embrionário afetam inúmeros outros do mesmo modo que um maestro é essencial à atuação de vários músicos de uma orquestra, definindo o andamento da música e indicando a entrada dos diversos instrumentos.
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Distribuição de morfógenos no embrião de Drosophila ao longo do desenvolvimento |
Paradoxalmente, ao contrário do que se poderia esperar, dada a precisão de suas funções, a regulação destes genes apresenta modos complexos, podendo produzir diferentes famílias de proteínas relacionadas. Toda esta complicada ou intrincada regulação aliada à necessidade de precisão nos permitem avaliar as dificuldades dos processos de criação e as vantagens da conservação desses genes. Ou seja, há um parentesco surpreendente no nível do DNA entre genes homeóticos, tanto em relação a sua seqüência de bases, quanto em sua posição relativa nos cromossomos, quando comparamos moscas, ratos e homens, que alegrou profundamente os adeptos da teoria evolucionista, por ser uma prova incontestável do parentesco entre os seres vivos. Quem se atreveria a supor que o eixo corporal de mamíferos e moscas poderia ser especificado pelo mesmo conjunto de genes? Portanto, para os estudos evolutivos, essa descoberta pode ser comparada a uma revolução copernicana, e trouxe toda uma série de implicações científicas estabelecendo linhas de intersecção entre áreas de pesquisa que andavam isoladas.
A antiguidade clássica já enfatizava que todo o conhecimento estava no homem: "Homem conhece a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses", por nossa parte podemos acrescentar, que para o homem conhecer o homem precisa também se debruçar sobre moscas que se alimentam em frutos fermentados, pois alguns genes homeóticos de mamíferos são tão semelhantes aos de Drosophila que podem substituir-se mutuamente. Assim como os genes homeóticos o gene “eyeless” de Drosophila encontra homólogos entre genes de ratos e humanos, com mais de 90% de identidade. O gene eyeless quando mutado pode causar a perda total ou parcial do olho, tendo sido demonstrado que este gene codifica uma proteína com capacidade de se ligar ao DNA. A sua ativação em determinadas regiões de larvas de Drosophila gerou olhos ectópicos funcionais em asas, patas e antenas de adultos viáveis. Sua substituição pelo gene homólogo de camundongo determinou o surgimento de olhos normais em indivíduos mutantes. A importância destas descobertas foi a identificação de uma espécie de "gene-mestre", que ativa uma cascata de genes capazes de produzir olhos. Sabe-se que em diferentes organismos a produção de olhos evoluiu independentemente umas 40 ou mais vezes. Todavia, a ordem mestre "faça-se o olho" é extremamente conservada na forma de um gene. Desde a década de sessenta sabe-se que as células têm por muito tempo competência para seguir muitos caminhos desenvolvimentais diferentes, atualmente descobriu-se que parte desse controle se deve aos genes mestres", os quais assim como o eyeless, podem ser altamente conservados.
Ao refletir sobre as questões evolutivas, ficamos perplexos com a relação variabilidade versus conservação. Por um lado encontramos genes altamente conservados e, por outro, uma multiplicidade de formas e de interações fantásticas com o ambiente, que ainda muito pouco podemos compreender. Apesar dos diferentes caminhos percorridos por vegetais e animais há uma lógica semelhante no seu desenvolvimento. A própria da vida em si, que é altamente conservada, deve, ao mesmo tempo, garantir a multiplicidade dentro da uniformidade. Estas informações revelam que o ser humano está imerso no seu ambiente, bem como, que uma parte representativa da nossa organização biológica, foi desenvolvida e aprimorada por organismos primitivos como os vermes, indicando que há uma grande continuidade entre os seres vivos.
Em igual medida, de acordo com a teoria Piagetiana, devemos esperar que haja elementos comuns, em todos os indivíduos nos caminhos do desenvolvimento da inteligência, especialmente no seu início. Desse modo, apesar da multiplicidade de culturas em que o ser humano cresce e aprende, a manifestação da sua inteligência apresenta inúmeros pontos em comum que permitem a intercomunicação e as trocas culturais. Tais pontos em comum são os pontos de ligação entre o biológico e o imaterial. Nossa inteligência pode se alargar infinitamente, ultrapassando os limites biológicos, mas sempre manterá o contato com o organismo, que é um elemento necessário, embora não suficiente. O entendimento do papel desempenhado pelo corpo nas aprendizagens é o objeto de estudo da biologia do conhecimento e tem por finalidade fundamentar o desenvolvimento de práticas pedagógicas que sejam capazes de explorar mais adequadamente as possibilidades humanas, tornando a educação mais efetiva e afetiva ao ser humano.
Referências:
[1] - CHANGEUX, Jean-Pierre. Entrevistas do Le Monde. In : FLAKSMAN, Sergio (Trad.) O indivíduo. São Paulo : Ática, 1989.
[2]- RAMOS, Ricardo G. P. Mutantes, marco histórico na embriologia. Ciência Hoje São Paulo, v. 22, n. 132, p. 14-15, 1997.
[3] - PELBART, Peter P. A nau do tempo-rei. Rio de Janeiro : Imago, 1993.
[4] - GILBERT, Scott F. Biologia do Desenvolvimento, São Paulo : Sociedade Brasileira de Genética, 1994.
[5] - WOOD, Will ; JACINTO, Antonio. Drosophila melanogaster embryonic haemocytes: masters of multitasking. Nature Reviews Molecular Cell Biology 8, 542-551 (July 2007). doi:10.1038/nrm2202
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