Nos primórdios da fotografia, acreditava-se que a nova máquina aprisionava a alma do retratado, hoje se supõe são apenas superstições. Para Jonatan isso foi até hoje, porque a sua alma terminou aprisionada numa fotografia muito especial...
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- Senhor Enquadrador, um assunto que começou inocentemente sobre as nuances da arte fotográfica, acabou descambando para o terreno movediço da salvação da alma. Não estou tão seguro de que um simples ofício de capturar a luz numa câmara escura traga tantas implicações quantos o Sr. sugere. Muitas das suas assertivas beiram a superstição e outras nem sequer beiram, porque estão submersas numa mística medieval já superada. A sua metafísica da busca do essencial já foi derrubada pela razão moderna, que suprimiu as culpas impostas pelas tradições judaico-cristãs. Não me resta outra alternativa senão criticar a sua arrogância e a sua disparatada auto-suficiência de se considerar um anjo do apocalipse.
- Meu caro entrevistador, saiba que as suas objeções são inteiramente compreensíveis, já que doravante o Sr. está pessoalmente implicado com um dos meus enquadramentos.
O fotógrafo lhe mostra uma fotografia de 10x15, tirada casualmente durante a entrevista. Jonatan a vê, a princípio causalmente, mas depois a sua atenção é sugada vorazmente pela janelinha a sua frente. É a sua imagem que ele vê, não reflexo da cópia fiel que ele vê no espelho, mas algo que lhe borbulha as entranhas. Um estranho estupor lhe sobe pela coluna paralizando-o. Quando se dá conta, suas mãos rechaçam subitamente a figura crescendo desmensuradamente, e o retrato volta a ser um pequeno retângulo brilhoso de papel plastificado, uma quinquilharia que não valia a sua atenção. Jonatan se recompõe e assume novamente os seus controles racionais.
- (Ele faz o gesto que simboliza a interrupção da conversa) A entrevista termina aqui, que para mim teve importância enquanto se ateve à técnica fotográfica, quanto ao resto, espero que cada telespectador faça os seus julgamentos e, por segurança, se mantenham longe das obras deste Senhor, coisa que eu não fiz. (O entrevistador ri e se despede do enquadrador tentando disfarçar seu ceticismo divertido.)
Dias depois do rotineiro encontro.
Jonatan relegou nos dias seguintes aquele episódio ao nível dos acontecimentos bizarros e tentou voltar à sua primitiva rotina de trabalho e da vida comum. Jonatan esqueceu rapidamente da entrevista com aquele maluco e fez muitas outras, eventualmente com outros malucos, mas a rarefeita paz que lhe embalava as noites se desfez e ele perdeu o sossego. Jonatan nunca atribuiu o seu mergulho àquele encontro fatídico com o enquadrador, mas foi como o cair num redemoinho e ao cabo de uma doença inexplicável morreu. Sua última imagem lúcida foi a fotografia que o enquadrador lhe mostrou quando entrou no estúdio para a entrevista: um vasto campo de sal, ocupado por uma figura nua de homem em primeiro plano. A probreza da foto tinha tudo para ser esquecida, não fosse por um detalhe; a expressão do personagem que o observava lhe causou uma estranha impressão, era como se tivesse se olhando no espelho, era ele que se olhava com uma expressão de angústia existencial.
Jonatan vacilou inicialmente e se viu parado absorvido por aqueles olhos que lhe comiam a alma, mas logo a premência do tempo e o compromisso da entrevista e a urgência do início das gravações fê-lo desviar os olhos e devolver respeitosamente a foto ao enquadrador. Jonatan se recusou a contemplar e a acreditar, então não foi tocado pela oportunidade.
Ninguém do seu círculo de parentes e amigos soube do episódio da entrevista, mas os que compareceram ao enterro mal prestaram atenção a um homem corpulento, com jeitos de fotógrafo.
Ao cabo das cerimônias fúnebres e do ato final de emparedamento do defunto, a maioria dos presentes foi obsequiada com uma foto dada pelo sujeito que parecia ser o fotógrafo oficial da família. No final da cerimônia, somando-se ao um clima de tristeza, normal nessas em circunstâncias, uma angústia difusa tomou de assalto os presentes, eles não choravam mais pelo defunto, mas sob o impacto da imagem que lhes marcara indelevelmente o espírito e que lhes acompanhariam a vida agora abrevidada, no máximo pelos próximos três meses.
Os fotografados morreram do mesmo mal de Jonatan, de uma estranha e inexplicável doença da alma. Nos enterros compareceu um homem que parecia ser o fotógrafo da família, mas que na realidade era um vingativo Anjo do Apocalipse travestido em roupagens modernas.
FIM.
Por: Isaias Malta
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