21 outubro, 2007

Uma Interpretação Alternativa do Conceito de Fenocópia

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Piaget interpreta fenocópia num sentido diferente do convencionado pela Genética, a fim de ressaltar a possibilidade de uma alteração fenotípica vantajosa ser assimilada pelo genótipo tornando-se hereditária. Para ele, a fenocópia é uma convergência entre o resultado de uma adaptação fenotípica e uma subseqüente modificação genotípica.


Para entendermos melhor o conceito piagetiano de fenocópia precisamos analisar alguns conceitos centrais em sua obra, tais como: interação e meio.

O conceito de interação que Piaget utiliza em toda sua obra ultrapassa dialeticamente as posturas aprioristas (de primado do organismo sobre o meio ou do sujeito sobre o objeto) e finalistas (de primado do meio sobre o organismo ou do objeto sobre o sujeito).

Dessa forma o seu conceito de meio também está impregnado de interação, pois ele nunca o interpreta apenas como um lugar, isolando seus constituintes abióticos dos bióticos. Mais do que isto, quando se refere especificamente ao meio em relação ao ser humano sempre ressalta simultaneamente seus aspectos físicos e sociais.

O significado do meio físico ou social em Piaget nos revela um papel muito intenso do meio na constituição dos sujeitos da educação sem descartar a importância destes sujeitos em si mesmos, havendo uma continuidade entre ambos, a qual estabelece um contexto de convivências, gerador de transformações mútuas em todos os níveis.

Piaget trabalha com o pressuposto de que os organismos escolhem assim como transformam o meio através de seu comportamento. Desse modo há sempre um processo seletivo recíproco permeando as interações organismo/meio, pois ao selecionar um meio, o organismo, interage com ele, modificando-o à medida que retira do mesmo os elementos necessários à sua sobrevivência, acrescentando, entre outras coisas, os elementos provenientes do seu próprio metabolismo.

Ao ser modificado o meio passaria a exercer sobre os organismos diferentes pressões seletivas, para as quais se exigiriam novas respostas adaptativas dos organismos. Sempre que algumas destas novas respostas redundem em mudanças genéticas nos indivíduos atribui-se um papel do meio como fonte de variabilidade genética tão importante quanto os processos intrínsecos dos organismos. Por este motivo a abordagem de Piaget sobre meio é feita a partir das concepções sobre evolução, as quais permeiam toda análise biológica contemporânea.

A ênfase piagetiana na equivalência das influências do meio e do organismo nos processos evolutivos oferece um paradigma que nos permite ir para além de Darwin e Lamarck na interpretação dos processos de evolução orgânica através de seu conceito de fenocópia, o qual também envolve uma reflexão sobre as relações entre comportamento e evolução.

De forma resumida o comportamento pode ser definido como a possibilidade dos animais lidarem com o meio externo, adaptando-se ao mundo que os rodeia. No caso do ser humano esse comportamento abarca especializações cognitivas e biológicas, as quais nos capacitam a aprender, a conhecer e nos comunicar com os outros seres humanos através de símbolos, tornando nossa natureza rica, sutil, variada e versátil.
O comportamento é uma estrutura fenotípica, que, como todas as outras, resulta de uma interação indissociável entre o meio e a informação hereditária. No campo da inteligência, tanto o exercício quanto a construção dos esquemas supõem uma interação contínua entre o sujeito e os objetos.[1]

Piaget concede ao comportamento um papel fundamental no processo evolutivo. Para ele a qualidade básica da vida é a preservação de si mesma, que diferencia os seres vivos dos mortos e da assim chamada “matéria bruta” ou “inanimada”. Como enfatiza, a capacidade de interagir é o aspecto mais geral da vida e o comportamento é a maneira como os animais viabilizam essa sua interação com o meio.

Todavia, ele enfatiza que o comportamento não se restringe a reagir ao meio adequando os indivíduos às diferentes circunstâncias, pois também envolve a ampliação incessante do meio pelos organismos, resultando em novas condições ou desafios ambientais, os quais exigirão novas adaptações e transformações destes organismos.

Dessa forma, o comportamento é traduzido por Piaget como um motor da evolução, pois vai submetendo o organismo a novas condições ambientais, que se constituirão em novos desafios e novas adaptações, num movimento contínuo.

O caráter “ajustado” do comportamento ao meio levou Piaget a questionar seu surgimento. Como ele poderia ter se desenvolvido por acaso sem informações provenientes do meio? A solução teórica que apresentou envolveu a elaboração de uma metáfora sobre fenocópia, alterando o seu significado original proposto pela Genética.

Em biologia o termo fenocópia refere-se a um fenótipo, desenvolvido em resposta a um estímulo ambiental, o qual se assemelha a um outro fenótipo conhecido como produto de uma mutação gênica. [2]

Quando um fenótipo apresenta um defeito morfológico de órgãos, ou de partes do corpo resultante de um processo de desenvolvimento intrinsecamente anormal é chamado de malformação. Quando esse defeito resulta de uma interferência extrínseca, não hereditária, num processo de desenvolvimento originalmente normal, é chamado de disrupção. Desse modo, foram descobertos alguns casos de disrupção que foram classificados como fenocópias. Um bom exemplo estudado pela Genética é a disrupção causada pela Talidomida.

Existe um síndrome denominada de Holt-Oram que produz uma aplasia radial com malformação esquelética dos membros superiores, que pode ser idêntica a certas disrupções, causadas pela ação da Talidomida. Nesse caso, a síndrome de Holt-Oram é o produto de uma mutação gênica, que pode ser mimetizada por um efeito ambiental. Diz-se, neste caso, que o fenótipo produzido pela Talidomida é uma fenocópia desta síndrome.[3]

A metáfora sobre fenocópia proposta por Piaget sugere que algumas mudanças orgânicas tenham se originado de adaptações dos organismos ao meio, as quais foram assimiladas ou copiadas pelo genótipo. Ou seja, primeiro surgiria uma característica no fenótipo, a qual ampliaria ou, mais ainda, tornaria possível a adaptação do organismo ao meio e, subseqüentemente, esta característica se tornaria hereditária.

Esta suposta cópia que o genótipo faria do fenótipo seria uma reconstrução fundada na seleção orgânica, posto que “a retroação que vai desde o fenótipo aos genes reguladores da síntese, não lhes informaria o que têm que fazer, a não ser a presença de desequilíbrios, que desencadeariam variações gênicas em ‘scanning’ escolhidos e orientados pela seleção orgânica” (Piaget, 1978a, p. 67)[4].




Dessa forma, para Piaget, o meio não se imporia ao organismo transformando-o ‘ao seu bel prazer’, mas a adaptação vital decorrente de suas interações poderia gerar alterações orgânicas. Tais alterações orgânicas poderiam ser assimiladas pela informação genética de forma a conferir uma maior viabilidade a estes organismos, desde que os mesmos tivessem capacidade para isto.

Assim, o genótipo não copiaria, simplesmente, as soluções encontradas pelo fenótipo, mas se reestruturaria, ou reequilibraria a partir de seus elementos intrínsecos, garantindo que certas variações se tornassem parte do seu patrimônio hereditário. Estas reconstruções do genótipo decorrentes da adaptação vital seriam, para Piaget, a principal fonte de variabilidade dos seres vivos.

Uma mesma linha de pensamento pode ser atribuída a Maturana e Varela[5], quando salientam que a conservação da autopoiese e da adaptação são condições necessárias à existência dos seres vivos, de forma que, a mudança ontogênica de um ser vivo no seu meio será sempre uma deriva estrutural congruente entre o ser vivo e o meio. As perturbações do ambiente não determinariam o que acontecerá ao ser vivo, pois é a estrutura deste, que define quais mudanças ocorrerão, porém, ao observador essa deriva parecerá “selecionada” pelo meio ao longo da história de interações dos seres vivos.

Em sua hipótese de evolução, Piaget propõe através de uma interpretação alternativa do conceito de fenocópia que, num primeiro momento, o meio desafiaria novas alternativas fenotípicas, a partir das quais, sempre que um fenótipo decorrente do processo adaptativo se constituísse como fonte de desequilíbrios internos e duradouros o genoma acabaria por se reestruturar.

Esta hipótese, para o autor, explicaria melhor o caráter amplamente adaptado dos organismos ao seu meio, de forma muito mais convincente do que atribuir tal fato, exclusivamente, às mutações casuais seguidas de recombinação genética e seleção, uma vez que a adaptação vital precederia a reestruturação genética sempre que ambas fossem possíveis.

O conceito de fenocópia de Piaget propõe a reestruturação do genoma em função de desequilíbrios gerados pela adaptação fenotípica aos diferentes ambientes. Esta idéia amplia o conceito de pressão seletiva, incluindo o próprio fenótipo como passível de gerar tensões que desequilibram a estrutura da informação hereditária, transformando-a.

Referências:
[1] PIAGET, Jean [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978b.
[2] FUTUYMA, Douglas J. Biologia evolutiva. Ribeirão Preto : SBPC ; CNPq, 1992.
[3] BORGES-OSÓRIO, Maria Regina ; ROBINSON, Wanyce M. Genética Humana. Porto alegre : E. Universidade ; UFRGS ; Artes Médicas, 1993.
[4] PIAGET, Jean. [1974] Adaptación vital y psicología de la inteligencia Madrid : Siglo XXI de España ed., 1978a.
[5] MATURANA, Humberto R. ; VARELA, Francisco G. A árvore do conhecimento: As bases biológicas do entendimento humano. Campinas : Editorial Psy II, 1995.

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