10 outubro, 2007

Teoria Sintética da Evolução e a crítica piagetiana

por

A obra piagetiana está repleta de críticas aos textos clássicos de evolução das décadas de sessenta e setenta por eles ‘descartarem’ Lamarck e elaborarem todos os seus conceitos exclusivamente a partir da teoria de Darwin sobre a origem das espécies. Ele usou essa crítica para construir seu conceito de meio a partir de uma visão interacionista e o objetivo central da minha tese[1] foi mergulhar no pensamento deste autor pela sua relevância para o campo educativo. Como busquei um aprofundamento do conceito de meio em Piaget, não me detive numa análise mais detalhada sobre os processos evolutivos. Mas, para evidenciar o tipo de pensamento ao qual Piaget se contrapunha, sem fazer uma análise mais aprofundada dessa teoria na atualidade deveremos abordar um texto da década de 70 sobre a teoria sintética da evolução.

É interessante fazer-se uma análise das transformações das idéias evolucionistas ao longo das últimas décadas por entender que evidenciariam a procedência da crítica piagetiana sobre o tema. Nesse momento, não entraremos em detalhes sobre as diferenças entre darwinismo, evolucionismo clássico, teoria sintética da evolução, neodarwinismo ou neodarwinismo clássico, mas sim tomaremos o que apresentam de comum e foi criticado por Piaget, que é o descaso para com as idéias de Lamarck na elaboração dos seus preceitos fundamentais.


No início dos anos 70, Stebbins[2] resumia o desenvolvimento da teoria sintética da evolução da seguinte maneira:
i) os biólogos modernos aceitam a evolução como um fato, tão bem demonstrado como os fatos da história antiga;
ii) Darwin pôde convencer o mundo da existência e do grande significado da evolução orgânica devido ao seu conhecimento profundo de história natural, sua habilidade para acumular uma larga variedade de fatos mediante a observação, a experiência e a correspondência com outros naturalistas, e, particularmente, por sua habilidade para sintetizar esses fatos, estruturando-os em um todo coerente;
iii) (p. 7-8) “o mais importante cientista anterior a Darwin foi Lamarck, cuja teoria da evolução se baseava no conceito de que as modificações adquiridas pelo organismo na adaptação aos ambientes, que encontra durante a vida, são automaticamente transmitidas a seus descendentes, integrando-se, assim, à hereditariedade. Este conceito de herança de modificações adquiridas, embora não completamente desacreditado, tem a seu favor tão pouca evidência, que raros biólogos atuais o admitem como um fator importante na evolução”[3]; 
iv) o ponto frágil da teoria darwiniana, foi removido nas décadas de 1920 e 1930, quando os princípios mendelianos foram corretamente aplicados às populações e utilizados para explicar a variabilidade genética na natureza; 
v) a moderna teoria sintética da evolução surgiu a partir da investigação da genética de populações, que resolveu os conflitos existentes no primeiro quarto do século vinte entre os naturalistas darwinistas e os geneticistas mendelianos.
 

A genética de populações estuda as mudanças gênicas que ocorrem nas populações em decorrência do processo evolutivo. Como salienta Hoenigsberg[4], embora seja muito simplista dizer que as mudanças nas freqüências equivalem à evolução, o certo é que tais mudanças nos permitem “auscultar” (em sentido figurado) o aumento progressivo na adaptação de um organismo ao seu ambiente como resultado de respostas específicas ao processo de seleção natural. Segundo define este autor, a genética de populações estuda as mudanças que podem dar lugar à evolução e estão dentro dos limites biológicos que determinam sua possibilidade evolutiva.
 

De acordo com o Stebbins, na década de setenta, a teoria sintética da evolução considerava cinco processos básicos de evolução: mutação, recombinação genética, organização cromossômica, seleção natural e isolamento reprodutivo. Os dois primeiros (mutação e recombinação genética) são considerados, ainda hoje, a fonte da variabilidade, inserindo novas variantes genéticas. A organização cromossômica produz arranjos ordenados da variação, “ligando” ou mantendo independentes os genes. Diz-se que dois genes estão ligados quando fazem parte de um mesmo par de cromossomos homólogos. Quanto mais próximos um do outro estiverem os genes ligados, maior será o efeito dessa ligação, de forma que eles tenderão a ocorrer, juntos, nos gametas produzidos pelo seu portador, um maior número de vezes. Por outro lado, os genes são independentes quando fazem parte de pares de cromossomos diferentes e são transmitidos juntos ou separados aos gametas de forma totalmente aleatória.
 

A seleção natural orienta a evolução, através do favorecimento ou da redução da viabilidade dos indivíduos em um dado ambiente. O isolamento reprodutivo oferece os limites da direção, para a qual, a seleção pode orientar a população, pois o surgimento de novas espécies dependerá da acumulação de certa quantidade de informação genética aliada ao surgimento de barreiras reprodutivas.

O termo, mutação, é usado para designar basicamente as alterações que ocorrem em determinado gene. Cada mutação gênica tem o efeito de acrescentar um novo gene ao conjunto de informações hereditárias contidas na molécula de DNA[5], que produzirá uma alteração correspondente na proteína codificada por este gene. Estas alterações afetam as propriedades e funções das proteínas e, conseqüentemente dos organismos de que fazem parte, nos seus aspectos estruturais ou funcionais, em maior ou menor medida, de acordo com a proteína afetada.
 

Em relação às mutações, a expectativa teórica é de que todas ou quase todas as que ocorrem numa população bem adaptada ao seu ambiente, diminuem sua adaptação e são "rejeitadas" pelo meio, a menos que o ambiente esteja variando em relação às necessidades dos organismos. A maioria das mutações, por trazerem prejuízos ao organismo são consideradas deletérias e, portanto, não é esperado, de uma mutação isolada, qualquer incremento na adaptabilidade geral de um organismo.
 

Segundo esta perspectiva, as estruturas adaptadas presentes nas populações evoluíram gradualmente através do acúmulo de várias mutações e combinações gênicas. Dessa forma, os estágios primários da evolução ocorrem em animais especializados em nichos particulares e surgem como modificações específicas, cujo valor geral aparece apenas posteriormente.
 

As mutações podem surgir espontaneamente sem causa aparente, numa taxa bastante baixa. Como causas externas (provenientes do meio) ou agentes mutagênicos bem estudados estão as radiações naturais, como os raios X, ultravioleta, entre outras e alguns tipos de elementos químicos dos quais se podem destacar os metais pesados como o Mercúrio ou substâncias como o THC, responsável pelo princípio ativo da maconha.
Todavia, as mutações são raramente fonte direta da variação, na qual se baseia a mudança evolutiva, pois a extrema complexidade dos sistemas adaptativos dos organismos superiores faz com que uma mutação isolada contribua muito pouco para variabilidade, uma vez que a adaptação em organismos superiores está baseada em complexas e altamente organizadas combinações de genes. Por isso a recombinação genética é um intermediário necessário entre a mutação e a seleção.
 

A recombinação genética ocorre por trocas entre partes dos pares de cromossomos homólogos[6], ou seja, trocas de genes entre os cromossomos de origem paterna e materna. Nos organismos sexuados[7], este processo envolve uma complicada maquinaria celular e acontece, sempre, durante o processo de formação de gametas, como espermatozóides e óvulos.
 

Uma vez que as mutações são geralmente deletérias, a teoria sintética da evolução acaba atribuindo ao meio um papel pequeno como fonte da evolução, ou seja como produtor direto de variabilidade genética. O papel do meio como fonte da variação é indireto, apenas como fonte de agentes mutagênicos. Dessa forma a teoria sintética da evolução, ao fundamentar sua interpretação apenas na teoria da seleção natural de Darwin, rechaçando as idéias de Lamarck, passou a atribuir, praticamente, toda a fonte de variação útil aos fatores endógenos dos organismos tais como a recombinação gênica, atribuindo ao meio uma atuação mais tardia, como seletor das variantes "apresentadas" pelos organismos.
 

Contra esta postura epistemológica é que Piaget se posiciona, propondo uma terceira posição que significa sua ultrapassagem dialética e concede ao meio e ao organismo papéis de igual magnitude, tanto como fonte quanto como selecionadores da variações que possibilitam a evolução.

Notas e referências:
[1] Tese de Doutoramento: CUNHA, Gladis Franck da. Interação e meio: a filtragem do Mundo. Porto Alegre : UFRGS, 1999. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação. (Orientadora: Analice Dutra Pillar; Co-orientadora: Vera Lúcia da Silva Valente)
[2] STEBBINS, George L. [1970] Processos de evolução orgânica, São Paulo : Livros técnicos e Científicos, 1974.
[3] O grifo é meu.
[4] HOENIGSBERG, Hugo. Genética de poblaciones, Santafé de Bogotá, Geminés, 1992.
[5] A informação genética está codificada pela seqüência de quatro nucleotídios (A, T, G e C), os quais são como os pontos do código. Cada "trinca" desses nucleotídios codifica um aminoácido de uma proteína. A seqüência que estas "trincas" apresentam na molécula de DNA é igual à seqüência com que os aminoácidos aparecem na molécula que dá origem à proteína. As propriedades específicas da molécula protéica dependem da ordem dos aminoácidos presentes na cadeia que a compõe.
[6] Cromossomos homólogos: são os cromossomos que compõem cada par do cariótipo e contém os mesmos locos gênicos. Nos organismos com reprodução cruzada, um é sempre de origem materna e o outro de origem paterna, ou seja, um está no gameta feminino enquanto o outro é trazido pelo gameta masculino.
[7] Em microorganismos, que são geralmente assexuados, a recombinação genética pode ocorrer como conseqüência de eventos reprodutivos especializados. Em tais processos, pode ocorrer troca de material entre dois indivíduos, os quais podem até pertencer a espécies diferentes, formando os recombinantes, que são os organismos que resultam dos processos de recombinação genética. A recombinação também ocorre durante a meiose, onde há a formação de novas combinações de alelos, resultantes de trocas entre as moléculas de DNA de cromossomos homólogos. Nos organismos superiores a recombinação ocorre antes do amadurecimento dos gametas.

palavras-chave: Darwin, Stebbins, Lamarck, evolução, DNA

Um comentário:

Related Posts with Thumbnails