Um filtro cognitivo não é impedidor da passagem, ao contrário, é possibilitador da assimilação, pois o estado mais natural é o de ignorar a maior parte das informações ambientais.
Para definição do conceito de filtragem do mundo utilizo as análises de Piaget, para quem a assimilação, no sentido lato, trata-se de uma integração do novo às estruturas prévias sem descontinuidade com o estado precedente.
Dizer que todo conhecimento supõe uma assimilação e que ela consiste em conferir significações, equivale, para Piaget, a afirmar que conhecer um objeto implica incorporá-lo aos esquemas de ação. Assim, conhecer não consiste em copiar o real, mas em agir sobre ele e em transformá-lo de modo a compreendê-lo em função dos sistemas de transformação a que estão ligadas estas ações.
Qualquer conhecimento comporta sempre e necessariamente um fator fundamental de assimilação, o qual confere significado ao que é percebido ou concebido. A este fator fundamental de assimilação chamaremos de filtro. O sentido dado ao termo filtro não é o de impedir a passagem, mas ao contrário é algo que possibilita a assimilação, pois o estado mais “natural” é o de “ignorar” a maior parte das informações ambientais, a fim de não sobrecarregar o sistema nervoso. Assim, para cada ação complexa devem existir filtros específicos, por exemplo, se um animal precisar fugir sua atenção deve estar voltada para identificar as melhores rotas e a sua energia não poderá ser desperdiçada interpretando informações sobre alimentação ou acasalamento, pois deverá concentrar-se nesta ação vital, realizando-a de forma eficiente.
As ações ser humano são mais complexas, uma vez que a ciência e a cultura possibilitaram-lhe múltiplas formas de sobrevivência, logo para cada atividade complexa desenvolvemos um filtro específico como resultado da construção de novos conhecimentos.
Nossa interação com o meio é o resultado da interdependência entre a base biológica e o comportamento construído, os quais dependem tanto dos aspectos físicos quanto dos aspectos sociais do meio. Isto é bastante enfatizado por Piaget, quando afirma que o conteúdo de cada esquema de ação depende em parte do meio e dos objetos ou acontecimentos a que se aplica, mas isso não significa que a sua forma ou funcionamento sejam independentes de fatores internos. Os conhecimentos não constituem uma cópia do meio mas um sistema de interações reais, que refletem a organização auto-reguladora da vida.
Os conhecimentos humanos refletem uma manifestação especial do comportamento. O comportamento, segundo Aubrey Manning [1], é o conjunto de todos os processos através, dos quais, um animal percebe tanto o mundo externo quanto o estado interno de seu corpo e responde às mudanças percebidas. Muitos desses processos são internos, não sendo observáveis diretamente.
O comportamento adquirido constitui a manifestação de possibilidades biológicas e as funções cognitivas refletem os mecanismos essenciais da auto-regulação orgânica. O comportamento, se constitui, portanto num conjunto de escolhas e de ações sobre o meio, organizando de 'modo ótimo' as trocas.
O modo ótimo se refere ao menor consumo de energia possível para a realização das trocas necessárias ao processo vital. Ou seja, todos os seres vivos necessitam realizar contínuas trocas com seu meio para obtenção de matéria e energia, bem como a manutenção da própria vida. Estas trocas envolvem processos metabólicos que consomem energia. Quanto menos energia se utilizar melhor será a troca.
Por exemplo, os animais sempre que podem escolher, preferem consumir os alimentos que são digeridos com o menor consumo de energia e forneçam uma maior quantidade de energia e matéria. Para tanto em grande medida os instintos ou comportamentos elementares herdados favorecem estes comportamentos. Ao oferecermos uma porção de arroz e uma de carne a um gato, ele preferirá sempre a porção de carne. No caso humano, quando fazemos uma dieta de emagrecimento optamos pelas 'piores trocas', ou seja, selecionamos alimentos que necessitam de muita energia para sua digestão e em contrapartida fornecem poucas calorias energéticas, dessa forma, o organismo necessitará dispor de suas próprias reservas e perderá massa. Em grande medida, tais dietas de emagrecimento se opõem aos comportamentos mais instintivos, sendo dificilmente uma escolha prazerosa. Há ainda outros tipos de trocas, como as relações entre predador e presa, onde a escolha acertada de abrigo pelas presas garante que as mesmas gastem menos energia para defenderem-se dos predadores. Em contrapartida melhores estratégias de caça garantem aos predadores maior sucesso na obtenção de alimentos.
Em relação ao ser humano, Piaget enfatiza que a finalidade ou direção dos seus comportamentos é a alimentação dos esquemas de assimilação, ou seja, o exercício, contínuo ou periódico, dos esquemas de ação já constituídos, utilizando os elementos oferecidos pelo meio.
Essa alimentação dos esquemas de ação, ao contrário da assimilação fisiológica, não se mantém estável e tende a aumentar, caracterizando uma ampliação progressiva da capacidade de ação sobre o meio.
A exploração do meio é, portanto, um processo em espiral com transformações mútuas, já que ao modificar o meio os organismos se modificam, ampliando seu aprendizado ou comportamento adquirido. Nesta perspectiva, o comportamento, tanto quanto nosso material genético, é um dos constituintes essenciais da produção fenotípica[2], a qual se refere ao indivíduo em si, como resultado da informação hereditária em interação com o meio.
No caso particular dos seres humanos, o comportamento adquirido é básico para a sobrevivência. Se não aprendemos não sobrevivemos, ou mais, se não nos modificamos não sobrevivemos. Assim, nossa constituição biológica, em si mesma, não nos garante a vida. Dependemos tanto dos alimentos energéticos em si quanto do conhecimento sobre a comestibilidade, ou não, das substâncias, bem como do seu adequado preparo. Esse é um exemplo acanhado, pois para nossa sobrevivência não bastam apenas alimentos energéticos. A complexidade dos nossos esquemas de ação gera necessidades, requerendo continuamente mais alimento. Não temos apenas fome orgânica, precisamos de "impressões" ou seja, precisamos da convivência humana com seus sorrisos, afetos e toda uma gama de diferentes manifestações culturais.Os aspectos sociais, ambientais e individuais do ser humano são fatores indissociáveis. Nesse sentido, para conhecermos os sujeitos da educação é necessário problematizar o conceito de meio para além do ambiente natural e construído, incluindo o social.
CONTINUA...
Referências e notas:
[1] MANNING, Aubrey. Introdução ao comportamento animal. 1ed. Rio de Janeiro : Livros Técnicos e Científicos, 1977.
[2] A expressão, produção fenotípica é usada como sinônimo de fenótipo. O fenótipo é o conjunto de todas as características de um indivíduo (tipo de voz, tipo de sangue, altura, cor, etc.) e resulta da interação entre a informação genética e o meio.
Fonte das ilustrações: Zaroio.com e Borders
palavras-chave: interações organismo/meio, sujeito/objeto, Jean Piaget, Norbert Elias, Ernest Cassirer, comportamento, filtragem do mundo
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