30 outubro, 2007

Reflexões sobre o conhecimento científico e a compreensão do ser humano

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Em biologia não existe ação sem interação e toda interação modifica o organismo, exigindo regulações, não havendo, portanto, unidirecionalidade, ou seja um organismo não é capaz de modificar o meio sem modificar-se.

Segundo Piaget, problematizar o conceito de meio ou ambiente a partir de um posicionamento interacionista significa vê-lo em funcionamento, ou seja, de forma cibernética uma
vez que todo funcionamento envolve comunicação e trocas, bem como os sistemas que controlem estes processos de interação e trocas.
 

De modo que, na perspectiva cibernética, o conjunto não se reduz aos seus componentes considerados isoladamente, é necessário conhecer o conjunto dos componentes e as relações criadas entre eles, as quais apresentam uma organização e uma história.

Em outras palavras, o ambiente não pode ser considerado à parte dos organismos, apenas como um espaço físico no qual vivem os seres vivos. Deve, por outro lado, ser visto como um contexto onde diferentes formas de vida se interpenetram em função das relações que estabelecem no tempo e no espaço. Como afirma Piaget "no campo da vida tudo está incessantemente em movimento, incluindo precisamente as estruturas particulares que se sucedem sem retorno no curso da evolução e contudo as grandes funções permanecem invariantes, o que constitui seu interesse central"[1].

Por mais que variem as formas de vida ela permanece essencialmente a mesma desde as bactérias até o ser humano, no sentido em que viver significa interagir, ou seja, mudar e modificar-se, quer no âmbito das relações organismo e meio ou sujeito e objeto.

Os seres vivos podem ser considerados sistemas semi-abertos, isto significa que apresentam um ceto fechamento capaz de garantir a manutenção do sistema e uma abertura, que se substancializa nos processos de trocas com o meio.
A conciliação entre o fechamento indispensável à manutenção do sistema e a abertura necessária às trocas resulta em organização cíclica, testemunhada por todas as manifestações vitais em todas as escalas.


O caráter cíclico, segundo Piaget, parece indispensável à permanência do sistema semi-aberto a fim de comportar mecanismos reguladores de retroalimentação (feedback) e é em particular necessário desde que a organização se prolongue em assimilação e acomodação. Assim, os mecanismos de feedback ajustam as trocas e as respostas dos organismos. Se através das trocas os organismos se modificam, estas modificações devem ser “controladas” pelas regulações internas, a fim de preservar ou manter as características fundamentais do sistema. Quando a vida acaba o organismo, de certa forma, mantém as trocas sem qualquer controle e através deste processo se decompõe. Nesse sentido, o conceito de vivo, por exemplo, opõe-se de imediato ao conceito de não-vivo, constituindo-se portanto num sistema total e circular.

O caráter necessariamente circular dos sistemas vivos caracteriza tanto a organização biológica quanto a organização cognitiva. O sistema conceitual apresenta elementos que se apóiam inevitavelmente uns nos outros ao mesmo tempo em que está aberto às trocas com o exterior.

Na perspectiva de Piaget, todo sistema de conhecimento é circular e sua extensão consiste apenas em alargar tanto quanto possível o domínio compreendido entre as fronteiras fazendo com que o progresso no desenvolvimento das ciências transforme o círculo em espiral pela seqüência infinita de alargamentos sucessivos. Sua teoria advoga, portanto, que o caráter circular do conhecimento se opõem à idéia de simples adição linear e evoca a noção de encaixe, na qual a parte se insere no conjunto de forma coerente, ou seja, uma assimilação requer uma estrutura apropriada e gera uma conseqüente acomodação, a qual gera uma nova estrutura a partir da precedente, que poderá assimilar novos conhecimentos, mudando novamente e se reestruturando, sucessivamente.

Uma das hipóteses diretivas de Piaget enfatiza que existem funções gerais comuns aos mecanismos orgânicos e cognitivos, mas também uma especialização progressiva das funções relacionadas a estes últimos. A formação ontogenética da inteligência comporta uma seqüência de estágios em que cada um começa por uma reconstrução, sobre um novo plano, das estruturas elaboradas no decurso do precedente. Cada reconstrução é necessária às construções posteriores, assim como acontece ao longo do desenvolvimento embrionário. Logo, os encaixes e reconstruções fazem com que os sistemas cognitivos se desenvolvam sempre no duplo sentido de uma diferenciação solidária a uma coerência crescente.

Assimilamos novos conhecimentos a partir de um determinado arcabouço conceitual, que estruturamos através da experiência individual, a qual sem dúvida está impregnada pelos outros. Como enfatiza Fazenda, mesmo quando se escreve um texto solitariamente nunca, em realidade, se está sozinho, pois estamos sempre acompanhados pelas teorias, ou melhor, pela leitura que fazemos das elaborações teóricas dos nossos autores prediletos[2].


O conhecimento resulta de processos interativos continuados, nos quais o sujeito e o meio se imbricam e modificam, qualificando-se mutuamente. Nesse sentido o meio se torna mais rico para o sujeito à medida que este último se torna mais perceptivo. Assim, um pescador certamente observa mais coisas no mar do que um banhista eventual, da mesma forma que os praticantes de vôo livre ao olharem para uma bandeira, não observam apenas o seu padrão, também vêem, no seu movimento, o sentido e a força do vento.

Este enriquecimento da capacidade perceptiva do homem através do desenvolvimento de um pensamento relacional não encontra equivalente nos demais animais. Os pesquisadores envoltos em testes sobre processos de abstração e generalização em animais salientam a raridade e o caráter rudimentar e imperfeito com que ocorrem. Para Cassirer, isso se deve ao fato de aos animais faltar um sistema de símbolos [3]. A definição do homem como um Animal symbolicum proposta por Cassirer visa destacar a diferença específica do ser humano para os outros animais. Para este filósofo, o mundo do homem não constitui exceção às regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos, mas apresenta uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana, que é a capacidade de simbolizar.
Pensando como Cassirer, veremos que o homem construiu um modo especial de adaptação ao meio através do seu sistema simbólico. Em confronto com os outros animais, o ser humano não vive apenas numa realidade mais vasta, mas numa nova dimensão dessa realidade. Ele já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico do qual fazem parte a linguagem, o mito, a arte e a religião.

A relação do Animal symbolicum com o meio é mediada pelos símbolos de forma que ele não tem mais acesso 'direto' à realidade, já não pode vê-la face a face. Em vez de lidar com as próprias coisas, o ser humano, em certo sentido, está constantemente conversando consigo mesmo, tanto na esfera teórica quanto na prática, pois ele vive entre emoções imaginárias, esperanças e temores, ilusões e desilusões.
A partir destes pressupostos, Cassirer enfatiza que a idéia de racionalidade não define o ser humano por completo, pois a razão é um termo pouco adequado para abarcar as formas da sua vida cultural em toda riqueza e variedade. Por seu turno, os conceitos e descrições que podemos obter através da biologia também são incapazes de abarcar toda nossa complexidade. De modo que devemos acrescentar certa imaterialidade à materialidade biológica do ser humano, se quisermos compreendê-lo mais. Esta imaterialidade possibilita a linguagem e a linguagem possibilita-nos desfrutar o mundo humano.

Nos sistemas biológicos a forma depende do funcionamento, pois se o funcionamento cessa a forma é destruída. Já o desenvolvimento da inteligência, para Piaget, se dá pela dissociação progressiva das formas e dos conteúdos, graças sobretudo à linguagem, até o aparecimento de uma lógica formal, a qual permite a constituição de uma lógica reflexiva ou axiomatizável, no sentido de ser independente de todo conteúdo ou objeto.



Um bom exemplo dessa independência entre a lógica e os objetos pode ser dado por Gleiser[4], que comenta o grande número de "universos de escrivaninha" desenvolvidos durante a década de vinte, a partir das equações da relatividade geral de Einstein. Para ele, ainda hoje, apesar dos enormes avanços tanto em cosmologia observacional, quanto na teoria de modelos cosmológicos, embora o número de possibilidades seja bem menor do que na década de vinte, não podemos decidir qual modelo, baseado em leis físicas bem conhecidas, melhor descreve nosso universo .
Os modelos matemáticos utilizados para responder questões sobre as quais não há possibilidades atuais de experimentação empírica são possíveis apenas ao pensamento lógico matemático, que busca a razão das coisas a partir do arcabouço teórico disponível.

Um modelo matemático, ao mesmo tempo em que tenta explicar, é uma fonte de novidades e descobertas de analogias interessantes, evidenciando que a natureza utiliza soluções semelhantes para processos aparentemente distintos. Gilbert[5] enfatiza que as reações bioquímicas presentes nos processos de diferenciação de amebas, que passam da reprodução assexuada para a sexuada criam um tipo de oscilador. Há fórmulas matemáticas para explicar estas reações de oscilação, capazes de predizer a forma espiral rotativa que as colônias de amebas assumem neste processo.

O interessante é que são as mesmas fórmulas matemáticas que explicam a formação de novas estrelas a partir de galáxias rotativas em espiral.
Diderot, escrevia em 1754, que a natureza parecia se comprazer em variar o próprio mecanismo em infinitas maneiras diferentes, como se ela só abandonasse um gênero de produções depois de ter multiplicado os indivíduos sob todas as formas possíveis. Observava que ao se considerar o reino animal era perceptível que devia haver um primeiro espécime, protótipo de todos os outros, não tendo a natureza mais do que alongado, encurtado, transformado, multiplicado ou obliterado certos órgãos.
Um pensamento semelhante ao de Diderot era partilhado por Thomas Huxley[6], que em 1895, escrevia sobre sua intensa satisfação e deleite ao ouvir as fugas de Bach, satisfação e deleite que se repetiam freqüentemente na maioria de suas questões sobre morfologia, onde via que um mesmo tema básico era reencontrado numa infinidade de variações, sempre reaparecendo e sempre nos relembrando da unidade na variação.

Num mesmo sentido, em sua busca da compreensão do desenvolvimento cognitivo, Piaget[7] recorreu às analogias entre as funções cognitivas e a organização biológica. Ressaltou que há uma analogia notável entre a organização viva e as funções cognitivas em relação à sua capacidade de abarcar um fluxo contínuo de objetos e acontecimentos variáveis. Assim como a vida necessita de um fluxo contínuo de matéria e energia, todos os sistemas de conceitos necessitam de um pensamento em interação com circunstâncias ou problemas novos, os quais asseguram a circulação contínua no conteúdo das idéias.

Isto leva a interpretar que não é possível alguém se tornar inteligente independentemente dos outros e do contexto em que vive, pois os mecanismos cognitivos, assim como as estruturas biológicas, resultam de processos contínuos de adaptação ao meio. Os seres vivos são essencialmente o resultado da interação entre sua herança biológica e o meio, contudo não se pode precisar a influência individual de cada um destes componentes no seu desenvolvimento integral, pois isto é bastante relativo, podendo variar muito de um caso a outro.

Ao expressar-se dizendo que existem entre o organismo e o meio interações tais que os dois tipos de fatores apresentam uma importância igual e permanecem indissociáveis, Piaget não estava definindo que cada um contribuiria com cinqüenta por cento para a produção do fenótipo, mas sim que não se pode reduzir toda a causalidade a apenas um deles.

Este posicionamento reveste-se de significação para uma reflexão acerca de pesquisas sobre o homem, entre as quais estão as descobertas do seqüenciamento de genes dos cromossomos e as novas técnicas investigativas que permitem fotografar o cérebro humano em plena ação. Estes dois campos de investigação têm gerado um aporte de conhecimento, quase impossível de digerir, em todos os níveis, desde a química da célula até a do organismo no seu conjunto e, em particular, a do cérebro.
Segundo Steven Rose[8], os dados ultrapassam em muito a teoria fazendo com que grupos de pesquisadores, partidários, ou não, de sistemas de interpretações antagônicos, lutem para dar sentido a um excesso de informação que quase inibe o raciocínio. Rose alerta para o perigo que os progressos marcantes na informação têm trazido, como, por exemplo um posicionamento filosófico que se pode chamar de neurogenética.

A neurogenética que atribui aos genes poder causal, ou seja se uma pessoa tiver um gene de violência será violenta, se tiver um gene se consumismo será consumista. Nesse sentido, ao constituir-se como uma nova área da Biologia ela acenaria com a expectativa de identificar os genes que afetam o cérebro e o comportamento para modificá-los, quando for o caso. Desse modo, este posicionamento reducionista transfere as causas de nossos sofrimentos, virtudes e vícios à nossa constituição biológica e sua solução passaria mais pela farmacologia e engenharia molecular do que pela sociologia ou política.

Este mesmo olhar lançado sobre a escola reforçaria os modelos mais perversos de exclusão e discriminação, pois se trata de uma ideologia que enfatiza a responsabilidade pessoal do indivíduo em função de sua constituição biológica sem levar em conta o ambiente. "O aluno que não aprende" voltaria à cena com toda força, como a causa fundamental do fracasso escolar.

Não há como questionar a existência de genes ligados ao comportamento, mas não é possível atribuir-lhes toda a determinação fenotípica, nem ficar preso à dicotomia de que os problemas são ou sociais ou biológicos, pois a existência humana, como enfatizam os modelos interacionistas, é, inexoravelmente, sempre o resultado de uma interação entre o biológico e o social.

As explicações e soluções adequadas para os problemas humanos devem envolver múltiplos aspectos. Neste contexto se insere a educação como um dos elementos centrais, que deve por um lado se alimentar e por outro provocar constantes reflexões sobre a ciência e o conhecimento científico.

A reflexão sobre o conhecimento produzido deve ter sempre em conta a subjetividade de sua produção, pois cada investigador está imerso num mundo simbólico. Como enfatiza Rose, os deterministas neurogenéticos afirmam que o social tem seu peso, mas, para eles, em última instância, os determinantes são biológicos. Este debate não é novo, tendo ocorrido repetidamente desde os tempos de Darwin, e mais recentemente nos anos 70 e 80, como polêmicas sobre os poderes explanatórios da sociobiologia, envolvendo diversos autores. A novidade agora é o modo pelo qual a mística da nova genética é vista como fortalecedora do argumento reducionista.
 

O determinismo neurogenético, em resumo, advoga a relação causal direta entre gene e comportamento, de modo que um homem é homossexual porque tem um cérebro gay, produto de um gene gay, uma pessoa se deprime porque tem genes de depressão. Diz-se até que podem existir genes responsáveis pela "compulsão consumista". Reduzem-se os complexos fenômenos sociais através de interpretações simplistas como 'causados por', 'explicados por' ou 'nada mais que' efeitos de programas biológicos com base no cérebro ou nos genes (Rose, 1997).

Há evidências de que muitas diferenças comportamentais entre homens e mulheres são inatas e não decorrentes do condicionamento social. Todavia tais diferenças são pequenas e só podem ser reconhecidas quando são comparadas com as médias de ambos os grupos. A maioria dos trabalhos nessa área, no entanto, enfoca como a biologia afeta o comportamento, mas negligencia a influência do comportamento nos processos biológicos (Montes ; Caldini ; Caldini Jr., 1997[9]).

O reducionismo é fruto de um olhar que se dirige a um único ponto de uma só direção, de uma fragmentação que se esquece do conjunto e quer explicá-lo pela parte.

A particularização na investigação científica é uma necessidade, por este motivo, arcabouços teóricos desenvolvidos por autores como Piaget, nos quais haja a ultrapassagem dialética da dualidade genoma e meio, por exemplo, são necessários para evitar reducionismos acerca de problemas mais gerais do desenvolvimento humano.
A crítica de Rose ao determinismo neurogenético é bastante contundente ao alertar que as generalizações e imprecisões em artigos sobre os comportamentos humanos não seriam aceitas no contexto de estudos sobre comportamento animal. O autor analisa artigos sobre "comportamentos humanos anormais" e afirma que se tivesse feito generalizações comparativamente grosseiras com base em dados tão insuficientes em seu estudo sobre memória de pintos de um dia, o artigo seria imediatamente rejeitado!

A biologia, como qualquer outra ciência, não lida com fatos, mas com evidências. O mais fraco tipo de evidência é o tipo correlativo, onde relações entre eventos distintos são estabelecidas, existindo apenas uma inferência de que um esteja vinculado ao outro. Gilbert (1994) cita um artigo escrito com uma certa dose de humor por Sies, o qual demonstrava que havia uma boa correlação entre o número de cegonhas, vistas na Alemanha Ocidental de 1965 a 1980 e o número de bebês nascidos naqueles mesmos anos. O ponto crucial que estes autores queriam enfatizar é que por melhor que seja uma correlação, a ocorrência simultânea de dois eventos pode ser mera coincidência.

Nesse sentido, Rose (1997) ataca duramente um trabalho de Hans Brunner e colaboradores, que descreve diferentes ações tais como explosões agressivas, incêndio proposital, tentativa de estupro e exibicionismo, realizadas por indivíduos residentes em diferentes partes do país e em diferentes ocasiões, ao longo de três gerações, agrupando-as sob o mero rótulo de agressão e associando-as a uma mutação de ponto num gene. Sua crítica enfatiza que, apesar da grande imprecisão, este tipo de artigo tornou-se parte do arsenal de argumentos empregados por programas contra a violência, patrocinados com verba pública, nos Estados Unidos.


Quando partimos da perspectiva interacionista de Piaget, não é possível buscar a causa do comportamento humano num dos pólos da interação, pois a causa não está nem no indivíduo, nem no meio, mas nas ações do sujeito que responde às resistências do meio, modificando ativamente suas estruturas.

De acordo com Rose não é possível negar a necessidade de terapias medicamentosas, pois, comprovadamente, são eficientes para alguns indivíduos. Mudanças na quantidade de alguns hormônios[10] ou neurotransmissores[11], ou ainda certas respostas neurofisiológicas podem ser relacionadas aos comportamentos agressivos, mas não se pode direcionar toda a busca de soluções num único sentido. Nem sempre as mudanças neurofisiológicas são aa causadoras das ações dos indivíduos sobre o meio, algumas vezes elas podem ser a sua conseqüência. Por exemplo, quando temos dor de dente, pode ser que possamos aliviá-la tomando uma aspirina, mas isso não significa que a causa da dor de dente seja uma baixa quantidade de aspirina no cérebro.

Os processos vitais não são lineares. Não é possível pensar que um gene determine um comportamento sendo apenas modulado pelo meio. Nem todo portador do gene do alcoolismo se torna alcoolista. Mas quando alguém se torna alcoolista quem determina este fenótipo o gene ou a ação do sujeito? Já que não existem indivíduos meio-alcoolistas, como se pode falar que o meio apenas modula este comportamento?
A informação científica obtida a partir da investigação biológica é essencial, mas a vida não se resume a ela.

Da mesma forma que não se pode reduzir o significado de um texto à química da tinta e do papel em que está escrito ou às formas gramaticais usadas, nem mesmo às idéias do autor, pois para que haja significado é preciso também um leitor. A tinta e o papel são necessários à escrita do texto, mas não são suficientes para determinar o seu significado, pois este depende da interação entre quem escreve e quem lê, em como foi escrito e como está sendo lido.

O potencial positivo do aporte de conhecimentos produzidos na genética e neurologia está relacionado a uma interpretação dialética dos fenômenos complexos de interações entre organismo e meio, indivíduo e sociedade, sujeito e objeto, que devem compor a problematização do conceito de meio.

Um bom método para escapar da visão unilateral das causas das ações humanas, usado por Piaget, é buscar paralelos entre as relações organismo e meio, próprias dos processos vitais mais gerais, e as relações sujeito e objeto, específicas do desenvolvimento cognitivo, analisando a coerência das explicações biológicas quando transpostas para o segundo caso e vice-versa.

Em biologia não existe ação sem interação e toda interação modifica o organismo, exigindo regulações, não havendo, portanto, unidirecionalidade, ou seja um organismo não é capaz de modificar o meio sem modificar-se. Da mesma forma, o sujeito do conhecimento não consegue simplesmente agir sobre os objetos sem que esta ação lhe afete, pois está, assim como qualquer organismo vivo, imerso em um complexo sistema de trocas através das quais assimila e se acomoda continuamente.
Quando Piaget aceita o argumento de Lamarck de que a função cria o órgão, ele quer sublinhar o fato de que um funcionamento reforça o desenvolvimento.

Em nível fenotípico, a função pode efetivamente ser essencial para a construção de um órgão: Vários exemplos reforçam a idéia de que há uma adaptação evolutiva da retina em função das necessidades ecológicas das espécies. Ao analisar a estrutura da retina de duas espécies de bicho preguiça, pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, observaram, numa das espécies, um arranjo celular muito incomum. Estes animais apresentam um elevado nível de especialização, adaptado a uma vida essencialmente arborícola. O padrão incomum de organização da retina observado, sugere que, dependendo da forma como se posicionam, deslocam e, conseqüentemente, focalizam o olhar, faz variar a estrutura. Indicando que o olhar determina o olho (Costa et al., 1988)[12].

Da mesma forma, um ginasta ao se exercitar não está desenvolvendo apenas sua massa muscular, também estará desenvolvendo ou reforçando redes neurais no cerebelo[13] e no córtex cerebral[14] para uma maior coordenação dos movimentos, bem como, para adquirir uma maior consciência sobre seu próprio corpo e o ato do movimento no espaço, entre outras coisas. Portanto, uma mesma ação gera múltiplas conseqüências, que não podem ser consideradas isoladamente.

A biologia não é suficiente para explicar todo o desenvolvimento cognitivo, uma vez que o pensamento parte de estruturas imanentes à organização vital, mas faz uma reconstrução das mesmas no plano que lhe é próprio, prolongando e enriquecendo-as infinitamente. Tais reconstruções não são acidentais, pelo menos em sua totalidade.
Ao estabelecer uma continuidade entre os processos vitais e o desenvolvimento cognitivo, Piaget também estabelece uma continuidade entre as explicações destes processos. Por este motivo, foi incansável em sua oposição à interpretação do mutacionismo clássico, o qual julga serem os caracteres da Espécie, apenas uma coleção de acidentes sobrepostos aos caracteres do Gênero e estes igualmente em relação à Família e, sucessivamente, para todas as categorias taxonômicas. Ele enfatiza que esta maneira de pensar tornou-se insuportável para o seu espírito pelo menos sob a sua forma exclusiva.

De acordo com a perspectiva cibernética que Piaget utilizou no livro “Biologia e Conhecimento”, o genoma determina apenas em parte a formação do fenótipo, pois ele sempre dependerá das formas de interação do organismo com o meio, as quais, por sua vez, dependem da história evolutiva da espécie.

Piaget criticou duramente o mutacionismo clássico porque ele refletia uma postura atomística, capaz de analisar cada gene em separado sem considerar o genoma de forma integral. Pois mesmo ao considerarmos apenas o genoma veremos que ele é dotado de uma estrutura e funcionamento próprios, que regulam a expressão gênica.

A mesma crítica pode ser estendida aos “neurogeneticistas”, que também analisam os genes como unidades particulares e independentes, conferindo-lhes amplos poderes de determinação de características complexas do comportamento humano.
As analogias entre o funcionamento orgânico e o desenvolvimento cognitivo que permeiam a obra de Piaget, sugerem a importância das pesquisas biológicas para a compreensão do ser humano.

Devemos evitar o reducionismo das explicações propostas pelos neurogeneticistas, pois o potencial de má-aplicação dos conhecimentos produzidos nessa área é substancial e perturbador.

A busca da compreensão sobre o que significa ser humano é essencial para a educação e não pode se restringir aos estudos específicos de áreas como a biologia ou sociologia. Os dados que se consegue obter, por mais criteriosa que seja a investigação, exigem uma análise ampla que não fuja da reflexão filosófica. Como salienta Diderot, “os homens quase não percebem quão severas são as leis da investigação da verdade e quão limitado é o número de nossos meios. Tudo se reduz a ir dos sentidos à reflexão e da reflexão aos sentidos: entrar e sair de si incessantemente”[15]. Para ele, o vasto circuito das ciências é como um grande terreno, semeado de lugares obscuros e claros, onde o trabalho do filósofo deve ter por fim estender os limites dos lugares claros ou multiplicar, no terreno, os centros de luzes. Para tanto, é preciso que a observação da natureza seja assídua, a reflexão seja profunda e a experiência seja exata.

Mesmo passados mais de duzentos anos das reflexões deste filósofo, seus conselhos, ainda, se revestem de grande valia para o estabelecimento do rigor científico nas pesquisas atuais. Temos limitadas e insuficientes respostas sobre o comportamento humano e as interpretações reducionistas demonstram poucas possibilidades para enfrentar problemas complexos como este.

Para fugir das explicações de natureza simplista e buscar a reflexão teórica, necessária ao progresso das ciências, devemos realizar uma vigilância epistemológica constante, tendo consciência de que os meios de que dispomos para investigação são imprecisos e portanto não podemos nos iludir com falsas certezas, pois como “poetizou” Fernando Pessoa16]

“Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro”.

Ao tomarmos consciência do nevoeiro de incertezas que ainda nos aprisiona e nos faz sentirmos perplexos, andaremos com maior cuidado em direção à compreensão da complexidade e das possibilidades dos sujeitos da educação.

Notas e Referências:
[1] PIAGET, Jean. . [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978, p.140.
[2] FAZENDA, Ivani. A pesquisa como instrumentalização da prática pedagógica. In : FAZENDA, Ivani (Org.) Novos enfoques da pesquisa educacional. São Paulo : Cortez, 1992.
[3] CASSIRER, Ernest [1944]. Ensaio sobre o homem : introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo : Martins Fontes ltda, 1997.
[4] GLEISER, Marcelo. A dança do Universo: dos mitos de criação ao Big-Bang. São Paulo : Schwarcz, 1997.
[5] GILBERT, Scott F. Biologia do Desenvolvimento, São Paulo : Sociedade Brasileira de Genética, 1994.
[6] Citado por Gilbert (1994).
[7] Biologia e conhecimento.
[8] ROSE, Steven. A perturbadora ascensão do determInismo neurogenético. Ciência Hoje São Paulo, v. 21, n. 126, p. 18-27, 1997.
[9] MONTES, Gregorio S.; CALDINI, Élia G. ; CALDINI Jr., Nelson. A homossexualidade masculina tem causas biológicas? Ciência Hoje São Paulo, v. 22, n. 128, p. 52-59, 1997.
[10]Hormônio - do grego hórmon, part. pres. de hormáo ‘excitar’ + io, segundo Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
[11] Neurotransmissor: substância secretada nos terminais sinápticos que desencadeia mudanças elétricas no neurônio receptor. A transmissão do impulso nervoso é eletro-química. O impulso no interior do neurônio é elétrico, mas a transmissão do impulso a outro neurônio, através do espaço sináptico, necessita dessas moléculas chamadas neurotransmissores. Nas diferentes regiões cerebrais, os neurotransmissores podem variar em tipos e efeitos.
[12] COSTA, Belmira L.S.A. et al. Estudo da preguiça mostra como o olhar determIna o olho Ciência Hoje São Paulo, v. 7, n. 39, p. 8-9, 1988.
[13] Cerebelo: lóbulo da porção cefálica do sistema nervoso dos vertebrados que tem participação ativa na regulação fina da atividade muscular.
[14] Córtex cerebral: é o sistema de camadas de neurônios que recobre os hemisférios cerebrais. O córtex cerebral humano tem cerca de 6mm de espessura.
[15] DIDEROT, Denis.[1754] Da interpretação da natureza e outros escritos. São Paulo : Iluminuras - Proj e Prod. Editoriais Ltda, 1989, p 35.
[16] PESSOA, Fernando. 1. Mensagem. Porto : Contexto, 1995, p.69.

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