06 outubro, 2007

A percepção do mundo

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Quando alguém se olha num espelho, vê muito mais do que uma forma física, vê também uma história, um passado e uma perspectiva de futuro, porque o olhar não se limita às estruturas neurológicas envolvidas.

Numa abordagem mais técnica, Maturana[1] define a percepção do mundo pelo sistema nervoso, como um processo circular. Explica que, quando damos um nome a uma cor, estamos nos referindo a um estado de atividade da retina e não ao objeto em si, pois o mesmo nome de cor, pode ser atribuído para objetos diferentes.
 

O olhar não se limita à estrutura do olho e dos neurônios do córtex visual onde a imagem é formada, nosso olhar, envolve também a interpretação das imagens. Isto pode ser observado em experiências de inteligência artificial, nas quais, redes neuronais podem ser simuladas em computadores.
 

Investigando a vocalização de uma palavra escrita, Hiton[2] e colaboradores verificaram que, as lesões simuladas na rota semântica da interpretação, levavam o computador a “ler” errado. Os erros cometidos, se assemelhavam muito, aos observados em pessoas que sofreram determinadas lesões cerebrais. Através dessa experiência, os autores evidenciaram a importância da decodificação semântica da imagem da palavra escrita, para que haja a fonação correta. Assim, para que a palavra “gato” fosse lida corretamente, os neurônios que agregam a esta palavra conceitos como quatro patas, peludo, mamífero, entre outros, precisavam estar intactos. Quando eram simuladas lesões nesses neurônios, a palavra “gato” era, freqüentemente, pronunciada como “água”. A confusão se devia à grande semelhança morfológica entre as palavras “gato” e “gota”, que eram confundidas, levando a uma terceira interpretação. Os autores relatam, também, um caso de dislexia grave, no qual, uma pessoa pronunciava “orquestra”, ao ler a palavra “simpatia”, porque morfologicamente ela se assemelha muito a “sinfonia”.
 

Damásio[3] esclarece que cada conjunto das áreas sensoriais se comunica com uma série de regiões interpostas, de modo que a comunicação entre os setores de entrada de estímulos[4] e os de saída, não é direta, mas mediada por uma arquitetura complexa de neurônios interligados. A atividade destas redes neurais interligadas constrói e manipula as imagens da mente. Com base nessas imagens interpretamos os estímulos apresentados aos córtices[5] sensoriais iniciais, de modo a organizá-las na forma de conceitos. Não “sabemos” ver sem conceituar o que é visto, logo não há percepção “pura”, pois estamos sempre interpretando os estímulos. Ao interpretar usamos razão e emoção de forma que não apenas definimos como também qualificamos o mundo, que somos capazes de assimilar.
 

O conceito de filtragem que utilizo se refere, portanto, ao processo consciente de assimilação do meio mediado por filtros simbólicos, os quais possibilitam o acesso ao objeto ao mesmo tempo em que se interpõe ao objeto em si.
 

A concepção de ser humano que temos dá forma e sentido à nossa auto-imagem. Ou seja, quando nos olhamos num espelho, vemos muito mais do que uma forma física. Vemos também uma história, um passado e uma perspectiva de futuro.
 

Através da educação pode-se modificar a concepção de homem, de forma que não nos vejamos mais como entidades discretas, mas como parte do nosso meio, como seres cujos limites se estendem para além dos constituintes anatômicos e fisiológicos.
 

Precisamos nos perceber como sujeitos imersos em teias de relacionamento social, para entendermos que o ambiente a ser preservado não pode se restringir às matas, rios e animais selvagens, também é preciso preservar os seres humanos, estabelecendo relações sociais harmoniosas entre os indivíduos.
 

Segundo Jacquard[6], a educação deve revelar a um filho de homem a sua qualidade de homem, ensiná-lo a participar na construção da humanidade e, para tal incitá-lo a tornar-se o seu próprio criador saindo de si mesmo para poder ser um sujeito que escolhe o seu percurso e não um objeto que assiste submisso à sua própria produção.
 

Para isso não podemos ficar restritos à mera transmissão de um saber ou de um costume, precisamos, além da informação necessária engendrar um meio que possibilite novas estruturas de pensamento e novas descobertas. Precisamos contribuir para construção de conceitos que possibilitem o entendimento e utilização dos conhecimentos científicos no sentido de construirmos uma vida que seja mais equilibrada, possível e digna.
 

De acordo com Zemelman[7], precisamos criar categorias que permitam ao indivíduo relacionar-se com a realidade, transcendendo os limites da teoria e articulando a dimensão estritamente cognitiva e passível de ser analisada com a dimensão mais vaga ou gnoseológica, que está presente no indivíduo concreto. Ele enfatiza que:

"estamos cada vez más en presencia del desafio de articular lenguajes, lo que no solamente és una cuestión epistémica, própria del plano de construcción del conocimiento, sino también de la própria enseñanza. Es decir, que no solamente se tiene que trabajar com los lenguajes analíticos, sino saber articular los linguagens simbólicos que nos muestran realidades diferentes. Lukács, por ejemplo, en su Estética, observo que el languaje simbólico podría dar cuenta de realidades latentes, que él llamó potenciales, de manera mucho más clara y profunda que el languaje analítico, pero si a traves de una conjunción de lenguajes. Constituye un desafio que no tengo para nada claro, pero que és parte del médio de enriquecer la capacidad del indivíduo para apropriarse de su realidad. Lo que supone tener que abordar las mediaciones que hay entre conocimiento disciplinario y lo que podríamos definir como el comportamiento de los indivíduos; todo lo cual podemos sintetizar en la idea de mundo de vida, como expresión del complejo universo en que está inserto el indivíduo concreto"(1994 p. 27-28).

Ao problematizar o conceito de meio e abordar a filtragem do mundo, busco contribuir para elaboração de propostas pedagógicas que promovam a reintegração dos seres humanos ao seu ambiente numa perspectiva que vá além de experiências práticas normalmente identificadas como educação ambiental, pois, embora tais experiências sejam muito importantes, não se pode confundi-las com toda a dimensão da educação ambiental. A fim de explorarmos todas as dimensões deste processo, necessitamos buscar uma compreensão maior sobre nós mesmos.


Notas e referências:
[1] MATURANA, Humberto R. Conhecer o conhecer. In : MAGRO, Cristina ; SANTAMARIA, Ricardo ; FERNANDES, Matías. Entrevista Ciência Hoje. São Paulo, v. 14, n.184, p. 44-49, 1992.
[2] HITON, Geoffrey E. ; PLAUT, David C.; SHALICE, Tim. Simulación de lesiones cerebrales. Investigación y Ciencia. Barcelona, n. 207, p. 54-61, dic., 1993.
[3] DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes : emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.
[4] Estímulo: diferentes sinais passíveis de serem captados e interpretados pelo sistema nervoso dos seres vivos. Sua natureza pode ser química, física, elétrica, etc.
[5] Plural de córtex, Córtex cerebral: é o sistema de camadas de neurônios que recobre os hemisférios cerebrais. O córtex cerebral humano tem cerca de 6mm de espessura.
[6] JACQUARD, Albert. A herança da liberdade: da animalidade à humanitude. 1ed. Lisboa : Publlicações Dom Quixote, 1988.
[7] ZEMELMAN, Hugo. El actual momento histórico y sus desafios. In : Cadernos ANPED. Belo Horizonte, n.6, p. 7-28, out.,1994.

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