Coube a Piaget o trabalho de síntese entre as contraditórias visões do primado darwiniano do organismo versus primado lamarckiano do meio, concedendo a ambos papéis de igual relevância tanto na evolução, quanto na seleção de novas variantes.
Embora não tenha se notabilizado como biólogo, essa formação básica afetou o olhar de Piaget sobre o desenvolvimento da inteligência, levando-o a buscar, na Biologia, uma maior compreensão desse processo. Por outro lado, através desta busca ele produziu um novo olhar sobre a Biologia, em especial, sobre os processos de desenvolvimento dos indivíduos e evolução das espécies.
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A partir da década de sessenta Piaget publicou trabalhos enfatizando que a noção de evolução biológica deve comportar constantes revisões dialéticas, que questionem as visões clássicas do darwinismo de primado do organismo ou do lamarckismo de primado do meio, concedendo a ambos papéis de igual relevância nos processos evolutivos, tanto na proposição quanto na seleção de novas variantes.
Os organismos escolhem assim como transformam o meio através de seu comportamento. Ao selecionar um meio, o organismo, interage com ele, modificando-o à medida que retira do mesmo os elementos necessários à sua sobrevivência como alimentação, por exemplo, e acrescenta ao meio os elementos provenientes do seu próprio metabolismo. Por seu turno, ao ser modificado, o meio passa a exercer diferentes pressões seletivas sobre os organismos, para as quais se exigirão novas respostas. Algumas destas novas respostas podem redundar em mudanças nas freqüências genotípicas[1] das populações[2]. Desse modo há sempre um processo seletivo recíproco permeando as interações entre os organismos e o meio.
A interpretação desses fatos requer o estabelecimento de uma síntese não como uma reunião linear mas sim circular, que respeita simultaneamente a integridade do genoma e sua dependência ao meio. Não se trata, para Piaget , de uma simples tentativa de completar as lacunas recíprocas tanto da visão construída a partir da teoria de Darwin ou da teoria de Lamarck, para assumir uma posição intermediária, pois julga necessário ir além. Nesse sentido, sua concepção, por privilegiar as interações entre organismo/meio, se caracteriza, como uma ultrapassagem dialética de ambas.
Ao propor esta interpretação, na época em que o fez, Piaget se colocou corajosamente numa posição de enfrentamento ao neodarwinismo clássico, o qual se impunha como o "fiel da balança" na hora de classificar um pensamento como "sério" ou "aventureiro". Com larga experiência e descobertas pioneiras sobre o desenvolvimento da inteligência na criança, Piaget também se posicionou contra o mutacionismo clássico, por este conceber o genoma como uma coleção de pequenas partículas que contêm todo o futuro e são perturbadas por variações repentinas, cujos resultados são imprevisíveis, ou seja, onde toda a novidade se deve ao acaso.
Tal posicionamento deve ter encontrado enorme resistência, durante as décadas de sessenta e setenta, quando publicou seus textos sobre biologia e conhecimento. Piaget classificou sua obra "O comportamento, motor da evolução", escrita em 1976[3], como "imprudente" (p.166), porque se contrapunha a idéia de que o acaso e a seleção fossem suficientes para determinar todo o processo evolutivo e concedia ao comportamento um papel fundamental neste processo. Ele insistia na continuidade entre os processos vitais e os cognitivos e na necessidade de abordar o genoma como uma estrutura organizada, resultante de uma evolução, que apresenta uma organização e funcionamento, transmitidos e conservados, ou seja, um dinamismo, que se mantém como tal porque nunca deixa de funcionar.
Atualmente, sua ênfase na equivalência das influências do meio e do organismo nos processos evolutivos, já não se apresenta como "desconcertante" e, pelo contrário, oferece um paradigma adequado à interpretação de certos eventos desvendados pelos avanços tecnológicos, que permitiram, ao longo do tempo, uma melhor análise de certas estruturas biológicas, como, por exemplo, os genes reguladores[4].
O conjunto de paralelismos ou correspondências de problema a problema ou de doutrina a doutrina encontrados no campo da interpretação das relações entre organismo/meio e sujeito/objeto é, para Piaget, impressionante. Salienta que é possível constatar que esses paralelismos se tornam cada vez mais estreitos, com os progressos das pesquisas, não porque os domínios das pesquisas tendam a confundir-se – pelo contrário, são cada vez mais diferenciados – mas porque os modos de explicação e a própria maneira de colocar os problemas convergem cada vez mais em virtude do parentesco desses problemas.
Desse modo, uma vez que há uma continuidade entre os processos biológicos mais gerais e o desenvolvimento cognitivo, a análise de algumas descobertas no campo da genética e suas conseqüentes reformulações teóricas, as quais mudaram as concepções sobre as relações entre organismo e meio, além de evidenciar a coerência do pensamento piagetiano, nos possibilitarão uma maior compreensão da sua teoria construtivista.
Notas e referências:
[1] Referente ao genótipo que é o conjunto da informação genética de um indivíduo. Em um sentido mais restrito se refere aos alelos presentes em um loco.
[2] O termo populações, em biologia, se refere aos grupos de indivíduos de uma mesma espécie que vivem num mesmo local, relativamente separados dos outros grupos da mesma espécie.
[3] Piaget, Jean. Comportamento, motriz da evolução Porto/Portugal : RÉS Ed., 1976.
[4] Seqüência do DNA relacionada à regulação, e a síntese de proteínas que participam dos processos regulatórios da transcrição da informação genética do DNA para o RNA. Em termos gerais é o gene cuja função primária é controlar a síntese dos produtos de outros genes.
palavras-chave: evolução, desenvolvimento, organismo, meio, inteligência, seleção, Piaget
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