09 outubro, 2007

A percepção do ambiente a partir de Piaget

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Coube a Piaget o trabalho de síntese entre as contraditórias visões do primado darwiniano do organismo versus primado lamarckiano do meio, concedendo a ambos papéis de igual relevância tanto na evolução, quanto na seleção de novas variantes.

Embora não tenha se notabilizado como biólogo, essa formação básica afetou o olhar de Piaget sobre o desenvolvimento da inteligência, levando-o a buscar, na Biologia, uma maior compreensão desse processo. Por outro lado, através desta busca ele produziu um novo olhar sobre a Biologia, em especial, sobre os processos de desenvolvimento dos indivíduos e evolução das espécies.

De Blogpaedia
O desenvolvimento dos indivíduos interessava a Piaget para entender o funcionamento cerebral que embasa o nascimento e a estruturação da inteligência. Já através das teorias evolutivas ele buscava entender os processos de desenvolvimento e transformação da inteligência, por entender que as leis que regem estes fenômenos devem ser semelhantes. Porém, ao se debruçar sobre as explicações biológicas ele já dispunha de um longo processo de observação e de investigação da Psicologia do conhecimento, que lhe mostravam que tanto o meio quanto o sujeito eram protagonistas nos processos de desenvolvimento da inteligência, não sendo possível identificar maior importância em um ou outro. Assim, cada indivíduo reflete o resultado de um processo de interação entre o organismo e o ambiente físico ou social. Quando partimos do mesmo ponto de vista, passamos a interpretar o ambiente, não como um lugar ou espaço em que nos encontramos, mas como parte de nós mesmos.

A partir da década de sessenta Piaget publicou trabalhos enfatizando que a noção de evolução biológica deve comportar constantes revisões dialéticas, que questionem as visões clássicas do darwinismo de primado do organismo ou do lamarckismo de primado do meio, concedendo a ambos papéis de igual relevância nos processos evolutivos, tanto na proposição quanto na seleção de novas variantes.

Os organismos escolhem assim como transformam o meio através de seu comportamento. Ao selecionar um meio, o organismo, interage com ele, modificando-o à medida que retira do mesmo os elementos necessários à sua sobrevivência como alimentação, por exemplo, e acrescenta ao meio os elementos provenientes do seu próprio metabolismo. Por seu turno, ao ser modificado, o meio passa a exercer diferentes pressões seletivas sobre os organismos, para as quais se exigirão novas respostas. Algumas destas novas respostas podem redundar em mudanças nas freqüências genotípicas[1] das populações[2]. Desse modo há sempre um processo seletivo recíproco permeando as interações entre os organismos e o meio.

A interpretação desses fatos requer o estabelecimento de uma síntese não como uma reunião linear mas sim circular, que respeita simultaneamente a integridade do genoma e sua dependência ao meio. Não se trata, para Piaget , de uma simples tentativa de completar as lacunas recíprocas tanto da visão construída a partir da teoria de Darwin ou da teoria de Lamarck, para assumir uma posição intermediária, pois julga necessário ir além. Nesse sentido, sua concepção, por privilegiar as interações entre organismo/meio, se caracteriza, como uma ultrapassagem dialética de ambas.

Ao propor esta interpretação, na época em que o fez, Piaget se colocou corajosamente numa posição de enfrentamento ao neodarwinismo clássico, o qual se impunha como o "fiel da balança" na hora de classificar um pensamento como "sério" ou "aventureiro". Com larga experiência e descobertas pioneiras sobre o desenvolvimento da inteligência na criança, Piaget também se posicionou contra o mutacionismo clássico, por este conceber o genoma como uma coleção de pequenas partículas que contêm todo o futuro e são perturbadas por variações repentinas, cujos resultados são imprevisíveis, ou seja, onde toda a novidade se deve ao acaso.

Tal posicionamento deve ter encontrado enorme resistência, durante as décadas de sessenta e setenta, quando publicou seus textos sobre biologia e conhecimento. Piaget classificou sua obra "O comportamento, motor da evolução", escrita em 1976[3], como "imprudente" (p.166), porque se contrapunha a idéia de que o acaso e a seleção fossem suficientes para determinar todo o processo evolutivo e concedia ao comportamento um papel fundamental neste processo. Ele insistia na continuidade entre os processos vitais e os cognitivos e na necessidade de abordar o genoma como uma estrutura organizada, resultante de uma evolução, que apresenta uma organização e funcionamento, transmitidos e conservados, ou seja, um dinamismo, que se mantém como tal porque nunca deixa de funcionar.

Atualmente, sua ênfase na equivalência das influências do meio e do organismo nos processos evolutivos, já não se apresenta como "desconcertante" e, pelo contrário, oferece um paradigma adequado à interpretação de certos eventos desvendados pelos avanços tecnológicos, que permitiram, ao longo do tempo, uma melhor análise de certas estruturas biológicas, como, por exemplo, os genes reguladores[4].

O conjunto de paralelismos ou correspondências de problema a problema ou de doutrina a doutrina encontrados no campo da interpretação das relações entre organismo/meio e sujeito/objeto é, para Piaget, impressionante. Salienta que é possível constatar que esses paralelismos se tornam cada vez mais estreitos, com os progressos das pesquisas, não porque os domínios das pesquisas tendam a confundir-se – pelo contrário, são cada vez mais diferenciados – mas porque os modos de explicação e a própria maneira de colocar os problemas convergem cada vez mais em virtude do parentesco desses problemas.

Desse modo, uma vez que há uma continuidade entre os processos biológicos mais gerais e o desenvolvimento cognitivo, a análise de algumas descobertas no campo da genética e suas conseqüentes reformulações teóricas, as quais mudaram as concepções sobre as relações entre organismo e meio, além de evidenciar a coerência do pensamento piagetiano, nos possibilitarão uma maior compreensão da sua teoria construtivista.


Notas e referências:
[1] Referente ao genótipo que é o conjunto da informação genética de um indivíduo. Em um sentido mais restrito se refere aos alelos presentes em um loco.
[2] O termo populações, em biologia, se refere aos grupos de indivíduos de uma mesma espécie que vivem num mesmo local, relativamente separados dos outros grupos da mesma espécie.
[3] Piaget, Jean. Comportamento, motriz da evolução Porto/Portugal : RÉS Ed., 1976.
[4] Seqüência do DNA relacionada à regulação, e a síntese de proteínas que participam dos processos regulatórios da transcrição da informação genética do DNA para o RNA. Em termos gerais é o gene cuja função primária é controlar a síntese dos produtos de outros genes.

palavras-chave: evolução, desenvolvimento, organismo, meio, inteligência, seleção, Piaget

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