07 outubro, 2007

Percepção de Mundo e Educação do Olhar

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Assim como a beleza de uma obra musical não se restringe à qualidade da partitura, instrumentos e músicos, mas também à percepção de quem a ouve, olhar o mundo não se limita à visão, pois envolve algo mais do que os sentidos.


A leitura como interpretação é a capacidade de reconstituir ou traduzir simbolicamente o lido. Como parte da linguagem, ela se constitui numa forma de olhar caracteristicamente humana. Em entrevista ao Le Monde[1], o psicólogo Herbert S. Terrace, que pesquisou a aquisição de linguagem pelos símios, relatou que havia testado a hipótese de Noam Chomsky de que os seres humanos são dotados de uma capacidade única: eles não se limitam a repetir quando falam; eles criam. Para tanto, começou a trabalhar em 1973 com o chimpanzé Nim, cujo nome completo era Nim Chimp Sky em alusão a Noam Chomsky. Ou seja, para Chomsky, os chimpanzés não eram capazes de falar, como Terrace resolveu desafiá-lo deu esse provocativo nome ao seu chimpanzé. Nim foi criado a partir dos quinze dias de idade, como se fosse um filhote de homem: usava fraldas e roupinhas, tinha uma mamadeira e aprendeu a comer à mesa com uma colher, tornou-se bastante limpo, indicando com gestos convencionados que queria ir ao banheiro.

Nim aprendeu a sinalizar de acordo com as situações cotidianas. Sabia sinalizar que queria vestir uma camisa de determinada cor, assim como pedia sua xícara e sua escova de dentes. Os pesquisadores agiam como se ele fosse uma criança normal cercada de pessoas, que conversavam com ele e entre si utilizando sinais. Ao final de quatro anos Nim conhecia cerca de 125 sinais, mas, por falta de subsídios à continuidade da pesquisa, precisou ser devolvido à reserva de Oklahoma de onde tinha vindo.

Após um ano, Terrace voltou à reserva, e, para sua alegria, foi reconhecido por Nim, que se aproximou e começou a responder aos sinais do pesquisador. Por um certo tempo Terrace acreditou que Nim havia criado uma gramática, pois a palavra "mais" estava sempre no início da frase como "mais cócegas", "mais bananas" e a palavra Nim, seu nome aparecia sempre no final: "brinca Nim"; "coça Nim". Todavia, após uma análise mais detalhada dos diversos registros filmados de Nim, Terrace verificou que o mestre, sem querer, inconscientemente, tomava a iniciativa da conversação, de pelo menos 90% dos diálogos, insistindo para que Nim se manifestasse por sinais.

Nim tinha que se resignar a se comunicar segundo o código imposto e para tanto retinha alguns sinais, nem todos, por imitação, pois a construção era dada juntamente com o modelo. Sua linguagem era um espelho dos gestos emitidos pelos pesquisadores. Além disso, Nim só utilizava os sinais, quando queria alguma coisa, e nunca quando queria simplesmente se comunicar por prazer. As crianças, por outro lado, não falam como um espelho dos seus pais e embora no início da linguagem utilizem "receitas" para obterem o que desejam, vão mais longe e elaboram mensagens complexas e "desinteressadas". Por fim, Terrace concluiu que Chomsky tinha razão e a linguagem é uma característica essencialmente humana.

Nossa linguagem define a forma como lemos o mundo.
Sobre leitura, Pillar[2] salienta que, ao ler, estamos entrelaçando informações do objeto, e informações do leitor, seu conhecimento sobre o objeto, suas inferências, sua imaginação. Ler, para a autora, é agir atribuindo ao que é lido, significados. O leitor tem uma história de vida, onde objetividade e subjetividade organizam sua forma de apreensão e apropriação do mundo.

Na teoria de Piaget, a leitura é uma reconstrução de um determinado objeto do conhecimento, não se reduz a uma simples cópia do real. Nesse sentido, não há o dado absoluto, sendo necessário lançar múltiplos olhares sobre um mesmo objeto.Ao observar utilizamos filtros que intermediam nosso relacionamento com o mundo e nos fazem ver de uma ou outra forma certos fatos, ou ainda, nos tornam "cegos" para outros. Não existe o observador isento que observa os dados em si, extraindo deles respostas aos seus questionamentos. Não somos meros coletores de dados, o progresso científico depende tanto da criação de novas estruturas intelectuais, que possibilitem avanços no processo de leitura e interpretação dos dados, quanto dos avanços tecnológicos que ampliem a capacidade de coleta de dados.

A construção dos filtros, assim como todo desenvolvimento cognitivo, se constitui num processo ativo de interação entre sujeito e objeto desde o nascimento, evoluindo em função do equilíbrio progressivo entre assimilação e acomodação, ou segundo Piaget, da própria adaptação, uma vez que a assimilação e a acomodação se constituem nos dois pólos de toda adaptação.

Investigando o sistema do desenho a partir da teoria piagetiana, Pillar[3] verificou que o observável tem sempre a marca do conhecimento e da imaginação de quem observa, ou seja, depende das coordenações do sujeito e das estruturas mentais que ele possui no momento, as quais podem modificar os dados. Assim, duas pessoas podem ler uma mesma realidade e chegar a conclusões bem diferentes. A autora enfocou as intenções e as interpretações que o sujeito dá às suas representações, verificando que as crianças têm concepções a respeito do processo de desenho. Concepções essas, que se alteram à medida que estas crianças se apropriam da linguagem do desenho pela ação prática, quando desafiadas a analisar sua própria produção.

Outra questão que pode ser levantada, a partir da análise de sua pesquisa, é a importância da intervenção do educador, no sentido de contribuir para desencadear o processo de construção de novos filtros, que ampliem a capacidade crítica dos educandos. A análise que as crianças fizeram dos próprios desenhos, decorreu da intervenção da pesquisadora, do seu interesse pelo olhar infantil.

A nossa "visão ou olhar sobre o mundo" depende tanto dos constituintes biológicos quanto de nossa ação sobre o meio, nos diferentes processos de relacionamento humano. Segundo Weffort[4], não fomos educados para olhar pensando o mundo, a realidade ou nós mesmos, como conseqüência nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira. Para romper com estas insuficiências é preciso um olhar estudioso, curioso, questionador, que olha e escuta, isto envolve um processo dialético de pensar a realidade.

O olhar é, portanto, passível de transformação através de processos educativos, que desenvolvam a capacidade crítica e a curiosidade.
Educar o olhar, portanto, não se resume ao tratamento superficial de um conteúdo. Vai muito além disso e requer a criação de condições em que aprender criticamente seja possível. Para Martins[5], estas condições dependem, entre outras coisas, da capacidade de se despertar a curiosidade em contraposição à informação “instituída” pelo professor, pronta para ser copiada, decorada e repetida. Nesse sentido, sugere que a aprendizagem através da representação artística, entrelaçada com a curiosidade, pode ser muito mais significativa.

A transformação dos educandos em sujeitos que constroem saberes, requer um ambiente pedagógico que possibilite a atividade, desenvolva a análise crítica, o debate coletivo, a elaboração de hipóteses de trabalho e a curiosidade, pois todos estes elementos são essenciais para o desenvolvimento do pensamento científico.

Para Piaget[6], uma constatação nunca é independente dos instrumentos de registro ou de assimilação de que dispõem os sujeitos. Uma vez que estes instrumentos não são puramente perceptivos, pois consistem em esquemas aplicados à percepção, uma observação é alterável, podendo se ampliar ou se tornar mais sensível.

Lembro-me o quanto a audição dos instrumentos específicos de uma sinfonia foi se definindo na medida em que me propus a particularizá-los, ou seja, à medida que fui intencionalizando minha audição ou 'educando' meu ouvido para identificar suas vozes no contexto da orquestra. Para tanto, necessitei, primeiro, ler textos específicos sobre diferentes obras musicais.

'Sabendo' o que poderia ouvir, o que, a princípio, parecia uma única melodia tocada em uníssono por todos os instrumentos da orquestra foi se revelando num complexo mundo melódico, onde os diferentes instrumentos passaram a estabelecer diálogos, pequenos solos, conjecturas e uma infindável riqueza de detalhes. Um novo mundo descortinou-se, a partir da ampliação da minha percepção e do meu entendimento musical, evidenciando que o deleite e a emoção não são frutos exclusivos da espontaneidade mas também de um conhecimento intelectual capaz de desafiar para uma (re)descoberta auditiva.

Este tipo de experiência mostra que a beleza de uma obra musical não se restringe à qualidade da partitura, instrumentos e músicos, pois depende também de quem irá ouvi-la.
A visão não se restringe aos seus constituintes orgânicos especializados na captação e formação da imagem, do mesmo modo, a audição é mais do que simples captação e identificação de sons, é interpretação. Neste contexto, a idéia de olhar o mundo, não se limita à visão, envolve todos os sentidos humanos mais os sentimentos e raciocínios, que se agregam aos sinais percebidos, quer sejam eles, sonoros, visuais, táteis, palatáveis ou uma rica combinação de muitos deles.

Entre a “rica combinação de sinais”, se inclui a linguagem, através da qual interagimos com os outros seres humanos. Através da linguagem o olhar pode ser desafiado a descobrir detalhes que ignorava, em algo, aparentemente, já muito conhecido. Martins relata que mesmo tendo visto, muitas vezes, diversas reproduções da obra “A ronda noturna”, de Rembrandt, nunca havia visto a sombra da mão do capitão, só “descobriu-a” após ler sobre ela num texto de Merleau-Ponty. Do mesmo modo, quando visitamos um lugar, do qual já conhecemos algumas histórias, nos interessamos mais pelos detalhes de sua geografia, procurando enriquecer e reconstruir, com as características do relevo, as imagens mentais de um passado, que não nos pertenceu. As histórias escutadas se constituirão em filtros para nosso olhar, se contiverem emoções boas chegaremos a este novo local como quem volta e quer relembrar. Ao contrário, se os diferentes relatos nos deixaram apreensivos, olharemos com desconfiança esse lugar.

Em suma, a educação do olhar envolve a compreensão sobre filtros e filtragem do mundo.A compreensão sobre a filtragem do mundo demanda um estudo sobre a formação do símbolo na criança de Piaget, ampliado por novos aportes trazidos por outros autores e pesquisas, num diálogo que privilegie seus encontros sem estabelecer antagonismos ou visões particularizadas.

Como salienta Macedo[7], a aplicação pedagógica da obra de Piaget supõe o estudo, a pesquisa e a crítica constantes do professor, visando refletir e reconstruir o ato de educar de forma articulada com os pressupostos epistemológicos e as descobertas empíricas de Piaget, coordenando a teoria e a prática a fim de preservar seus pontos comuns e suas diferenças.

Becker[8] discutiu a importância da educação crítica ou problematizadora de Freire enriquecer-se com a teoria piagetiana de tomada de consciência, abstração reflexionante, ação-operação, entre outros. Uma vez que a pronúncia da palavra verdadeira, fruto da práxis, preconizada por Freire, exigirá, cada vez mais, a utilização dos instrumentos formais, próprios do pensamento desenvolvido, investigados por Piaget.

A reunião destes autores, pode levar às práticas educativas, que estabelecem o diálogo, respeitam o desenvolvimento do sujeito e focalizem sua ação para construção do conhecimento. Problematizar o conceito de meio a partir do modelo interacionista de Piaget, constitui-se, assim, numa nova maneira de ver a educação bem como numa busca de novos patamares interpretativos necessários para reavaliar o fazer pedagógico com o objetivo de transformar o ato de educar.

Referências e notas:
[1] TERRACE, Herbert S. Entrevistas do Le Monde. In : FLAKSMAN, Sergio (Trad.) O Indivíduo São Paulo : Ática,1989.
[2] PILLAR, Analice Dutra. Leitura e releitura. Boletim Arte na Escola. Porto Alegre, n. 15, Dezembro, 1996.
[3] PILLAR, Analice Dutra. Desenho e construção de conhecimento na criança. Porto Alegre : Artes Médicas, 1996.
[4] WEFFORT, Madalena F. Educando o olhar da observação. In : WEFFORT, Madalena F. (Org.) Observação - Registro - Reflexão : instrumentos metodológicos I. São Paulo : Espaço Pedagógico, 1995.
[5] MARTINS, Mirian Celeste. Aprendiz da arte: trilhas do sensível olhar pensante, São Paulo : Espaço Pedagógico, 1992.
[6] PIAGET, Jean. [1975] A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro : Zahar, 1976.
[7] MACEDO, Lino de. Ensaios construtivistas. São Paulo : Casa do Psicólogo, 1994.
[8] BECKER, Fernando. Da ação à operação: o caminho da aprendizagem. Porto Alegre : EST-Palmarinca-Educação e Realidade, 1993.

palavras-chave: chomsky, olhar, leitura, piaget, freire

Um comentário:

  1. marcia helena23/5/10

    gostei muito, estou fazendo o magisterio edc. infantil é seu artigo sobre leitura me ajudou muito. valeu está ótimo.

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