A análise dialética do conhecimento é essencial ao progresso das ciências. Como salienta Gould [1] o erro é um subproduto inevitável da ousadia, ou de qualquer esforço concentrado, e nenhuma das grandes obras da ciência jamais foi isenta de erro. Conforme Piaget [2], “uma grande obra comporta sempre partes fracas ou mesmo bastante frágeis”.
O progresso intelectual forma uma rede complexa que envolve muitas experiências de tentativa e erro, as quais podem ser corrigidas pela sua ultrapassagem dialética, ou seja, o agente da correção não precisa se constituir num fato novo, mas apenas numa modificação da estrutura conceitual subjacente. Assim, a ultrapassagem dialética não se dá nem através do desrespeito nem da adoração, mas exige uma análise séria que reconheça a genialidade, apesar das fragilidades encontradas.
Piaget lamentava que Lamarck tivesse sido alvo de críticas bastante mesquinhas, pois apesar dele ter errado ao preocupar-se apenas com o meio como fator de transformação e com as tendências do organismo para escolher um meio conveniente, teve incontestável razão em atribuir um papel necessário a estes fatores. Por outro lado, salientava que, os mesmos autores que criticavam Lamarck, quando falavam de Darwin, omitiam cuidadosamente os pontos delicados de sua obra, assumindo um posicionamento coercitivo que constrangia os biólogos mais jovens a não expressar publicamente o reconhecimento de que a obra de Lamarck continha parte da verdade. A leitura equivocada do posicionamento dialético de Piaget, que apresenta tanto os acertos do pensamento de Lamarck quanto os equívocos de Darwin, assumindo uma terceira solução que os ultrapassa, faz com que ainda hoje ele seja considerado lamarckista, por alguns biólogos.
Gould criticou severamente a tendência triunfal e aparentemente incontrolável à caracterização indevida que se encontra no cerne de grande parte das discussões acadêmicas, em que apesar da capacidade para discutir a substância intelectual e a realidade empírica, se prefere tomar uma compreensão equivocada como objeto das investidas. O autor atribui a origem desse comportamento lamentável aos hábitos descuidados de leitura e reflexão, ou pior, à facilidade em se discutir o que ainda não foi lido. Ele salientava, também, que os intelectuais realmente extraordinários de nossa história não se limitaram a fazer grandes descobertas, mais do que isto, eles elaboraram verdadeiras tapeçarias, globalizantes em seu alcance, cuja glória e beleza estão em sua integridade como estruturas unificadas de grande complexidade e vastas conseqüências. Segundo este autor, não há nada mais destrutivo para a comunidade científica do que a crítica capaz de arrancar um pedaço qualquer da tapeçaria e fazer dele uma leitura errônea, usando-o na fabricação de um Judas pronto para malhação geral e depois tentando definir o estudioso apenas à luz do fragmento isolado.
Ao assumir a obra piagetiana como leme para problematizar o conceito de meio, não quero extrair apenas um fragmento da sua tapeçaria teórica, busco, principalmente, aplicar sua forma dialética de abordagem do tema evitando tanto um posicionamento determinista de primado do organismo sobre o meio quanto finalista de primado do meio sobre o organismo. Atualmente, a necessidade de ultrapassagem dialética do darwinismo e lamarckismo proposta por Piaget ainda pode ser apresentada como uma alternativa teórica capaz de solucionar alguns paradoxos observados entre os dados empíricos e as hipóteses explicativas das teorias sobre evolução.
A genética clássica reuniu a essência do evolucionismo de Darwin, centrado no gradualismo de pequenas variações submetidas a sucessivas seleções, com a redescoberta das leis de Mendel e a descoberta das mutações criando uma teoria evolucionista denominada “neodarwinismo”. Nessa teoria, as variações hereditárias eram interpretadas como caracteristicamente endógenas, ou seja, produzidas por mutações no genótipo, sobre as quais, o meio só atuava tardiamente, selecionando as variantes, de modo a preservar as benéficas e eliminar as maléficas.
Os neodarwinistas elaboraram leis sobre mudança de proporções de genes em populações naturais para interpretar e investigar os processos da evolução orgânica. A comprovação experimental destas leis dependia da substituição de um alelo[4] ter grandes efeitos fenotípicos e sua detecção não apresentar ambigüidades.Os amplos aportes de conhecimento fornecidos pelas técnicas investigativas foram evidenciando, porém, entre outras coisas, que Darwin, não só estava equivocado ao se apegar tão fortemente ao gradualismo das pequenas variações casuais e da sua seleção progressiva como, também, havia necessidade de novas hipóteses explicativas, pois normalmente a alteração produzida pela substituição de um gene é pequena se comparada ao efeito do background genético e do ambiente. Em outras palavras, a direção, intensidade e mesmo a existência da seleção em um loco dependem do ambiente e do conjunto genético no qual ele opera.
Gould aponta como uma das fragilidades de Darwin o seu apego excessivo ao gradualismo. O gradualismo se caracteriza por defender a idéia de que pequenas mudanças ocorrem num tipo básico e vão sendo gradativamente selecionadas pelo meio.
Em função do gradualismo Darwin previu equivocadamente que o surgimento dos animais multicelulares teria ocorrido há cerca de um bilhão de anos. Porém, o excelente registro fóssil de que dispomos hoje mostra que nenhum animal multicelular apareceu até pouco antes da Explosão do Cambriano, há cerca de 550 milhões de anos.
O gradualismo foi um ponto muito atacado pelas pessoas contrárias às idéias de Darwin. Para elas, era fácil explicar os casos em que são geradas variedades que vão do chihuahua ao dog alemão, mas muito difícil aceitar a transição de um tipo a outro, ou seja: como explicar as formas intermediárias?
O paradoxo do gradualismo pode ser resumido nesta questão: Se, para ser mantida, uma mutação precisa ser vantajosa. Como então explicar as formas intermediárias?
As formas intermediárias seriam naturalmente inviáveis dada sua impraticabilidade, pois apresentariam parte de uma estrutura se degenerando e parte de outra nova que ainda não teria se instalado completamente.Um exemplo clássico de crítica ao gradualismo é a origem dos ossículos do ouvido médio dos mamíferos (martelo, estribo e bigorna), a partir de ossos da mandíbula de répteis. Como as formas intermediárias dos répteis se alimentariam enquanto a transição "lenta" e "gradual" da articulação dos maxilares não se efetivasse?
As formas primitivas e evoluídas que funcionam fazem sentido, mas as formas intermediárias não. Para defender suas hipóteses, Darwin justificava o gradualismo através de dois princípios que denominava "dois-em-um" e "um-em-dois".
O princípio do "dois-em-um", se baseia no fato de um mesmo órgão poder realizar mais de uma função simultaneamente como, por exemplo, a língua que além da articulação da fala percebe o gosto. Já o princípio do "um-em-dois" se baseia no oposto, ou seja, uma mesma função ser realizada por dois órgãos diferentes. Assim, nos casos em que se verificasse o princípio do "um-em-dois" haveria material para a evolução trabalhar, aperfeiçoando um dos órgãos e posteriormente eliminando ou reduzindo a função no outro, que poderia se especializar em outra função.
Um exemplo do princípio do "um-em-dois" é a respiração dos anfíbios (sapos, rãs e salamandras) que utilizam simultaneamente os pulmões e a pele, de modo que, se forem extirpados os seus pulmões eles sobrevivem sem problemas, pois foi evidenciado que a pele é o seu principal órgão envolvido nesta função. Este fenômeno teria possibilitado o desenvolvimento de organismos como o dos mamíferos, cujo surgimento se deu posteriormente ao dos anfíbios. Nos mamíferos a respiração não apresenta mais o princípio do “um-em-dois” e depende totalmente dos pulmões, já sua pele se especializou em funções de proteção contra o dessecamento e manutenção da temperatura corporal. Todavia, apesar de especializada em outras funções, a pele dos mamíferos ainda apresenta resquícios de troca de gases muito úteis aos processos de excreção, que atestariam seu parentesco evolutivo com os anfíbios.
Desse modo, Gould enfatizava que mesmo as explicações de Darwin tendo servido para reforçar seu equivocado apego ao gradualismo generalizado, elas revelaram um elemento muito interessante para a revisão dialética da hipótese clássica de seleção natural: a redundância, que pode se relacionar a qualquer excesso de estruturas, sejam elas órgãos, moléculas ou porções da molécula de DNA. Nesse contexto, ele consiste em um elemento essencial para a criatividade e aparece como uma possibilidade de material para a mudança evolutiva em várias situações.
Os exemplos de redundância, como o da respiração dos anfíbios, se contrapõem a concepção de que todos os órgãos foram criados predestinados a realizar determinada função, evidenciando uma condição em que o organismo espontaneamente propõe “novas idéias” para o meio posteriormente selecionar. A redundância argumenta a favor do pensamento evolucionista, resolvendo o caso das “formas intermediárias inviáveis” Contudo, as explicações para o surgimento de estruturas redundantes não podem excluir a possibilidade de que ela possa ter surgido como decorrência da interação entre o organismo e o meio, mais pela necessidade do que pelo acaso.
Quando publicou sua obra Biologia e conhecimento na década de sessenta, uma das principais críticas realizadas por Piaget no campo da genética recaía sobre o atomismo que era levado aos extremos quando concebia o genoma como um agregado de genes descontínuos e independentes, produzindo cada um deles características isoláveis. Não conseguia conceber que os genes fossem sujeitos a mutações bruscas e descontínuas sem relação com o restante do conjunto gênico ou com o meio. Meio este que, por seu turno, conseguiria escolher os indivíduos um a um, já como unidades adultas e acabadas sem considerar suas interações na população. Desse modo, se uma mutação pudesse garantir uma melhor sobrevivência aos seus portadores e seus descendentes, quem garantiria que este mutante teria, simultaneamente, maior sucesso para procriar, sendo ou o macho escolhido pela fêmea ou uma fêmea fértil, por exemplo? Ou seja, o que nos garantiria que uma habilidade que favorecesse a função de alimentação tivesse, casualmente, surgido nos indivíduos com maior capacidade reprodutiva?
Essa crítica ao “atomismo” foi essencial à elaboração da teoria piagetiana sobre as bases biológicas do conhecimento porque ele refletiu que se considerássemos os indivíduos um a um desconsideraríamos os processos interativos presentes no conjunto da população. Assim concluiu que se não era possível isolar um gene do restante do genótipo também não se poderia separar os indivíduos do seu contexto. Ao considerar os genes e indivíduos no seu conjunto, percebemos que, tal como questionava Piaget, ao atribuir todas as modificações ao acaso não somos capazes de explicar a complexidade dos sistemas vivos, assim como não podemos compreender o surgimento e o desenvolvimento da inteligência.
Se todas as mutações surgissem por acaso independente de qualquer pressão do meio, seria bastante improvável que ocorressem em vários indivíduos simultaneamente. Neste caso, para ser selecionada, além de surgir num ambiente em que seja favorecida, uma mutação deveria reunir em si vários acasos simultâneos, tais como provocar um efeito com clara vantagem adaptativa; ocorrer num indivíduo fértil, que conseguisse produzir descendência numerosa. Além disso, deveria surgir num contexto genético que favorecesse a sobrevivência dos portadores. Sempre que alguma destas "ocorrências" não se verificasse seria muito "casual" a variação se fixar. Face ao exposto, é muito difícil atribuir apenas ao acaso a enorme variabilidade estabelecida na Terra, no decorrer dos últimos 550 milhões de anos.
Ao diminuir a importância do conjunto ou do meio nos processos evolutivos assumimos uma postura atomista, que não é capaz de uma visão global e dessa forma, como salienta Piaget[5] todas as vezes que procuramos atingir diretamente um organismo ou um genoma, bem como um sujeito do conhecimento independente do meio ou dos objetos, “despojamo-lo ipso facto do seu funcionamento e só encontramos partículas, órgãos, ou categorias isoláveis e abstratas de pensamento, que são uma deformação do real”. Tais deformações do real não nos asseguram uma explicação teórica suficiente para os dados empíricos, pois, à medida que eles foram sendo obtidos, foi necessário abandonar as explicações fundamentadas, exclusivamente, nas interpretações clássicas e buscar outras visões que não abordassem os genes como entidades discretas, bem como concedessem ao meio um papel de maior destaque nos processos evolutivos, na forma do que se costuma chamar de pressões seletivas. Nesse sentido, o meio não pode ser interpretado apenas como um "lugar" à espera de alguma "novidade" para selecionar, revelando-se, assim, como um contexto de convivências ou interações, capaz de gerar tensões ou pressões, as quais favorecem ou induzem modificações herdáveis nos organismos.
De acordo com o modelo interacionista de Piaget, o papel do meio deixa de ser apenas o de agente selecionador das proposições casuais surgidas em organismos isolados e passa a gerar tensões, que levam as populações a mudar, através de processos de desequilíbrios seguidos por reequilibrações, tanto nos processos de evolução das espécies, quanto nos processos de desenvolvimento da inteligência. Os processos interativos dos organismos com seu meio se dão em muitos níveis, entre os quais está o do próprio genoma, o qual deve responder às pressões seletivas do meio provendo os organismos de informações capazes de produzir o fenótipo necessário, a fim de garantir a sobrevivência dos indivíduos, além de resistir, ele próprio, às agressões desse meio.Entre os principais eventos da pesquisa em genética, que contribuíram para o rompimento com a interpretação atomista do genoma deve-se destacar a descoberta dos processos de regulação gênica. Esta descoberta pôs em evidência complexos sistemas de interação entre os genes, que são mediados por diferentes agentes como proteínas, hormônios, RNAs e genes reguladores.
Para Piaget, a descoberta de genes reguladores induzia a uma profunda mudança na concepção atomista do genoma porque levantava questões como: qual a função destas regulações? Se o meio não exercia pressão sobre o genoma e os genes se comportavam como entidades isoladas, por que seria necessário regular? A necessidade de conservar o sistema significava que existem obstáculos ou perturbações a este sistema. Se os genes fossem embrulhos ou caixinhas fechados para o mundo, o que os ameaçaria? Seriam estas ameaças provenientes exclusivamente do interior do próprio genoma?
O genoma é um sistema organizado compreendendo tanto os genes estruturais quanto os reguladores, bem como sistemas enzimáticos responsáveis pela sua estrutura, reparo, ativação, replicação, enfim, sistemas de regulação, que possibilitam interfaces para interações entre ele e o meio. As pesquisas genéticas contemporâneas têm evidenciado, cada vez mais, que o meio além de proporcionar as pressões seletivas, é também, uma das fontes diretas da própria variabilidade genética, como fornecedor de material genético ou DNA, através de vetores como vírus e transposons e processos como transferência horizontal e imprinting dinâmico.
Um entendimento maior sobre o genoma e os processos envolvidos na sua relação com o meio pode nos conduzir a uma visão mais esclarecedora do significado da interação e auto-regulação, que caracterizam a vida e o desenvolvimento cognitivo. Este é um caminho sugerido por Piaget para a compreensão dos processos cognitivos, que estão em continuidade com outros processos vitais. Ou seja, assim como o genoma é uma estrutura organizada que resulta e gera uma evolução, a inteligência é, também, por sua vez, um processo vital, que depende e forma estruturas biológicas num processo de interação do indivíduo com seu meio.
Em outras palavras, ao compreender mais profundamente a evolução estaremos também compreendendo melhor os indivíduos e seu meio, pois ambos são indissociáveis. Essa mesma lógica aplicada ao nosso olhar sobre a escola, por exemplo, fará com que não a vejamos apenas como um lugar, mas sim como um contexto de convivências, que é palco de mútuas transformações dos sujeitos interatuantes.
Notas e referências:
[1]- GOULD, Stephen J. Dedo mindinho e seus vizinhos - ensaios de história natural. São Paulo : Cia das Letras, 1993.
[2]- PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978, p.105.
[3]- A teoria da seleção natural também é atribuída a Alfred Russel Wallace.
[4]- Alelo é cada um dos tipos de gene de um mesmo loco. Ou seja, são formas alternativas de um gene. Se para um determinado loco existirem mais de dois alelos, na espécie, eles são chamados alelos múltiplos ou membros de uma série alélica. A composição alélica do indivíduo determina se ele é homozigoto ou heterozigoto. Tomemos o exemplo do sistema sangüíneo: temos na membrana das células sangüíneas determinadas proteínas denominadas antígenos do sistema MN, cada antígeno é codificado por um gene diferente, há dois alelos envolvidos, o alelo M e o alelo N, se o indivíduo for homizogoto paro o alelo M terá sangue tipo M, se for homozigoto para o alelo N será do tipo N, se for heterozigoto e apresentar os dois alelos será do tipo MN. A detecção destes tipos sangüíneos pode ser usada em testes simples de investigação de paternidade.
[5]- Biologia e conhecimento, 1978 p.112.
Evolucionando
palavras-chave: Gould, Darwin, Piaget, gradualismo, redundância
O progresso intelectual forma uma rede complexa que envolve muitas experiências de tentativa e erro, as quais podem ser corrigidas pela sua ultrapassagem dialética, ou seja, o agente da correção não precisa se constituir num fato novo, mas apenas numa modificação da estrutura conceitual subjacente. Assim, a ultrapassagem dialética não se dá nem através do desrespeito nem da adoração, mas exige uma análise séria que reconheça a genialidade, apesar das fragilidades encontradas.
Piaget lamentava que Lamarck tivesse sido alvo de críticas bastante mesquinhas, pois apesar dele ter errado ao preocupar-se apenas com o meio como fator de transformação e com as tendências do organismo para escolher um meio conveniente, teve incontestável razão em atribuir um papel necessário a estes fatores. Por outro lado, salientava que, os mesmos autores que criticavam Lamarck, quando falavam de Darwin, omitiam cuidadosamente os pontos delicados de sua obra, assumindo um posicionamento coercitivo que constrangia os biólogos mais jovens a não expressar publicamente o reconhecimento de que a obra de Lamarck continha parte da verdade. A leitura equivocada do posicionamento dialético de Piaget, que apresenta tanto os acertos do pensamento de Lamarck quanto os equívocos de Darwin, assumindo uma terceira solução que os ultrapassa, faz com que ainda hoje ele seja considerado lamarckista, por alguns biólogos.
Gould criticou severamente a tendência triunfal e aparentemente incontrolável à caracterização indevida que se encontra no cerne de grande parte das discussões acadêmicas, em que apesar da capacidade para discutir a substância intelectual e a realidade empírica, se prefere tomar uma compreensão equivocada como objeto das investidas. O autor atribui a origem desse comportamento lamentável aos hábitos descuidados de leitura e reflexão, ou pior, à facilidade em se discutir o que ainda não foi lido. Ele salientava, também, que os intelectuais realmente extraordinários de nossa história não se limitaram a fazer grandes descobertas, mais do que isto, eles elaboraram verdadeiras tapeçarias, globalizantes em seu alcance, cuja glória e beleza estão em sua integridade como estruturas unificadas de grande complexidade e vastas conseqüências. Segundo este autor, não há nada mais destrutivo para a comunidade científica do que a crítica capaz de arrancar um pedaço qualquer da tapeçaria e fazer dele uma leitura errônea, usando-o na fabricação de um Judas pronto para malhação geral e depois tentando definir o estudioso apenas à luz do fragmento isolado.
Ao assumir a obra piagetiana como leme para problematizar o conceito de meio, não quero extrair apenas um fragmento da sua tapeçaria teórica, busco, principalmente, aplicar sua forma dialética de abordagem do tema evitando tanto um posicionamento determinista de primado do organismo sobre o meio quanto finalista de primado do meio sobre o organismo. Atualmente, a necessidade de ultrapassagem dialética do darwinismo e lamarckismo proposta por Piaget ainda pode ser apresentada como uma alternativa teórica capaz de solucionar alguns paradoxos observados entre os dados empíricos e as hipóteses explicativas das teorias sobre evolução.
A fim de compreender estes paradoxos é preciso entender algumas idéias defendidas pelos evolucionistas.
S. J. Gould
A premissa fundamental da teoria darwiniana é que a evolução ocorre por variação genética no espaço e no tempo, gerando num primeiro momento raças e espécies e posteriormente novos filos. Quando Darwin propôs a teoria da seleção natural[3], ele imaginou que as variações hereditárias diferiam apenas ligeiramente em seus efeitos sobre o valor adaptativo, ou seja, toda modificação era essencialmente gradual. Estudos recentes sugerem que, nas populações naturais, os conjuntos de genes presentes nos indivíduos diferem em valor adaptativo, especialmente, quando afetam características fisiológicas ou morfológicas.A genética clássica reuniu a essência do evolucionismo de Darwin, centrado no gradualismo de pequenas variações submetidas a sucessivas seleções, com a redescoberta das leis de Mendel e a descoberta das mutações criando uma teoria evolucionista denominada “neodarwinismo”. Nessa teoria, as variações hereditárias eram interpretadas como caracteristicamente endógenas, ou seja, produzidas por mutações no genótipo, sobre as quais, o meio só atuava tardiamente, selecionando as variantes, de modo a preservar as benéficas e eliminar as maléficas.
Os neodarwinistas elaboraram leis sobre mudança de proporções de genes em populações naturais para interpretar e investigar os processos da evolução orgânica. A comprovação experimental destas leis dependia da substituição de um alelo[4] ter grandes efeitos fenotípicos e sua detecção não apresentar ambigüidades.Os amplos aportes de conhecimento fornecidos pelas técnicas investigativas foram evidenciando, porém, entre outras coisas, que Darwin, não só estava equivocado ao se apegar tão fortemente ao gradualismo das pequenas variações casuais e da sua seleção progressiva como, também, havia necessidade de novas hipóteses explicativas, pois normalmente a alteração produzida pela substituição de um gene é pequena se comparada ao efeito do background genético e do ambiente. Em outras palavras, a direção, intensidade e mesmo a existência da seleção em um loco dependem do ambiente e do conjunto genético no qual ele opera.
Gould aponta como uma das fragilidades de Darwin o seu apego excessivo ao gradualismo. O gradualismo se caracteriza por defender a idéia de que pequenas mudanças ocorrem num tipo básico e vão sendo gradativamente selecionadas pelo meio.
Em função do gradualismo Darwin previu equivocadamente que o surgimento dos animais multicelulares teria ocorrido há cerca de um bilhão de anos. Porém, o excelente registro fóssil de que dispomos hoje mostra que nenhum animal multicelular apareceu até pouco antes da Explosão do Cambriano, há cerca de 550 milhões de anos.
O gradualismo foi um ponto muito atacado pelas pessoas contrárias às idéias de Darwin. Para elas, era fácil explicar os casos em que são geradas variedades que vão do chihuahua ao dog alemão, mas muito difícil aceitar a transição de um tipo a outro, ou seja: como explicar as formas intermediárias?
O paradoxo do gradualismo pode ser resumido nesta questão: Se, para ser mantida, uma mutação precisa ser vantajosa. Como então explicar as formas intermediárias?
As formas intermediárias seriam naturalmente inviáveis dada sua impraticabilidade, pois apresentariam parte de uma estrutura se degenerando e parte de outra nova que ainda não teria se instalado completamente.Um exemplo clássico de crítica ao gradualismo é a origem dos ossículos do ouvido médio dos mamíferos (martelo, estribo e bigorna), a partir de ossos da mandíbula de répteis. Como as formas intermediárias dos répteis se alimentariam enquanto a transição "lenta" e "gradual" da articulação dos maxilares não se efetivasse?
As formas primitivas e evoluídas que funcionam fazem sentido, mas as formas intermediárias não. Para defender suas hipóteses, Darwin justificava o gradualismo através de dois princípios que denominava "dois-em-um" e "um-em-dois".
O princípio do "dois-em-um", se baseia no fato de um mesmo órgão poder realizar mais de uma função simultaneamente como, por exemplo, a língua que além da articulação da fala percebe o gosto. Já o princípio do "um-em-dois" se baseia no oposto, ou seja, uma mesma função ser realizada por dois órgãos diferentes. Assim, nos casos em que se verificasse o princípio do "um-em-dois" haveria material para a evolução trabalhar, aperfeiçoando um dos órgãos e posteriormente eliminando ou reduzindo a função no outro, que poderia se especializar em outra função.
Um exemplo do princípio do "um-em-dois" é a respiração dos anfíbios (sapos, rãs e salamandras) que utilizam simultaneamente os pulmões e a pele, de modo que, se forem extirpados os seus pulmões eles sobrevivem sem problemas, pois foi evidenciado que a pele é o seu principal órgão envolvido nesta função. Este fenômeno teria possibilitado o desenvolvimento de organismos como o dos mamíferos, cujo surgimento se deu posteriormente ao dos anfíbios. Nos mamíferos a respiração não apresenta mais o princípio do “um-em-dois” e depende totalmente dos pulmões, já sua pele se especializou em funções de proteção contra o dessecamento e manutenção da temperatura corporal. Todavia, apesar de especializada em outras funções, a pele dos mamíferos ainda apresenta resquícios de troca de gases muito úteis aos processos de excreção, que atestariam seu parentesco evolutivo com os anfíbios.
Desse modo, Gould enfatizava que mesmo as explicações de Darwin tendo servido para reforçar seu equivocado apego ao gradualismo generalizado, elas revelaram um elemento muito interessante para a revisão dialética da hipótese clássica de seleção natural: a redundância, que pode se relacionar a qualquer excesso de estruturas, sejam elas órgãos, moléculas ou porções da molécula de DNA. Nesse contexto, ele consiste em um elemento essencial para a criatividade e aparece como uma possibilidade de material para a mudança evolutiva em várias situações.
Os exemplos de redundância, como o da respiração dos anfíbios, se contrapõem a concepção de que todos os órgãos foram criados predestinados a realizar determinada função, evidenciando uma condição em que o organismo espontaneamente propõe “novas idéias” para o meio posteriormente selecionar. A redundância argumenta a favor do pensamento evolucionista, resolvendo o caso das “formas intermediárias inviáveis” Contudo, as explicações para o surgimento de estruturas redundantes não podem excluir a possibilidade de que ela possa ter surgido como decorrência da interação entre o organismo e o meio, mais pela necessidade do que pelo acaso.
Quando publicou sua obra Biologia e conhecimento na década de sessenta, uma das principais críticas realizadas por Piaget no campo da genética recaía sobre o atomismo que era levado aos extremos quando concebia o genoma como um agregado de genes descontínuos e independentes, produzindo cada um deles características isoláveis. Não conseguia conceber que os genes fossem sujeitos a mutações bruscas e descontínuas sem relação com o restante do conjunto gênico ou com o meio. Meio este que, por seu turno, conseguiria escolher os indivíduos um a um, já como unidades adultas e acabadas sem considerar suas interações na população. Desse modo, se uma mutação pudesse garantir uma melhor sobrevivência aos seus portadores e seus descendentes, quem garantiria que este mutante teria, simultaneamente, maior sucesso para procriar, sendo ou o macho escolhido pela fêmea ou uma fêmea fértil, por exemplo? Ou seja, o que nos garantiria que uma habilidade que favorecesse a função de alimentação tivesse, casualmente, surgido nos indivíduos com maior capacidade reprodutiva?
Essa crítica ao “atomismo” foi essencial à elaboração da teoria piagetiana sobre as bases biológicas do conhecimento porque ele refletiu que se considerássemos os indivíduos um a um desconsideraríamos os processos interativos presentes no conjunto da população. Assim concluiu que se não era possível isolar um gene do restante do genótipo também não se poderia separar os indivíduos do seu contexto. Ao considerar os genes e indivíduos no seu conjunto, percebemos que, tal como questionava Piaget, ao atribuir todas as modificações ao acaso não somos capazes de explicar a complexidade dos sistemas vivos, assim como não podemos compreender o surgimento e o desenvolvimento da inteligência.
Se todas as mutações surgissem por acaso independente de qualquer pressão do meio, seria bastante improvável que ocorressem em vários indivíduos simultaneamente. Neste caso, para ser selecionada, além de surgir num ambiente em que seja favorecida, uma mutação deveria reunir em si vários acasos simultâneos, tais como provocar um efeito com clara vantagem adaptativa; ocorrer num indivíduo fértil, que conseguisse produzir descendência numerosa. Além disso, deveria surgir num contexto genético que favorecesse a sobrevivência dos portadores. Sempre que alguma destas "ocorrências" não se verificasse seria muito "casual" a variação se fixar. Face ao exposto, é muito difícil atribuir apenas ao acaso a enorme variabilidade estabelecida na Terra, no decorrer dos últimos 550 milhões de anos.
Ao diminuir a importância do conjunto ou do meio nos processos evolutivos assumimos uma postura atomista, que não é capaz de uma visão global e dessa forma, como salienta Piaget[5] todas as vezes que procuramos atingir diretamente um organismo ou um genoma, bem como um sujeito do conhecimento independente do meio ou dos objetos, “despojamo-lo ipso facto do seu funcionamento e só encontramos partículas, órgãos, ou categorias isoláveis e abstratas de pensamento, que são uma deformação do real”. Tais deformações do real não nos asseguram uma explicação teórica suficiente para os dados empíricos, pois, à medida que eles foram sendo obtidos, foi necessário abandonar as explicações fundamentadas, exclusivamente, nas interpretações clássicas e buscar outras visões que não abordassem os genes como entidades discretas, bem como concedessem ao meio um papel de maior destaque nos processos evolutivos, na forma do que se costuma chamar de pressões seletivas. Nesse sentido, o meio não pode ser interpretado apenas como um "lugar" à espera de alguma "novidade" para selecionar, revelando-se, assim, como um contexto de convivências ou interações, capaz de gerar tensões ou pressões, as quais favorecem ou induzem modificações herdáveis nos organismos.
De acordo com o modelo interacionista de Piaget, o papel do meio deixa de ser apenas o de agente selecionador das proposições casuais surgidas em organismos isolados e passa a gerar tensões, que levam as populações a mudar, através de processos de desequilíbrios seguidos por reequilibrações, tanto nos processos de evolução das espécies, quanto nos processos de desenvolvimento da inteligência. Os processos interativos dos organismos com seu meio se dão em muitos níveis, entre os quais está o do próprio genoma, o qual deve responder às pressões seletivas do meio provendo os organismos de informações capazes de produzir o fenótipo necessário, a fim de garantir a sobrevivência dos indivíduos, além de resistir, ele próprio, às agressões desse meio.Entre os principais eventos da pesquisa em genética, que contribuíram para o rompimento com a interpretação atomista do genoma deve-se destacar a descoberta dos processos de regulação gênica. Esta descoberta pôs em evidência complexos sistemas de interação entre os genes, que são mediados por diferentes agentes como proteínas, hormônios, RNAs e genes reguladores.
Para Piaget, a descoberta de genes reguladores induzia a uma profunda mudança na concepção atomista do genoma porque levantava questões como: qual a função destas regulações? Se o meio não exercia pressão sobre o genoma e os genes se comportavam como entidades isoladas, por que seria necessário regular? A necessidade de conservar o sistema significava que existem obstáculos ou perturbações a este sistema. Se os genes fossem embrulhos ou caixinhas fechados para o mundo, o que os ameaçaria? Seriam estas ameaças provenientes exclusivamente do interior do próprio genoma?
O genoma é um sistema organizado compreendendo tanto os genes estruturais quanto os reguladores, bem como sistemas enzimáticos responsáveis pela sua estrutura, reparo, ativação, replicação, enfim, sistemas de regulação, que possibilitam interfaces para interações entre ele e o meio. As pesquisas genéticas contemporâneas têm evidenciado, cada vez mais, que o meio além de proporcionar as pressões seletivas, é também, uma das fontes diretas da própria variabilidade genética, como fornecedor de material genético ou DNA, através de vetores como vírus e transposons e processos como transferência horizontal e imprinting dinâmico.
Um entendimento maior sobre o genoma e os processos envolvidos na sua relação com o meio pode nos conduzir a uma visão mais esclarecedora do significado da interação e auto-regulação, que caracterizam a vida e o desenvolvimento cognitivo. Este é um caminho sugerido por Piaget para a compreensão dos processos cognitivos, que estão em continuidade com outros processos vitais. Ou seja, assim como o genoma é uma estrutura organizada que resulta e gera uma evolução, a inteligência é, também, por sua vez, um processo vital, que depende e forma estruturas biológicas num processo de interação do indivíduo com seu meio.
Em outras palavras, ao compreender mais profundamente a evolução estaremos também compreendendo melhor os indivíduos e seu meio, pois ambos são indissociáveis. Essa mesma lógica aplicada ao nosso olhar sobre a escola, por exemplo, fará com que não a vejamos apenas como um lugar, mas sim como um contexto de convivências, que é palco de mútuas transformações dos sujeitos interatuantes.
Notas e referências:
[1]- GOULD, Stephen J. Dedo mindinho e seus vizinhos - ensaios de história natural. São Paulo : Cia das Letras, 1993.
[2]- PIAGET, Jean. [1967] Biologia e conhecimento. 1ed. Porto : Rés ed, 1978, p.105.
[3]- A teoria da seleção natural também é atribuída a Alfred Russel Wallace.
[4]- Alelo é cada um dos tipos de gene de um mesmo loco. Ou seja, são formas alternativas de um gene. Se para um determinado loco existirem mais de dois alelos, na espécie, eles são chamados alelos múltiplos ou membros de uma série alélica. A composição alélica do indivíduo determina se ele é homozigoto ou heterozigoto. Tomemos o exemplo do sistema sangüíneo: temos na membrana das células sangüíneas determinadas proteínas denominadas antígenos do sistema MN, cada antígeno é codificado por um gene diferente, há dois alelos envolvidos, o alelo M e o alelo N, se o indivíduo for homizogoto paro o alelo M terá sangue tipo M, se for homozigoto para o alelo N será do tipo N, se for heterozigoto e apresentar os dois alelos será do tipo MN. A detecção destes tipos sangüíneos pode ser usada em testes simples de investigação de paternidade.
[5]- Biologia e conhecimento, 1978 p.112.
Evolucionando
palavras-chave: Gould, Darwin, Piaget, gradualismo, redundância
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