Onde foram parar as teclas certas? Algumas vezes o teclado de um piano pode perder o significado. Esta pode ser uma situação angustiante comparável a uma pane seca num avião.
Há vários anos que em Bento Gonçalves as professoras de piano clássico se reúnem e promovem uma audição coletiva de seus alunos para familiares e convidadados. Em 2007 foi realizada a vigésima primeira, mas esta foi a segunda vez que me apresentei para executar uma peça solo.
Nestas audições vêem-se as crianças menores, que estão começando e vamos avançando até os alunos mais adiantados que tocam as peças complexas em versões originais. Assim a comunidade pode ter uma idéia do trabalho das professoras e acompanhar o desenvolvimento técnico dos alunos.
O local de realização destas audições é o Clube Aliança, onde há um piano de meia cauda modelo Essenfelder. Suas teclas são muito leves, com um curso bem curto, além disso, que está tocando ouve menos do que as pessoas que estão mais distantes. Estes elementos acrescentam um grau de dificuldade maior às audições.
Além das características do piano, há outros elementos complicadores como o tamanho do público que gira em torno de trezentas pessoas por noite, os fotógrafos que ficam disparando flashs durante a execução das peças e os operadores de filmadoras que produzem as imagens que são projetadas em um telão e, para isso, ficam se movimentando ao lado do piano.
Para atender a demanda de alunos, as audições de piano são realizadas em dois dias, numa sexta-feira e no sábado à noite. Até a décima sétima audição em 2003 a única adulta, com mais de 25 anos que se apresentava era minha professora.
Em todas as audições há vários alunos que cometem pequenos erros e um ou outro que tem um branco e fica mais seriamente em apuros. Em 2007, durante a execução de minha peça solo, vivi um destes momentos. A peça tão estudada desde o início do ano, uma versão facilitada da valsa de Brahms opus 30 número 15 saiu do controle após eu ter chegado à metade. Eu comecei a errar e as teclas do piano ficaram todas confusas. Tentei recomeçar a partir do erro e não consegui, então tentei pular a parte em que estava me atrapalhando e retomar a melodia inicial que se repetia no final para concluir. Isso também não deu certo. Daí, só me lembrei que a última nota era dada com a mão esquerda e toquei uma tecla naquela direção dando por encerrada a execução. Infelizmente, a tecla que eu acertei também não era a correta, assim mesmo finalizei me levantei do piano e agradeci aos aplausos.
Um pouco depois subi novamente ao palco para a peça a quatro mãos na qual nos saímos bem sendo bastante aplaudidos. Depois foi só curtir os alunos mais avançados, alguns dos quais são muito bons.
A situação de esquecimento, assistida em um telão ao vivo por mais de 300 pessoas, não é nada agradável, mas faz parte da aprendizagem e não vai me fazer desistir de participar das audições, pois acredito que com o tempo vou me tornar mais segura e não ficarei mais tão nervosa. Além disso, acho importante mostrar que os adultos podem começar coisas novas na vida e têm o direito de cometer erros de principiante como qualquer criança.
Ao final da audição algumas pessoas vieram me parabenizar, elas certamente compreendem que algumas situações são mais complicadas para os adultos do que para as crianças, que lidam melhor com as falhas.
Este momento eu relacionei com o evento de pane seca da aviação, quando o combustível acaba em pleno vôo e o piloto precisa solucionar o problema da melhor forma possível. O importante nestes casos é pousar o avião de forma a sair dele andando e se a aeronave puder ser concertada e voltar a voar pode-se considerar um pouso perfeito. Em alguns casos a única alternativa do piloto é se ejetar, perde-se o avião mas sobrevive-se para voar novamente. Acho que me enquadro nessa segunda opção e espero conseguir pousar no próximo ano.
Ilustração: Chessalee
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